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A Ciência Cognitiva – um Percurso Diacrónico no Estudo da Mente

Já na Antiguidade Clássica, a cognição humana era objecto de especulações, nomeadamente no que se refere à génese e à natureza do conhecimento, à memória e ao pensamento. Estas reflexões, confinadas à Filosofia, perduram durante séculos, ganhando uma dimensão diferente com o empirismo, o nativismo. E se o primeiro defende que é da experiência que o conhecimento provém, o segundo sustenta que o conhecimento é parcialmente

inato. A polémica, longe de se atenuar, dura até ao século XIX, dividindo os filósofos, que nas suas reflexões começam a integrar considerações de cariz psicológico. É, neste século, que a mente humana passa a ser objecto de estudo científico, libertando-se das especulações até então dominantes.

Não há, no entanto, uma convergência de posições. Na Alemanha, a introspecção ou a observação pura é considerada o método por excelência para a observação da mente e dos processos mentais usados durante o desempenho de uma tarefa mental, consistindo em relatos do fluxo da consciência e do pensamento, muito controlados (já nesta altura o tempo era uma medida de controlo) e sujeitos a análises intensas. O conteúdo destes relatos passa a constituir a matéria para uma teoria da cognição. Nos EUA, o conceito de introspecção não é coincidente com o europeu, sendo que a análise intensa é substituída por uma reflexão episódica e ligeira, investindo a pesquisa sobretudo na educação e na aprendizagem.

Entretanto, o método introspectivo começa a ser progressivamente questionado e, nos meados do século XX, a Psicologia Behaviorista impõe-se, defendendo uma posição que privilegia o estudo do comportamento externo e não o estudo da mente. A tese dominante sustenta que o conhecimento se adquire pela experiência e através dos sentidos, consistindo a cognição humana ou o conhecimento nas “ideias” dos objectos/coisas do mundo, nas relações que criam entre si, e que são perspectivadas em termos de associações. Neste enquadramento, a complexidade da cognição humana reflecte a complexidade das relações entre os objectos/coisas do mundo que são absorvidas pela mente (Garnham & Oakhill, 1994). O estudo da cognição humana é afastado pelo facto de os constructos não poderem ser directamente observados, e, por conseguinte, carecerem de rigor científico devido a este facto, o que condiciona o objecto de estudo proposto, que se concentra nos estímulos físicos e na observação do comportamento face aos mesmos. Assim sendo, os constructos mentais são perspectivados como anátemas em termos de explicações teóricas, sendo substituídos por leis funcionais que expressam relações matemáticas entre os estímulos e as respostas (Barsalou, 1992).

Independentemente desta posição epistemológica e da desconsideração tida para com algo de tão fundamental no estudo do comportamento humano, como a mente, o pensamento ou o raciocínio, Anderson (2004) avalia

positivamente a importância do legado behaviorista pelas técnicas e sofisticação de princípios que são aproveitados pela psicologia em geral e pela cognitiva em particular.

Entretanto, o estudo da mente ganha relevo na Europa, mas por força do nazismo, pois os psicólogos interessados na cognição, deslocam-se para os EUA, sendo aqui que a Psicologia Gestalt se desenvolve, num compromisso entre o estudo da mente e da aprendizagem. Genericamente, o gestaltismo rejeita um estudo da mente tal como o associativismo e o empirismo proclamam, ou seja, feito através da busca e descrição dos blocos construídos do pensamento e com base na suposição de que as propriedades das estruturas mentais complexas podem ser depreendidas das propriedades dos seus componentes. A noção de conjunto torna-se central e nela está implicado o pressuposto de que os conjuntos não são o resultado da soma das suas partes. Ao elegerem como objectos primordiais de análise a percepção e o pensamento, as teorias gestaltistas avançam com conceitos que se tornam centrais na Psicologia Cognitiva, a qual só se impõe, verdadeiramente, nos finais do século XX.

