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O SAMBA PIRAPORANO – OS GRUPOS LOCAIS

3.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

As observações aqui traçadas referem-se, sobretudo, ao grupo “Samba de Roda”, de modo que as referências realizadas a respeito do segundo grupo serão citadas84. Considera-se, para a análise do samba em Pirapora, a música enquanto comunicação, a qual expressa aspectos da organização humana, da relação entre as pessoas (BLACKING, 2006)85. Sob tal perspectiva, a música é capaz de expressar aspectos da experiência dos indivíduos em uma determinada sociedade, ou seja, em seu meio social. Portanto, a música está inevitavelmente ligada à sociedade em que está inserida. Blacking, desse modo, propõe uma reflexão acerca da eficácia funcional da música em seu ambiente. Pode-se, sob este ângulo, pensar algumas re- significações pelas quais passou o samba em Pirapora a partir da observação do grupo de “Samba de Roda” local. Considera-se que uma grande re-significação pela qual o samba na cidade passou iniciou-se com a criação e institucionalização86 do grupo “Samba de Roda” aproximadamente no ano de 1997. O grupo formado, desde o início passou a ser tutelado pela prefeitura local. Foi solidificado, então, um grupo fechado de indivíduos, o que não ocorria mesmo no samba organizado por Honorato Missé na cidade, em que a participação de quaisquer pessoas era livre no samba, tanto no tocante ao canto, quanto em relação à dança. O samba realizado anteriormente na cidade era, sobretudo, uma manifestação cultural a ser vivenciada, ao contrário, nos dias atuais esta aparenta ser uma manifestação a ser assistida, vista, isto no que concerne ao grupo “Samba de Roda”. Mesmo a transmissão do samba neste grupo é prejudicada, ao passo que este não aceita a presença de crianças, não havendo outros meios de transmissão de saberes, sendo que a integrante mais jovem do grupo tem hoje 16 anos.

O grupo teve seu quadro de participantes limitado e determinado. A indumentária do grupo foi padronizada, havendo a formatação de um repertório para apresentações, o qual é

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Esta atenção maior dedicada ao grupo “Samba de Roda” ocorre devido ao fato deste estar inserido em uma problemática maior no tocante ao samba na cidade. Isto em decorrência à maior atenção dispensada a este no tocante à sua representatividade em relação ao samba piraporano.

85 “A música pode expressar atitudes sociais e processos cognitivos, porém é útil e eficaz somente quando é escutada

por ouvidos preparados e receptivos de pessoas que compartilham, ou que podem compartilhar de alguma maneira, as experiências culturais e individuais de seus criadores.” (BLACKING, 2006, p.103, tradução nossa). Tradução livre de “La música puede expressar actitudes sociales y procesos cognitivos, pero es útil y eficaz solo cuando es escuchada por oídos preparados y receptivos de personas que han compartido, o pueden compartir alguna manera, las experiencias culturales e individuales de sus creadores.”

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intuitivo, executado aleatoriamente. O que anteriormente o samba representava em relação a seus praticantes, como um instrumento de fortalecimento grupal, em vista do processo de reajustamento social dos negros recém egressos do cativeiro (IANNI, 1988), de fortalecimento de identidade étnica87, o que de certa forma pode ser transportado aos negros que festejavam o samba na cidade; ou mesmo como uma prática lúdica, enquanto sociabilidade foi reinventado pelos membros do atual grupo. Não só pela periodicidade dos encontros e pela ausência de ensaios, visto que anteriormente em Pirapora havia o encontro de sambadores, sobretudo, na festa do Bom Jesus, mas pelo próprio caráter das apresentações, é possível notar um traço essencial na maneira de os sambadores conceberem o samba por eles feito. Para além da intenção de “resgatar” e “não deixar o samba morrer”, presente na fala dos informantes, as apresentações representam uma atividade e um momento de lazer, de sociabilidade, uma oportunidade de viajar, conhecer lugares diferentes e ao mesmo tempo divulgar o samba de bumbo local. Este sentido que o samba encerra é evidente, sobretudo, na fala dos aposentados membros do grupo, os quais ressaltam estes aspectos, do samba enquanto uma atividade a mais de lazer presente no cotidiano destes.

