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SUMÁRIO

2 A GESTÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DE RISCO

2.1 SOCIEDADE DE RISCO: DA CIENTIFICIZAÇÃO SIMPLES PARA A CIENTIFICIZAÇÃO REFLEXIVA

2.1.2 A ciência e a política na sociedade de risco

O risco, elemento essencial da sociedade de risco, em seu potencial problematizador, desvela os caminhos percorridos quando da passagem da primeira modernidade para a segunda modernidade, causando perplexidades por não se adaptar a eles. Nas palavras de Beck,

25 Esse aspecto também é apontado por alguns autores como uma falha na teoria do autor,

diante da inexistência de um conceito preciso e analítico de risco. Dentre eles, pode-se destacar Niklas Luhmann, na obra A Sociologia do Risco (1991), que propõe uma distinção entre risco e perigo. “Assim, só devemos falar de riscos quando possíveis danos são conseqüências da própria decisão. Não obstante, seria mais adequado falar de perigos quando os meus danos ou perdas estão relacionados com causas fora do próprio controle”. BRUSEKE, 2005, p. 37. Entretanto, quanto a esse aspecto, entende-se que não assiste razão a tais críticas, visto que, conforme enfatizado, os riscos passam por um processo de definição social – junto à científica – que implica a adoção de um conceito aberto, sem perder-se em relativismos, o que é adequadamente obtido por meio da caracterização realizada.

os riscos “[...] colocam aquilo que conteudística, espacial e temporalmente se encontra afastado em relação direta e ameaçadora. Eles passam pela peneira da superespecialização” (2010, p. 85); quando produzidos, seus efeitos não se mantém dentro das divisões da ciência, pois são multifacetados.

Porém, as perplexidades produzidas pela multidimensionalidade dos riscos não se restringem às divisões internas da ciência. Como já afirmado, o reconhecimento dos riscos como riscos se torna possível pela quebra da separação entre teoria e práxis. Dessa forma, os riscos ainda ultrapassam as barreiras entre as disciplinas, instituições, entre valor e fato, e atravessam “[...] âmbitos, aparentemente diferenciados em termos institucionais, da política, do espaço público, da ciência e da economia” (BECK, 2010, p. 85).

Nessa linha, a realidade da sociedade de risco em emergência impõe uma postura consciente em busca da diminuição dos riscos produzidos, de “supressão das causas” no lugar do inconseqüente (mas também lucrativo) “tratamento dos sintomas”: emergem novas demandas de atuação. É preciso admitir que a ciência não é neutra para reconhecer a seriedade das definições conceituais realizadas (o que é carência e o que é risco?), as quais interferem na tomada de decisão a respeito da opção pelo tratamento dos sintomas ou a supressão das causas dos riscos e, portanto, no processo de regulação jurídica dos mesmos.

Reconhecendo-se o elemento axiológico que perpassa as decisões realizadas dentro da ciência, renovam-se as perspectivas para sua relação com o exterior, com a práxis. Nesse processo renovado, faz-se viável a tentativa de desenvolver uma “capacidade prática de aprendizado” – da ciência como teoria junto com sua práxis respectiva. Isso implica avançar por meio do método da suposição de erro do pensamento humano e evitar resultados irreversíveis – combatendo, portanto, o dogma da infalibilidade.

Apesar de difícil, torna-se indispensável para uma ação dirigida à eliminação das origens dos riscos que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia ocorra mediante a premissa da revogabilidade26 das decisões. Portanto, tal caminho deve ser traçado de forma pedagógica, por meio

26 O termo “revogabilidade” é utilizado no sentido proposto por Beck, de evitar decisões que

tragam resultados irreversíveis. “Precisamos então escolher variantes de desenvolvimento que não engessem o futuro e que transformem o próprio processo de modernização num processo de aprendizado, com o qual siga sempre sendo possível, por meio da revogabilidade das decisões, reverter efeitos colaterais percebidos ulteriormente”. BECK, 2010, p. 270.

do aprendizado – para que nenhuma decisão gere conseqüências que suspendam as alternativas decisórias das gerações futuras (elemento essencial para a equidade intergeracional).

Além de aprender com seus erros, a ciência precisa reconhecer que a superespecialização é incapaz de oferecer soluções efetivas, já que não reconhece o caráter multidimensional do risco. Nesse sentido, o autor propõe o que chama de “especialização contextual” (BECK, 2010, p. 270), perspectiva que se relaciona com as proposições de alternativas epistemologicamente transdisciplinares, com novas bases paradigmáticas e epistemológicas, defendidas com fortes embasamentos por autores como Edgar Morin (2001) e Fritjof Capra (2006).