São identificados três factos relevantes na afirmação da Psicologia Cognitiva tal como ela é considerada, actualmente, e que ocorrem aproximadamente durante o mesmo período temporal, a década de sessenta do século XX. O primeiro procede da Linguística, com Noam Chomsky, que apresenta uma perspectiva sobre a linguagem, que é tão inovadora quanto formal e rigorosa, e que se opõe à defendida pelos behavioristas, não sendo passível de uma explicação do seu funcionamento num enquadramento de estímulo-resposta. Numa caracterização sumária e genérica, a linguagem é concebida como um constructo complexo, com uma estrutura complexa e com funções cognitivas de nível superior só explicáveis a partir de mecanismos internos. O segundo facto antecipa uma das abordagens centrais da cognição, a abordagem do processamento da informação, cujos princípios são aplicados na análise do desempenho humano, durante o período da Segunda Guerra Mundial. O terceiro acontecimento está relacionado com o aparecimento dos computadores, a partir da década de cinquenta do século XX, e que é determinante para uma visão inovadora da mente humana. A ciência da computação tem como objectivo aproximar a actuação da máquina, o computador, ao comportamento humano, tornando-o inteligente e, a partir desta concepção, abrem-se novas possibilidades

de análise da própria inteligência humana, sendo feita a ponte entre o homem inteligente e a máquina, através da abordagem do processamento da informação.

A mente humana, ao ser concebida como um mecanismo de processamento da informação é constituída por um sistema de conteúdos simbólicos que armazenam informação sobre o mundo e que o representam, e onde o raciocínio actua, provocando transformações nesses mesmos símbolos. Neste tipo de modelo, os conteúdos mentais têm a forma de conjuntos simbólicos estruturados e as operações aplicadas a esses conteúdos são operações estruturais. Como corolário desta concepção, as linguagens expressas em programas de computadores, designadas por linguagens da Inteligência Artificial (AI – Artificial Intelligence), são apropriadas à implementação de modelos de processamento da informação mental humana, ainda que, até ao momento, e apesar de toda a evolução, não tenha sido possível criar um programa tão perfeito ou mesmo comparável à inteligência humana (Anderson, 2004).

As teorias conexionistas propõem uma concepção alternativa à simbólica, ao apresentar o cérebro humano como modelo da própria estrutura da mente, onde as regras que operam nos símbolos são substituídas por associações entre os neurónios, sendo portanto a representação do conhecimento modelada segundo uma arquitectura neurológica,

1.2 Questões de Investigação da Ciência Cognitiva

Kellog (2003) define a ciência cognitiva como uma ciência formada por um conjunto de ciências concentradas no estudo da cognição. Dela fazem parte todas as disciplinas que partilham deste mesmo objectivo. No entanto, a Psicologia Cognitiva destaca-se das demais pela abordagem «compreensiva» que apresenta, elegendo áreas de investigação, que são absorvidas pelas outras disciplinas, embora com uma focalização mais especializada. Assim, são problemas de investigação da ciência cognitiva em geral e da Psicologia Cognitiva em particular, a representação do conhecimento, a inteligência, o pensamento, a memória, a atenção, a percepção, a consciência, a linguagem e a aprendizagem. Embora individualmente demarcadas, o estudo de cada qual evidencia a forma como todos este constructos interactuam, o que faz com que sejam consensuais

sob o ponto de vista epistemológico e metodológico a complexidade e multidimensionalidade da cognição.

A associação do conhecimento à representação mental consubstancia uma suposição inquestionável pela comunidade científica. Barsalou (1992), e numa adaptação autorizada da proposta de S. E. Palmer, apresentada em 1978, descreve a relação funcional e sistémica entre representação, mente, conhecimento e mundo da seguinte forma: um sistema representacional implica a existência de um domínio modelador (mente), capaz de captar informação sobre um domínio alvo (mundo) e de facultar um conhecimento sobre este, mesmo na sua ausência, estando subjacente um isomorfismo parcial em termos de estrutura dos dois domínios. A sua essência reside numa relação sistemática entre os dois domínios, a qual não pode ser equacionada em termos de características individuais ou especificidades. O domínio modelador, a mente humana, tem como função reter o conhecimento sobre uma determinada matéria, enquanto o domínio alvo, qualquer padrão de informação do mundo exterior funciona como estímulo no processo de representação. Assim sendo, o sistema representacional é concebido como um sistema dinâmico, dependendo as acções mentais como percepcionar, compreender, aprender, decidir e actuar da existência de representações mentais.

