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ALGUMAS QUESTÕES ATUAIS

4.1. AS POLÍTICAS CULTURAIS LOCAIS – PIRAPORA

Este quarto, e último, capítulo tem como objetivo central pensar algumas dimensões e representações que o samba assume na cidade de Pirapora, de acordo com alguns autores que suscitam questões importantes para a reflexão desta manifestação cultural contemporaneamente. Serão ressaltados, portanto, alguns aspectos inerentes à prática do samba na cidade, os quais foram gerados concomitantemente com a institucionalização do grupo “Samba de Roda” local. Como a função que a Casa do Samba encerra neste âmbito, o discurso corrente de Pirapora enquanto “berço” do samba paulista, o qual beneficia, sobretudo, a prefeitura local.

Pode-se, portanto, inserir as ações da prefeitura de Pirapora em torno do samba local em um contexto mais amplo, relacionando-o a algumas tendências mundiais, mudanças ocorridas em nível mais amplo. Para tanto, parte-se do pensamento de Warnier (2003), o qual aponta alguns caminhos para o entendimento de alguns aspectos destas mudanças. O autor propõe uma reflexão em torno do impacto dos mercados culturais em relação ao que ele chama de cultura-tradição91. A noção de cultura utilizada pelo autor faz referência ao conjunto do que é apreendido pelo ser humano enquanto pessoa inserida em uma determinada sociedade, inclui tanto práticas como música, dança, como vestuário, esporte, alimentação, dentre outras dimensões da vida cultural. Tendo com ponto de partida tal concepção em torno da cultura, é utilizada a premissa de que toda cultura é singular, ao passo que se encontra intrinsecamente ligada a seu contexto, isto é, sempre está localizada. Esta representa uma complexa totalidade composta por repertórios de ação e representação, por normas, hábitos, estando situada geograficamente. De acordo com tais princípios, a cultura é, por meio de tradições, constantemente reformulada em decorrência de mudanças suscitadas pelo contexto histórico. Portanto, a cultura-tradicão, assim designada pelo autor, não representa de forma alguma um conjunto de hábitos imutáveis transmitidos de forma idêntica ao longo do tempo.

A noção de cultura está, desse modo, intimamente ligada à constituição da identidade dos indivíduos, esta última entendida por Warnier (2003, p.16) como: “(...) o conjunto de repertórios de ação, de língua e de cultura que permitem a uma pessoa reconhecer sua

91 Tradição entendida enquanto “(...) o que persiste de um passado no presente em que ela é transmitida. Presente em

que ela continua agindo e sendo aceita pelos que a recebem e que, por sua vez, continuarão a transmiti-la ao longo das gerações.” (POUILLON, apud WARNIER, 2003, p. 12)

vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele.” Não obstante, o autor considera mais adequado o uso do termo identificação, ao passo que, no contexto de globalização da cultura, um indivíduo pode assumir muitas identificações, acessando diferentes elementos de sua cultura, língua e religião. Este processo de identificação, individual e coletiva, é capaz de produzir uma alteridade em relação aos grupos de culturas diferentes. As reações criadas vão desde a rejeição, da idealização, xenofobia, incompreensão, até a atração pelo exótico, pelo “bom selvagem”.

As diferentes possibilidades de identificações são impulsionadas em decorrência da globalização dos mercados da cultura, os quais se inserem no espaço entre o passado e a inovação cultural, as culturas e indústrias, entre o local e o global. A globalização é tida pelo autor enquanto um objeto histórico, tendo suas bases em períodos remotos, já com o início das trocas inter-culturais, as atividades mercantes ocorridas já no início das atividades capitalistas. Esta foi amplamente impulsionada por três fios condutores, sendo estes a fragmentação cultural do mundo, as transformações causadas pelas trocas mercantis e o desenvolvimento dos transportes e meios de comunicação. Portanto, é a partir da década de 1970 que se intensifica a globalização dos fluxos migratórios, mediáticos, financeiros, tecnológicos e mercantis. Já nos anos de 1990, considerando o fortalecimento das políticas liberais impulsionadas pelos países desenvolvidos, a abertura comercial da China e o desmantelamento da União Soviética, houve um enfraquecimento das fronteiras, o que tornou possível o surgimento de trocas mercantis planetárias, acarretando a globalização de alguns mercados e de bens culturais. Globalização92 pode ser entendida como “àqueles processos, atuantes numa escala global que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência mais interconectado”. (HALL, 2005, p. 67).

Neste contexto, as empresas que produzem bens culturais passam a concorrer em escala mundial. Tais bens culturais consistem em: livros, filmes, discos, programas, jornais, alimentação, cuidados com a beleza, fast food, suportes e equipamentos, educação, a fotografia, a televisão, o espetáculo, turismo. É neste âmbito que são inseridas as indústrias culturais, as quais podem ser definidas como “as atividades industriais que produzem e

92 Neste trabalho tem-se dimensão da amplitude deste tema, entretanto, pelas limitações de um trabalho de mestrado,

comercializam discursos, sons imagens, artes, e qualquer outra capacidade ou hábito adquirido enquanto membro da sociedade.” (WARNIER, 2003, p. 28) Tais atividades, portanto, necessitam de meios financeiros, utilizam técnicas de reprodução em série, mercantilizam a cultura, transformam a cultura em produtos culturais e o criador em trabalhador. Tendo seu foco central na cultura-tradição, o autor atenta para o fato de que:

A cultura-tradição escapou da troca mercante durante muito tempo. Não é mais o que ocorre atualmente. Clube de férias, grandes hotéis ou operadores turísticos, pagam dançarinos, músicos, cavaleiros, para apresentar em forma de espetáculo as atividades tradicionais que eram praticadas fora de qualquer esfera mercante, há menos de cinqüenta anos.93

A fim de se iniciar uma discussão a respeito de como o samba de bumbo piraporano se insere neste contexto mais amplo, parte-se da questão em torno das políticas culturais, as quais inserem a cultura enquanto um ramo importante da economia local. As políticas culturais, de acordo com o autor, comportam três dimensões. A primeira está ligada à concepção da cultura enquanto meio capaz de propiciar desenvolvimento econômico. A segunda dimensão faz referência à promoção e controle da informação-comunicação, sendo que é por meio da mídia que o Estado e os grupos privados promovem suas idéias, concepções ideológicas, divulgam informações verdadeiras ou falsas. A terceira e última concepção concerne à socialização dos indivíduos e transmissão da identidade e do patrimônio cultural. Contudo, conforme aponta o autor: “O patrimônio cultural em forma de museus, de monumentos, de locais históricos, de paisagens é, evidentemente, uma paisagem da identidade, mas também pode ser um potencial turístico importante. Atualmente, toda política econômica comporta um setor cultural.”94

É partindo desse panorama que se pode pensar a inserção do samba de bumbo local, sobretudo no que concerne ao grupo “Samba de Roda”, enquanto prática cultural inserida em algumas políticas culturais iniciadas pela prefeitura local e sua Secretaria de Cultura e turismo. O interesse desta instituição em relação ao samba, principalmente no que concerne ao seu potencial turístico, pôde ser visível a partir de 2003, momento em que esta passou a idealizar e gerir projetos focados no samba local. Inicialmente, coloca-se a questão da criação da Casa do Samba, inaugurada no referido ano.

93 Ibidem, p.39 94