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FASES DO DESENVOLVIMENTO PSICOSSEXUAL

2.2 Identidade profissional

2.2.1 A centralidade do trabalho

A questão da centralidade do trabalho permite uma leitura que pretende ser oportuna em relação ao objeto principal desse estudo (formação de identidade profissional) na medida em que considera três aspectos importantes: o trabalho organiza a vida, ele pode ou não ser cheio de sentido, ele posiciona o indivíduo na estratificação social. Esses três aspectos, em alguma medida, representam substantivos impactos no processo de formação da identidade pessoal e profissional, quer por estarem imbricados entre si, quer por revelarem forças e fragilidades desse processo.

Para uma boa parte dos indivíduos que exercem uma atividade laboral não é difícil perceber esse aspecto pragmático associado ao trabalho. Na medida em que o indivíduo organiza sua vida, atividades e horários, ele se reconhece e é reconhecido pelo efeito disciplinador e referencial do trabalho. É comum ouvir diálogos de despedida que fazem referência ao compromisso de trabalho do dia seguinte: “preciso ir, amanhã é dia de branco” ou “filho, é melhor você descansar agora, pois amanhã terá um longo dia de trabalho”, ou ainda “gostaria muito de conversar a noite toda com você, mas amanhã acordo cedo para trabalhar”. Também quando ausências e atrasos são justificados pelo trabalho (“só consegui chegar agora pois estava trabalhando” ou “não posso ir, trabalho nesse dia/horário”), podem ser acolhidos com certa parcimônia e em alguns casos, até reverência, dado o aspecto de reconhecimento do indivíduo pelo valor do trabalho.

A experiência de conquista da plenitude e do equilíbrio de qualquer indivíduo inclui a questão do trabalho e do que ele representa.

O inconsciente coletivo carrega uma impressão negativa acerca do trabalho que foi sedimentada ao longo da história do homem, notadamente no mundo ocidental, inclusive pela influência de duas, das três maiores religiões monoteístas: o judaísmo e o cristianismo. Nessas, o sacrifício e o mérito são aspectos diretamente associados ao trabalho.

Nas sociedades dos séculos XVII e XVIII quem trabalhava era a plebe – a nobreza tinha seu lugar garantido apenas pelo título que carregava, atribuindo ao trabalho uma concepção diretamente associada à pobreza, à marginalização e a um meio

de sobrevivência (TONELLI, 2004). Com a revolução industrial, uma nova classe – que vive do trabalho - passa a ascender na estrutura social: a burguesia. Com ela, um novo papel foi adicionado ao trabalho, sem contudo negá-lo como meio de sobrevivência: o de veículo para o reconhecimento do indivíduo na composição social.

Para muitos, esse novo sentido empregado ao trabalho permanece incólume, mesmo considerando todas as transformações sociais subsequentes. Uma comprovação simples disso é que apesar de saber que o trabalho não tem correspondência direta com competência ou capacidade, a ausência dele (o desemprego) é fonte de sofrimento para os indivíduos – e não só pela falta do recurso financeiro. Nos chamados “excluídos”, citados em tantos trabalhos sobre igualdade social, estão incluídos os desempregados – o sofrimento vem pela sensação de não pertencimento, de estar à margem. (GOMES, 2009, p.30-31)

Os sentidos atribuídos ao trabalho sofrem as vicissitudes inerentes às transformações sociais ocorridas no mundo. A flexibilização e a precarização das relações de trabalho observadas no cotidiano, principalmente considerando o cenário de mercados globais e altamente competitivos, têm um impacto substancial na subjetividade do trabalhador (ANTUNES, 1999; NOGUEIRA, 2007) e, consequentemente na sua identidade. Por um lado, o trabalho com sentido gera uma expectativa de ganho significativo no que se refere à realização profissional (identidade, autonomia e autogestão da carreira), com reflexos positivos sobre outras áreas (DUTRA, 2010).

Conforme Gomes (2009, p.36-37):

Por outro lado, entretanto, a flexibilização nutre o processo de desconstrução do trabalho – uma vez que está associada à precarização das condições de trabalho pela subcontratação, terceirização, desregulamentação de direitos e aumento da fragmentação no interior da classe trabalhadora (ANTUNES, 1999). Em outras palavras, tornar o trabalho precário – ainda que o indivíduo se submeta a essas condições pela necessidade de sobrevivência e seja grato por não estar desempregado – significa mitigar o mais nobre de seus atributos que é o de atribuir sentido ao fazer (realizar) humano. Esvaziar o trabalho de seu sentido pode não apenas descaracterizá-lo ou desconstruí-lo em sua essência, mas também comprometer a manutenção da identidade individual e coletiva (fragmentação de sindicatos e associações de classes).

Essas questões remetem ainda à importante reflexão acerca dos sentidos que o trabalho assume para o trabalhador contemporâneo. Antunes (1999) utiliza a relação e a tensão existentes entre tempo de trabalho e tempo livre, resgata e defende a redução da jornada de trabalho não só como alternativa para minimizar o desemprego estrutural, mas também como ponto de partida para se refletir sobre o tempo, o tempo de

trabalho, o autocontrole sobre o tempo de trabalho e o tempo da vida. Destaca a necessidade de neutralizar o controle opressivo do capital no tempo de trabalho e no tempo da vida:

[...] uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado e estranhado com tempo (verdadeiramente) livre. Uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho. (ANTUNES, 1999, p. 175, grifos do autor).

Antunes (1999) ainda assevera que a redução da jornada de trabalho (com mesmo salário e maior tempo livre) é diferente da flexibilização da jornada de trabalho – esta serve ao capital e transforma o tempo livre em tempo de consumo completamente sem sentido.

Quando o trabalho consegue extrapolar a garantia de subsistência e abrir espaço para autorrealização, autonomia crescente, exercício da criatividade, reconhecimento, serviço à comunidade, inserção e vinculação social (MORIN, 2007), ele cria as condições para promover o indivíduo, amplifica suas possibilidades de experimentar plenitude dentro e fora do tempo do trabalho, e fortalece o delineamento de sua identidade profissional, seja qual for sua ocupação.

Em relação ao posicionamento do indivíduo na estratificação social, ao ajustar o foco para o capitalismo ocidental a partir do século XX, assiste-se à supervalorização da lógica individualista, o que coloca o indivíduo sob o jugo do empreendedorismo como resposta às contradições intrínsecas às práticas – muitas vezes distorcidas – desse modo de produção.

Há, de igual forma, um impacto das transformações no mundo do trabalho sobre a forma como o indivíduo encara suas possibilidades de inserção social - cujas fronteiras poderão deixar do lado de fora suas verdadeiras inclinações profissionais sob pena de não sobreviver. Isso poderá implicar no distanciamento, portanto, da construção identitária imediatamente anterior (seu repertório individual, social), pois se vê impelido, pela necessidade, a submeter-se a subempregos ou a relações precárias de trabalho.

É possível ver os desdobramentos das transformações do mundo do trabalho e das relações afins impactando diretamente nos conteúdos internos do indivíduo (subjetividade – identidade), revolvendo a trama de referências herdadas e

restabelecendo outras hierarquias valorativas – movediças, duvidosas e externamente impostas.