Subjacente à concepção de representação mental como um código interno inobservável da informação (Kellog, 2003), está implícito o processamento da informação, definível como a computação de qualquer o tipo de informação, seja esta proporcionada directamente pela percepção de objectos reais ou acontecimentos do mundo exterior, seja mediada pela linguagem através dos processos de compreensão e/ou de aprendizagem.

Em que consiste, então, na sua estrutura nuclear, uma abordagem de processamento da informação? Ou de outra forma, e com enfoque na cognição, como é que se estuda e analisa a cognição através da teoria do processamento da informação? Anderson (2004) considera que é o modelo de Sternberg que inspira e influencia a abordagem da cognição humana. Através de um método experimental, uma tarefa cognitiva é descrita sequencialmente e por decomposição em diferentes etapas discretas e abstractas, desde que um estímulo é percepcionado até que uma resposta é gerada. Percepção e codificação simbólica, memorização, resolução de problemas, tomada de decisão

e resposta são assim os estádios abstractos por que passa qualquer informação apreendida mentalmente. A representação mental do estímulo proporcionado pelo mundo exterior acompanha todo este processo sequencial, transformando-se em conhecimento.

Estritamente de natureza simbólica, o processamento da informação é concebido por analogia com processo de busca em alta velocidade de um computador. Na convergência de duas suposições, conhecer é representar mentalmente e representar mentalmente implica um processamento da informação percepcionada, semelhante ao de um sistema inteligente artificial. Consubstanciam-se dois tipos de poderes ou forças numa abordagem específica da cognição humana, a representacional e a computacional.

Compreender a mente pode significar o entendimento das formas de comportamento inteligente relacionadas com as suas diferentes funções, no âmbito de teorias que privilegiam qualquer uma das interfaces da cognição, e que se abrem a interacções decorrentes da própria natureza sistémica da mente humana. E em que consiste, então, o comportamento inteligente? Sem questionar o carácter redutor que uma única definição implica, uma vez que pode veicular uma única perspectiva, a capacidade que o ser humano tem de resolver problemas e de, através da experiência, aplicar o conhecimento adquirido e armazenado na memória a outras situações problemáticas idênticas é a condição central para que o comportamento seja definido como comportamento inteligente. Numa matriz explicativa sobre a inteligência/comportamento inteligente, o princípio nuclear reside na concepção de conhecimento como o conjunto de representações mentais sobre as quais operam determinados processos ou procedimentos (Thagard, 1996). Isto significa que a função da inteligência decorre da capacidade de se relacionarem dois sistemas, o do conhecimento e o das metas (Marina, 1995) e, através da aprendizagem cognitiva, à qual está subjacente o princípio da sua modificabilidade, a construção do pensamento e da acção mental consolida-se (Fonseca, 2001; Morais, 1996). Neste contexto, e por tradição, a resolução de problemas tem sido considerada por diferentes sectores da investigação como a essência da cognição dada a propensão natural do homem para alcançar objectivos através de determinados processos (Anderson, 2004; Garnham & Oakhill, 1994).

O pensamento é o constructo que possibilita que o comportamento humano seja flexível. Esta flexibilidade decorre da possibilidade de múltiplas respostas poderem ser dadas perante uma determinada situação. O pensamento implica a mobilização da percepção, da atenção e da memória; implica, ainda, situações de resolução de problemas ou de tomada de decisões, caso a tarefa assim o exija. Mas o pensamento pode ser apenas recordar, imaginar e sonhar (Kellog, 2003). Nesta perspectiva, que é também a tradicional, o pensamento é abordado em termos funcionais através da resolução de problemas, do raciocínio e da tomada de decisões.

