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(IES) Total de alunos

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Baseado na questão que impulsionou o desenvolvimento do presente estudo, buscou-se, enquanto objetivo principal, compreender como se processa a construção da identidade profissional em jovens atendidos por programas (oficiais ou não) de acesso ao ensino superior.

Os objetivos específicos, por seu caráter pragmático, ajudam a checar a consecução do objetivo principal. São eles:

1. Identificar as âncoras de carreira dos pesquisados, verificando a associação das inclinações profissionais com possíveis elementos constitutivos da identidade profissional;

2. Identificar o conjunto de valores individuais que os entrevistados consideram prevalentes nas suas inclinações profissionais;

3. Mapear as expectativas de carreira dos respondentes, investigando quais aspectos podem ser considerados decisivos para a construção da identidade profissional; 4. Investigar a presença dos elementos apontados como relevantes pela literatura – e

de outros possíveis elementos – na construção da identidade profissional, verificando qual a importância outorgada aos mesmos pelos respondentes.

Desta forma, entende-se que os objetivos específicos 1 e 2 foram atendidos a contento, a partir da aplicação dos Inventários de Âncoras de Carreira e de Valores Motivacionais que permitiram mapear âncoras e valores dos sujeitos da pesquisa. As estatísticas descritivas realizadas com os dados dos inventários permitiram delinear um panorama geral dos entrevistados, enriquecendo as análises seguintes.

A estruturação da Matriz de Análise de Conteúdo permitiu processar as informações contidas no discurso dos entrevistados e, a partir das análises e inferências produzidas sobre as categorias mapeadas (constantes no Capítulo 4 – Procedimentos Metodológicos), foi possível atender os objetivos 3 e 4 também.

A justificativa que define esse estudo como tese baseia-se na possível contribuição para o avanço da teoria uma vez que aplica conceitos já estudados por outros pesquisadores a um público que, conforme os trabalhos levantados (Apêndices A e B), não foi abordado sob essa ótica.

Olhando a literatura e a análise dos dados da pesquisa à procura dessa contribuição, conclui-se que todos os elementos constitutivos da identidade pessoal e profissional (com destaque para trajetória pessoal, ambiente, inclinações profissionais, valores pessoais, expectativas de carreira, sentido do trabalho, família, outras referências e orientação vocacional) encontram-se igualmente presentes nos jovens bolsistas entrevistados e, nos discursos desses sujeitos, parte da dinâmica desses elementos pode ser observada.

Apenas um aspecto foi considerado relevante e que pode sugerir relação com o público estudado. Trata-se das duas dimensões bipolares resultantes das compatibilidades e incompatibilidades motivacionais, preconizadas nos estudos de Schwartz (1992; 2005). Segundo o autor, há dois conjuntos de dimensões diametralmente opostas, e são assim porque as bases motivacionais dos valores contidos em cada conjunto de dimensões são incompatíveis.

Explicando melhor, os valores da dimensão “autotranscendência” (universalismo e benevolência) são incompatíveis com os valores da dimensão “autoaperfeiçoamento” (poder, realização e hedonismo) – esse é o primeiro conjunto de dimensões. O segundo conjunto é composto pela dimensão “conservação” (tradição, conformidade e segurança), cujos valores são incompatíveis com os da dimensão “abertura à mudança” (autodeterminação, estimulação e hedonismo).

O levantamento feito entre os entrevistados nesse estudo, com base no Inventário de Valores Motivacionais, revela uma singularidade que destoa, em alguma medida, dessa estrutura bipolar de Schwartz (1992; 2005): 63% dos entrevistados atribuíram notas iguais para valores incompatíveis, e 30% atribuíram notas muito próximas, com diferença de 0,5 ponto, no máximo. Em outras palavras, valores com incompatibilidade motivacional mostraram-se fortemente presentes em um mesmo

indivíduo, independentemente de sua âncora de carreira – a priori, isso não deveria ocorrer, muito menos nessa frequência.

O fato desses jovens, especificamente, apresentarem uma incidência significativa de atribuir o mesmo peso para valores definidos como incompatíveis sugere que, de alguma forma, lidam melhor com essas ambiguidades. Ao considerar a pesquisa de Silva et al. (2014), realizada com o mesmo perfil de sujeitos (jovens universitários formandos de Administração de uma universidade privada de São Paulo/SP) mas sem a distinção do estado de “bolsista”, parece haver uma indicação de ser esta condição (bolsista) a diferença mais significativa entre os dois grupos de sujeitos, e, portanto, a razão mais provável que justificaria esse fenômeno.