Ainda, nos termos dos processos refletidos, o potencial político dos riscos da modernidade reflexiva já foi ressaltado, de modo que se tem a própria política como demanda decorrente de tal contexto. Os impactos que são gerados na estrutura funcional de poder e as possíveis perspectivas, portanto, precisam ser mais bem explicados. Nas palavras de Beck,

Quanto mais enfática for a ampliação dos perigos no processo de modernização, e quanto mais conspícua for a ameaça aos valores básicos do público geral e quanto mais evidente isto passar a ser na consciência de todos, tanto mais profundamente é abalada na relação entre economia, política e esfera pública, a estrutura funcional de poder e de competências baseada na divisão do trabalho [...] (2010, p. 96).

Porém, que estrutura funcional de poder é essa que passa a ser afetada com a conscientização dos riscos pela população? Para compreender tal estrutura, faz-se necessário, primeiramente, um breve relato de sua formação nos trilhos da sociedade industrial burguesa.

O projeto da sociedade industrial moderna (burguesa) foi estabelecido pela criação de uma divisão na categoria de cidadão27: por um lado, ele tem seus direitos políticos a serem defendidos, na condição de cidadão; por outro, seus interesses privados decorrentes do trabalho e da economia são protegidos na situação de burguês. Nessa perspectiva,

27 Tal separação arquitetada pela teoria política liberal conduziu à prevalência da subjetividade

sobre a cidadania, que teve sua concepção reduzida, eminentemente, à cidadania civil e política, consubstanciada no direito de propriedade e no direito de voto. Para saber mais a respeito das relações entre subjetividade, cidadania e emancipação ao longo da modernidade até a realidade atual de emergência dos novos movimentos sociais, vide: SANTOS, 1991, pp. 135 – 191.

segundo Canotilho, “a ideia de que a liberdade negativa tem precedência sobre a participação política (liberdade positiva) é um dos princípios básicos do liberalismo político clássico. […] O ‘homem civil’ precederia o ‘homem político’, o ‘burguês estaria antes do cidadão’” (1997, p. 93).

Nota-se, portanto, que a sociedade moderna se forma na perspectiva da nova classe burguesa que busca se libertar de freios religiosos e estatais, forjando limitações a ambos por meio dos direitos do homem e do cidadão, e reinventando o sentido de liberdade em detrimento das bases que gregos e romanos estabeleceram para ela. Nesse sentido,

O objetivo dos antigos – escreve ele – era a distribuição do poder político entre todos os cidadãos de uma mesma pátria: era isso que eles chamavam de liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas: eles chamam de liberdade às garantias acordadas pelas instituições para aquelas fruições (CONSTANT apud BOBBIO, 1994, p. 8).

Tal separação, especialmente concebida pelo liberalismo político, estabelece duas esferas de atuação apartadas uma da outra, organizadas em sistema político-administrativo e sistema técnico-econômico – o primeiro, com suas decisões legitimadas pela (e limitadas na) democracia parlamentar, enquanto o segundo passa a gozar da mais ampla liberdade de criação e atuação, que é conferida pelo consenso sobre o progresso – assim como pelo entendimento de que a intervenção do Estado em tarefas que não lhe cabem geraria uma uniformização de comportamentos que sufoca o desenvolvimento da autonomia da pessoa humana (subjetividade) (BOBBIO, 1994, p.8).

Posteriormente, com o avanço das desigualdades sociais em razão da operacionalização do sistema técnico-econômico sem submissão a princípios limitativos e de redistribuição, ganha impulso social e político o estabelecimento do Estado de bem estar social que, conforme já salientado, teve como fulcro a distribuição da riqueza na sociedade da escassez28. Esse processo realizou-se por meio de mais avanços dos potenciais tecnológicos e econômicos.

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Neste período da modernidade, nota-se que a cidadania passou por uma ampliação no seu conteúdo, alcançando direitos sociais e, por isso, tornando-se também cidadania social. Entretanto, numa perspectiva crítica, segundo Santos, em termos políticos (emancipação), o

Esse duplo cenário, entretanto, foi se alterando com o desenrolar da segunda modernidade: os efeitos colaterais latentes resultantes da produção foram reconhecidos como riscos, o que passou a enfraquecer a validade conferida pelo consenso sobre o progresso; novos movimentos sociais surgem como reação à política centralizadora do Estado de bem estar social, requerendo mais espaço nas discussões públicas. Dessa forma, no entendimento de Santos, tem-se que

A novidade dos NMSs [novos movimentos sociais] não reside na recusa da política mas, ao contrário, no alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e sociedade civil. [...] A politização do social, do cultural e, mesmo, do pessoal abre um campo imenso para o exercício da cidadania e revela, no mesmo passo, as limitações da cidadania de extracção liberal, inclusive da cidadania social, circunscrita ao marco do Estado e do político por ele constituído (1991, p. 170).