A percepção, a atenção e a memória são funções fundamentais para a cognição, que trabalham em conjunto e das quais dependem os processos superiores do pensamento como o raciocínio e a linguagem. A percepção consiste no registo e na interpretação de informações que nos são proporcionadas pelo ambiente externo (Anderson, 2004), o que implica a detecção e o reconhecimento de acontecimentos ou objectos do mundo. Nestes procedimentos, a memória desempenha uma função fulcral, envolvendo a representação desses mesmos acontecimentos ou objectos, que são codificados, armazenados e recuperados, sendo estes os três processos básicos da memória. Mas a funcionalidade da memória, na cognição humana, permite que lhe seja atribuído o sentido de garante da vida, fazendo dela depender a própria existência. Kellog (2003) dimensiona a memória nos seguintes termos: “The loss of perception or attention would be tragic, but one would still possess a sense of identity so long as memory would remain intact.” (p.117). Finalmente, falamos da atenção, que tem como função a focalização no que é importante, num determinado momento, rejeitando todo o resto da informação percepcionada. É o poder selectivo da atenção que faz com que os estímulos do mundo exterior não se transformem em informação avassaladora quer para a percepção quer para a memória.

Relacionada com o conhecimento, e embora sendo um conceito fundamental no âmbito da psicologia cognitiva, a consciência é um domínio que mantém um certo grau de mistério. A consciência, e por oposição a inconsciência, acompanha o estudo dos constructos cognitivos por estes representarem um tipo de processamento de informação inconsciente. Frequentemente, na Psicologia Cognitiva, o conceito tem o mesmo valor de auto-conhecimento, de capacidade

de aceder a um tipo de processamento de informação no qual está implicada a reflexão e o esforço cognitivo, e de experiências subjectivas, sentimentos e emoções, incluindo os qualia sensoriais. Thagard (1996) aborda a consciência em termos de desafio que pode representar para a ciência cognitiva, uma vez que tem ficado de fora da abordagem representacional e computacional do pensamento.

A linguagem, tal como ela é abordada pela ciência cognitiva, está sempre associada ao pensamento. Definida como um sistema de símbolos ao serviço da comunicação, a linguagem deambula entre a representação mental e a representação externa. Isto significa que são as letras, as palavras, as frases, os textos, que constituem os símbolos externos que, em contexto comunicacional, activam as representações mentais da matéria que está a ser comunicada. Considerada como a competência linguística mais significativa por ser a que distingue o ser humano das restantes espécies, uma teoria geral da cognição deve ser capaz de explicar a complexidade da linguagem, abordando-a não só nas dimensões que a definem, a estrutura, o significado e o uso, como também nos domínios da produção e da compreensão (Kellog, 2003).

A aprendizagem não é indissociável da inteligência e do pensamento. A capacidade em resolver problemas tem como consequência a aprendizagem que a própria experiência proporciona. É por esta razão que Thagard (1996) considera a aprendizagem como critério explicativo da eficácia de uma concepção representacional e computacional da mente humana. A Psicologia Cognitiva privilegia a aprendizagem dos conceitos, o que também é encarado pelos investigadores como um desafio, dada a quantidade explosiva de conceitos- palavras existentes, os diversos processos implicados na sua aquisição e as variáveis que interferem no processo de aprendizagem, como por exemplo, as fases de aquisição e o nível de competência que opõe aprendizes peritos a aprendizes com pouca experiência.

Um olhar atento sobre as oito áreas de investigação referidas permite-nos recuperar a afirmação de Kellog (2003) de que todas elas constituem domínios de pesquisa interdisiciplinar. Não sendo a ciência cognitiva ainda uma ciência unitária marcada pela coerência, há um esforço conjunto por parte das ciências que a compõem, a Filosofia, a Psicologia Cognitiva, a Linguística, a Neurociência, a Inteligência Artificial, a Biologia, e Antropologia, no sentido de compatibilizarem

as suas questões de investigação, na expectativa de dar respostas às seguintes questões: Como é que o conhecimento está representado na mente humana? De que forma é que o conhecimento se adquire? Como é que as experiências perceptivas se transformam em objectos e eventos significativos? Qual é a função da atenção e da memória na cognição? Que tipo de procedimentos operam subliminarmente? Que processos, aplicados às representações mentais, produzem comportamento inteligente? Como se explica a aprendizagem humana? Que princípios explicam o uso da linguagem humana?

Em suma, uma abordagem da ciência cognitiva que ambicione a integração e cruzamento dos vários campos da investigação é aquela que, em termos teóricos e empíricos, melhor descreve, explica a estrutura e o funcionamento da mente humana.

1.3 A Abordagem Representacional da Mente – Uma Teoria Geral