À condição de bolsista, para boa parte dos sujeitos aqui pesquisados, associa-se uma realidade de baixa renda familiar e todas as vicissitudes que circunvizinham essa condição. Pode-se dizer que são jovens “acostumados” a assistir e vivenciar contradições de toda espécie, começando pela socioeconômica, cultural e chegando à valorativa. O convívio universitário potencializa a consciência dessas contradições ao mesmo tempo em que forja outras construções internas, visto que eles sonham outros sonhos (mais elaborados), experimentam novos relacionamentos e convivem com identidades ancoradas em valores diferentes dos seus. Por outro lado, não podem negar suas raízes, seus repertórios, suas crenças mais profundas. Lidar com essas oposições e contradições parece desenvolver, pelo menos em parte desses jovens, uma competência diferenciada de convívio pacífico (em alguma medida) entre aquilo que é considerado incompatível. E, se isso aparece refletido na pesquisa com os empates nas notas de valores opostos, é porque já está incorporado tacitamente em suas próprias teias identitárias.

Essa competência de lidar com ambiguidades e contradições em níveis mais profundos (valores) pode se traduzir num diferencial competitivo no mercado de trabalho, tão almejado por boa parte dos profissionais. No processo seletivo e no exercício do trabalho, isso pode significar uma chance real de permanência no mercado.

Sobre o aspecto levantado, entretanto, novos estudos comparativos (entre bolsistas de baixa renda e não bolsistas, por exemplo) e com maior abrangência devem ser realizados para verificar sua consistência e investigar as possíveis causas.

Por fim, as análises aqui ensejadas, em consonância com a teoria, possibilitaram a consecução do principal objetivo da pesquisa.

Embora não evidenciada na quase totalidade dos conteúdos analisados, a percepção de um dos entrevistados revela um posicionamento muito esclarecido do significado da conquista desse novo universo que se abre para o jovem de baixa renda:

Você está fazendo essa pesquisa sobre bolsistas, então, eu acho que isso é muito forte para o bolsista, da parte de continuar se desenvolvendo. A gente nunca para de estudar, eu tenho alguns amigos que são bolsistas também, que não são bolsistas, e eu consigo ver que tem um posicionamento diferente. Não sei se é por família, ou as dificuldades da vida acabaram ensinando um pouco mais, mas a gente tem essa vontade, a gente sabe como é difícil entrar numa faculdade como a PUC e quantas pessoas queriam estar lá e como a gente é privilegiado. A gente não está lá porque alguém esta pagando, foi do nosso suor, do nosso esforço conseguir essa bolsa. Então, a gente valoriza muito mais a educação, o que a gente aprende. No trabalho em si, eu acho que a gente acaba se doando um pouco mais, porque a gente sabe... a gente teve uma trajetória e a trajetória caba agregando pra gente tanto como alunos quanto como profissionais. Acho que esse ponto é que talvez seja relevante. (P4)

É possível supor que a clareza perceptiva evidenciada acima não é compartilhada por um contingente maior de estudantes de baixa renda por conta da limitação das perspectivas de conquistas. Isto pode ser observado nas escolhas livres e hipotéticas de IES para estudar dentre todas disponíveis, feitas pelos estudantes das UE- 1 e UE-3, universidades com características empresariais que servem às funções de formação de quadros de mão-de-obra e civilizatória. A consciência do tamanho da conquista está relacionada ao tamanho do sonho. Se o sonho do estudante da periferia de São Vicente/SP é de estudar na universidade da cidade ao lado (Santos), a possibilidade desse jovem experimentar ambientes mais complexos e desafiadores em sua trajetória profissional provavelmente se restringirá àqueles mais próximos, não estranhos e confortáveis.

Diante disso, outra possível contribuição mencionada no início desse estudo caminha no sentido de solicitar das IES (principalmente as privadas) a organização de ações que atendam as demandas específicas e mais recorrentes desses jovens, quanto às deficiências de repertório social, afetivo e experiencial que os distancia dos demais. Isso não resolveria, mas minimizaria a questão da discrepância que se observa, por exemplo, no approach desse público em processos seletivos de grandes corporações. Autoconfiança e autoestima podem ser fortalecidas durante a permanência na academia, a partir de atendimento psicológico, orientação profissional, oficinas sobre profissões e carreiras, curso intensivo de idiomas e outras iniciativas estruturadas para esse público.

Ainda que isso possa gerar desconfortos institucionais pela defesa de um programa que alguns grupos (organizados ou não) reputariam como discriminatórios, estima-se que os benefícios oferecidos superariam os reveses. Quanto à duração, a ideia é que vigore enquanto existirem os programas oficiais de acesso desse público ao ensino superior (ProUni, FIES e outros de mesma natureza, incluídos nas chamadas ações afirmativas). Assim como as ações afirmativas têm caráter paliativo, pois não resolvem o problema na raiz, mas têm um valor intrínseco pela importância do acesso (o que seria para muitos desses jovens algo impensável), igualmente tem-se claro que um programa desenvolvido pela universidade para preparar de forma mais ampla esse público também é paliativo e deve ser provisório. No entanto, igualmente teria um valor inestimável para os contemplados pelo conjunto das ações.

Vale destacar que oferecer a todos os cidadãos o acesso ao ensino de qualidade em todo processo educacional é dever do Estado. Mas é possível estruturar uma atuação mais robusta da função social das IES, que poderia significar uma sensível diferença na concepção de gerações mais competentes e preparadas para melhorar o atual e dramático curso da nação em áreas consideradas básicas.