As apresentações representam, também, um dos momentos em que estes indivíduos (sambadores) tornam-se pessoas importantes, notáveis, em que são vistos, e assumem mesmo a figura de “artistas” representantes do samba de Pirapora. De maneira oposta ao que é vivenciado pelos sambadores cotidianamente, no momento das apresentações, antes ou após estas, estes tornam-se pessoas requisitadas, procuradas e relevantes para estudantes, pesquisadores, outros profissionais, ou mesmo simpatizantes do samba de bumbo. No momento destas apresentações, principalmente quando há eventos maiores, com uma maior circulação de grupos de samba paulistanos, ou de cultura popular, é evidente a questão do

status detido pelos membros do grupo “Samba de Roda” neste contexto.

Torna-se evidente que para os sambadores do grupo o samba não cumpre funções diretas para com estes fora do momento das apresentações. Carvalho (2004) discorre sobre a crescente espetacularização das manifestações culturais de origem afro-brasileira (em geral as artes performáticas como a dança, música, autos dramáticos e teatro), a exploração comercial

87 De acordo com OLIVEIRA (1976, p. XVIII) “a etnia é um ‘classificador’ que opera no interior do sistema

interétnico e ao nível ideológico, como produto de representações coletivas por grupos sociais em oposição latente ou manifesta. Esses grupos são étnicos na medida que se definem ou se identificam valendo-se de simbologias culturais, ‘raciais’ ou religiosas.”

das formas artísticas tradicionais e a conduta política do Estado brasileiro que, por sua vez, apóia a indústria cultural nesse sentido. Para o autor, a partir do momento em que são transformadas em espetáculo, as manifestações sofrem reduções semânticas e semiológicas, considerando que o tempo para a apresentação é restrito, o que acarreta a supressão do tempo que o artista popular necessita para produzir sua arte humanizante, transformando a performance em um simulacro88. No caso específico do grupo “Samba de Roda” em Pirapora, esta concepção de complexifica, considerando as re-significações pelas quais passou a manifestação na cidade.

Um olhar apressado em relação à manifestação na cidade, tende a concebê-la como uma expressão cultural “tradicional”, deslocada de suas funções originais ao ser inserida nestas apresentações. No entanto, os sentidos que o samba encerra para com os membros do grupo estão concentrados nas apresentações, único momento em que estes indivíduos se reúnem para a prática do samba. Portanto, se ocorreram reduções semânticas (aqui entendidas enquanto modificações, não deturpações), estas se deram no momento em que houve a formação, institucionalização, do grupo em Pirapora, não sendo acarretadas ou provocadas pelas apresentações. Ao contrário, as apresentações foram conseqüências destas mudanças ocorridas concomitantemente com modificações histórico-sociais.

A imagem que o grupo “Samba de Roda” transmite tanto em eventos internos, quanto em apresentações externas, é a de “autenticidade”, é tida enquanto uma manifestação “tradicional”, intrinsecamente ligada às “raízes” culturais de Pirapora. E, de acordo com esta concepção, justamente por ser componente cultural tradicional da cidade, o samba deve ser valorizado, até como um dever patriótico em relação à cultura local. Tanto em decorrência da história da cidade em relação ao samba de bumbo, quanto no que se refere à presença de dois antigos sambadores neste, e também devido ao caráter dos encontros do grupo (sua importância atual na cidade, além de sua estrutura fechada) pode-se conceber o referido grupo enquanto uma confluência de um grupo ligado à “tradição”, à história do samba, e de