Nessa esteira, observa-se também que o sistema técnico- econômico, cujas decisões apresentam-se ausentes de legitimação democrática, passa a ser alvo de disputa de definições nas quais a população – através da mídia, do judiciário e dos movimentos sociais – atua de alguma forma, o que conduz à formação de um terreno intermediário entre a política e a não-política: o que Beck chama de subpolítica (2010, p. 300). Segundo Hermitte,

Essa inovação do objeto técnico em objeto político é o resultado de uma mudança cultural: a percepção dos riscos e do momento de seu possível controle mudou (I); a recusa de seu caráter inelutável renova as relações entre a ciência e a política (II) e se inscreve num contexto mais amplo da irrupção dos governados nos campos do poder, reservados, a princípio, aos governantes (III) (HERMITTE in VARELLA, 2005, p. 09).

Tal irrupção dos governados pode ser muito bem exemplificada pela emergência dos novos movimentos sociais – tidos como exteriores

resultado foi negativo: “Politicamente, este processo significou a integração política das classes trabalhadores no Estado capitalista e, portanto, o aprofundamento da regulação em detrimento da emancipação. Daí que as lutas pela cidadania social tenham culminado na maior legitimação do Estado capitalista”. SANTOS, 1991, p. 147.

ao sistema político tradicional, inclusive em razão da preferência por uma atuação não institucional (SANTOS, 1991) – que coloca em questionamento29 as limitações das instituições políticas modernas. Essas, categoricamente centralizadas, sofrem descrédito na sua capacidade de recepcionar e traduzir demandas, o que proporciona uma dissolução das fronteiras da política em direção à ampliação de seu espectro, de seus atores e, possivelmente, de suas instituições. Assim, Beck afirma que “surgem justamente com a democratização, atravessando a divisão formal vertical e horizontal de competências, redes de acordo e participação, de negociação, reinterpretação e possível resistência” (2010, p. 286).

Transferindo essas novas configurações para a problemática ambiental, é possível entender porque a importância da participação popular30 na tomada de decisão pode ser considerada amplamente reconhecida por aqueles que estudam essa temática. Enumeram-se, a seguir, as razões que se entendem como principais na defesa desse argumento:

1) O problema ambiental é o exemplo mais adequado para refletir os “novos riscos civilizacionais”, já que é um dos resultados do avanço científico aplicado à tecnologia industrial – portanto, resultante de decisões humanas tendo em vista a produção de bens de consumo, em geral;

2) Conforme já relatado, o problema ambiental despertou grandes reflexões internas na ciência – tanto epistemológicas como disciplinares –, de modo que ressalta o caráter transdisciplinar do risco e a incapacidade das ciências o resolverem com a superespecialização;

3) A constatação do problema ambiental foi um dos fatores mais fortes para a quebra do mito no progresso, já que desnudou com agressividade o mito da igualdade entre progresso técnico e progresso social ao trazer ameaças civilizacionais como resultado, e;

29 Exemplo essencial desse questionamento é a crise da democracia representativa, que

impulsionou o (res) surgimento de mecanismos de participação direta e colegiada.

30 Adota-se o termo “participação popular” a fim de manter a referência ao sentido de

participação da coletividade e evitar desvios de sentido de modo a incluir o poder público – como a expressão “participação pública” poderia induzir. Sem dúvida, isso não significa que o poder público está excluído do contexto em que a participação popular ocorrer – mas, somente, que o termo se refere à atuação da população, especificamente. Essa opção se justifica na medida em que, no caso alvo desta pesquisa, foi estudada somente a atuação da população, de modo que o termo escolhido se mostra mais adequado a realizar a correspondência entre teoria e prática.

4) Todas essas ocorrências possibilitam que as discussões a respeito de criações científicas (e possíveis aplicações tecnológicas) ganhem o espaço público – ainda que com dificuldades – para questioná-las, com a participação de especialistas não vinculados à criação científico-tecnológica, de movimentos sociais e, em alguns casos, também de cidadãos.

Nota-se, portanto, segundo Hermite, que

Os ‘riscos’, cuja separação entre riscos naturais, tecnológicos e sociais tornou-se permeável, são, de agora em diante, desafios políticos no sentido aristotélico do termo, no sentido de suum cuique tribuere. Não se trata mais de preveni-los tecnicamente e de indenizá-los; ainda é preciso decidir de forma democrática e assegurar uma distribuição justa [...] (in VARELLA, 2005, p. 8). Nesse sentido, observa-se que a permeabilidade entre os riscos naturais, tecnológicos e sociais ocasionam uma maior abertura ao seu processo de definição, na medida em que a compreensão estritamente científica já não basta para solucionar os desafios que deles decorrem. Em razão disso, impõe-se compreender, ainda que brevemente, o percurso desenvolvido no entendimento a respeito dos meios de definição dos riscos, na tentativa de proporcionar reflexões a respeito do papel que variáveis como a cultura e a sociedade podem possuir em tal percurso – reforçando, assim, o caráter aberto da conceituação de risco apresentada por Beck. Igualmente, esse intento auxiliará na interpretação realizada sobre referido processo no licenciamento ambiental do OSX-Estaleiro/SC.

2.1.3 Percepção social do risco, construção social do risco e