88 “É esse valor de consumo (que não pode suportar a repetição não econômica de signos vocais, rítmicos ou

instrumentais) que se introduz perigosamente nos registros divulgados do patrimônio oral tradicional quando o Estado se reduz em suas funções e começa a olhar para as tradições das comunidades afro-brasileiras e das nações indígenas (ambas carentes de cidadania e benefícios públicos) como potenciais mercadorias a serem exploradas livremente pela indústria cultural”. (CARVALHO, 2004, p. 72)

representação do samba local. A própria idéia de “resgate” do samba presente na fala dos sambadores evidencia esta representação da manifestação, visto que esta concepção é recorrente na fala dos sambadores quando indagados sobre as razões pelas quais estes entraram e permanecem no grupo. O samba em Pirapora é uma manifestação que já foi, de certa forma, “folclorizada”89 em nível local, sendo que nos dias atuais é também concebida enquanto mercadoria (turismo) pela Prefeitura Municipal – o que será melhor discutido no próximo capítulo.

De acordo com Satriani (1986) a cultura popular90 contesta a cultura oficial já devido á sua existência, a qual representa uma elaboração de uma cultura antagônica à cultura dominante. O autor ressalta que tais manifestações não se esgotam em sua “fossilização”, estando, portanto, condicionadas às inovações, condição de vida dos agentes culturais, condição de manutenção e continuidade destas etc. Por outro lado, concomitantemente com a contestação, há também uma dimensão conservadora da cultura popular, que muitas vezes tende a reproduzir valores hegemônicos. Conforme tal enfoque pode-se considerar que, de certa forma, a presença do samba de bumbo, sobretudo na primeira metade do século XX, cumpriu sua função contestadora, mesmo por sobreviver em um espaço, em um ambiente hostil, em que a manifestação de origem negra, mesmo ocorrendo devido à uma festa religiosa católica, não era bem vinda. Já nos dias atuais, o que nota-se é um ajustamento do samba em relação aos dois principais órgãos institucionais da cidade – prefeitura e igreja.

O grupo de “Samba de Roda” é atrelado e tutelado pela prefeitura local. Além de oferecer o apoio, sem o qual o grupo não possui autonomia, na vestimenta, transporte etc., muitos assuntos importantes a este, como desavenças internas, por exemplo, passam pela Secretaria de Cultura e Turismo. O grupo não é suficientemente coeso para resolver alguns problemas internos, sendo que a pessoa que ocupa o posto de secretário da cultura exerce um papel relevante na solução de alguns conflitos. Estando intimamente ligado à prefeitura, o grupo deve atender às expectativas desta, cumprindo, muitas vezes, a função de elemento

89 Conforme Lopes (2004), tal processo é corrente no que concerne às manifestações de origem negra e surge do

recalcamento desta cultura em função da suposta superioridade das manifestações eruditas. Assim, aspectos pitorescos das manifestações de origem negra são ressaltados em detrimento das lutas de resistência dos grupos envolvidos na manifestação, das condições em que estas expressões foram produzidas e da sua ação como agente transformador.

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turístico local, além de difundir alguns discursos ideológicos que beneficiem a instituição, como a concepção de que o samba paulista “nasceu”, tem suas origens, em Pirapora. Os conflitos antes existentes por parte da igreja em relação à prática do samba na cidade são hoje inexistentes, considerando que na festa do Bom Jesus são recorrentes as apresentações do grupo de “Samba de Roda” no final das missas, assim, as dimensões religiosas e profanas se complementam. A ausência de conflitos, e mudança de concepção em torno do samba local, pode ser evidenciada e ilustrada com a presença de um ministro da igreja cumprindo a função de bumbeiro do referido grupo.

O samba, que antigamente era componente essencial de uma festa religiosa na cidade, a festa do Bom Jesus, hoje faz parte de diversos momentos festivos tanto dentro quanto fora da cidade de Pirapora, carnaval, eventos locais, eventos externos sobre cultura popular etc. Antes reprimido, estigmatizado, proibido, mal visto pelos órgãos institucionais locais, hoje o samba não mais é uma prática inserida nos espaços marginais da cidade, pelo contrário é componente imprescindível do calendário festivo oficial, sendo valorizado localmente pela sua condição de patrimônio cultural e, sobretudo, por sua dimensão turística.