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A consolidação da sociedade de risco: a emergência da segunda modernidade

SUMÁRIO

2 A GESTÃO AMBIENTAL NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DE RISCO

2.1 SOCIEDADE DE RISCO: DA CIENTIFICIZAÇÃO SIMPLES PARA A CIENTIFICIZAÇÃO REFLEXIVA

2.1.1 A consolidação da sociedade de risco: a emergência da segunda modernidade

A segunda modernidade desenrola-se pela expansão do método científico, basicamente da dúvida metódica, sobre as próprias bases da ciência. Para além da cientificização simples, em que a dúvida metódica é colocada sobre o externo e preexistente à ciência (a natureza, o homem, a sociedade), nessa segunda gênese civilizatória, a ciência se torna objeto de questionamento: trata-se do que Beck nomeia como

17 GIDDENS, 1991, p. 41.Giddens afirma que a confiança é um tipo específico de crença,

definindo-a em relação à falta de informação plena e à contingência.

18 Nesse processo, Giddens identifica a modernidade inicialmente em quatro instituições:

vigilância, poder militar, industrialismo e capitalismo. Não cabe, nos limites desse trabalho, aprofundar esses elementos, visto que não se trata do objeto principal deste trabalho, nesse momento. Para saber mais, vide: GIDDENS, 1991.

cientificização reflexiva. Dessa maneira, segundo Costa, “[...] se a era moderna nasce sob a marca da crítica à tradição, continuação da modernização implica a crítica à própria modernidade, conforme tomou corpo num conjunto de instituições e valores que se tornaram, assim, tradições (modernas)”19

.

Dessa forma, segundo Beck (2010, p. 247), a ciência tem suas próprias bases colocadas sob crítica; torna-se indispensável e, simultaneamente, insuficiente para explicar o mundo. Essa ruptura conduz a muitas modificações na relação da ciência com a práxis e com o espaço público. Inicia-se a desmistificação da ciência, que vai perdendo seu monopólio sobre o conhecimento e, então, sobre a verdade, o que conduz a um rearranjo dos processos de legitimação do que é válido socialmente. Igualmente, observa-se que a lógica linear moderna entre causa e efeito, problema e solução, é quebrada, visto que a ciência é reconhecida como produto e produtora dos problemas que pretende solucionar (BECK, 2010, p. 251).

Juntamente a isso, a superespecialização – resultado do sucesso da ciência alcançado pela cientificização simples – possibilita a realização de críticas de uma especialidade científica contra outra, ou mesmo autocríticas fundamentadas no interior de especialidades, que corroem os elementos de dogmatização da ciência. Dessa maneira, segundo Beck (2010, p. 248), “os atores da ruptura são as disciplinas da autoaplicação crítica da ciência sobre a ciência: teoria da ciência e história da ciência, sociologia do conhecimento e da ciência [...]”. É justamente a quebra do monopólio da verdade e da separação entre teoria e práxis, em conjunto com a autocrítica da ciência, que possibilitará a identificação dos riscos produzidos pelo avanço tecnológico (como riscos) e o início da discussão de sua definição social no espaço público.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o processo de cientificização reflexiva, que corresponde à emergência da sociedade de risco, possibilita uma quebra no consenso em torno do progresso porque fragiliza suas premissas fundamentais: a) a fórmula pacífica, por todos partilhada, de que progresso econômico é igual a progresso social; b) a separação dos efeitos negativos do progresso econômico, que devem ser vistos como problemas residuais – os quais afetam a grupos específicos que não têm condições de questionar sua produção. Com o reconhecimento dos riscos, a equivalência entre progresso econômico e

progresso social é quebrada, já que todos são atingidos potencialmente por eles – inclusive grupos que têm poder de questioná-los.

Por esse motivo, pode-se observar que mecanismos essenciais para a formação da confiança em contextos de modernidade (simples), em especial os sistemas peritos, perdem parte de sua função estabilizadora, visto que a confiança deles decorrente anteriormente já não existe mais de forma plena. Nesse sentido, os chamados pontos de acesso – momentos caracterizados por Giddens como “[...] compromissos com rosto que põem atores leigos em relações de confiança, envolvem comumente exibições de confiabilidade e integridade manifestas, associadas a uma atitude de ‘aja-como-de- hábito’, ou de auto-segurança” (GIDDENS, 1997, p. 89) – têm seu caráter de vulnerabilidade potencializado, em razão das imprecisões e insuficiências da perícia técnica se tornarem cada vez mais evidentes.

Nota-se, portanto, que pelo processo de cientificização reflexiva os pontos de acesso se expandem e se politizam, para que os riscos reconhecidos socialmente tenham sua (re-) definição aberta à população, na tentativa e possibilidade de incorporar as demandas de movimentos sociais, para além do monopólio da verdade pela ciência. Nessa esteira, destaca-se que a cientificização reflexiva, na modificação que proporcionou na relação entre a teoria e a práxis, retirou da condição de “efeitos colaterais latentes” os riscos produzidos pelo avanço da ciência e da tecnologia, possibilitando a percepção do desequilíbrio ambiental causado (e a causar). Dessa maneira, a ciência se torna produtora de riscos, instrumento de definição dos mesmos e de busca de soluções – em conjunto com a sociedade20.

Além da percepção dos riscos como tais, outros elementos passam a formar a emergente sociedade decorrente do processo de cientificização reflexiva. Portanto, para viabilizar a compreensão da extensão e intensidade dessas transformações, passa-se agora a traçar as características edificantes da chamada sociedade de risco.

2.1.1.1 O caráter dos novos riscos

No entendimento de Beck, a passagem para a sociedade de risco “[...] ocorre de forma indesejada, despercebida e compulsiva no despertar do dinamismo autônomo da modernização, seguindo o padrão

20A respeito de considerações sobre a percepção social do risco, ver,neste capítulo, item 1.3

dos efeitos colaterais latentes”21

. Especialmente, no entanto, o reconhecimento dessa nova realidade, vai ocorrer mediante a transição dos efeitos perniciosos da condição de “efeitos colaterais latentes” para a sua percepção como riscos decorrentes da aplicação da ciência. Tal transição desenvolveu-se pelo lento processo (de convivência e) de passagem do predomínio da lógica da distribuição dos riscos sobre a lógica da distribuição da riqueza.

A distribuição da riqueza foi a lógica dominante na sociedade industrial, chamada também de “sociedade da escassez”. Nessa busca pelo fornecimento de melhores condições de vida à população, o Estado de bem estar social viu-se pressionado a aumentar cada vez mais a produção de bens para a concretização de tal demanda, o que certamente exigiu o uso mais intenso de recursos naturais. Nessa perspectiva, segundo Pureza:

[...] embora o Estado Social signifique uma inclusão dos trabalhadores na esfera da cidadania, permanece um fundo de exclusão exactamente com o mesmo sentido que possuía no Estado liberal: os que não têm acesso ao mercado [...] e a natureza são ignorados [...]” (1997, p. 13). Esse cenário irá se modificar pelo processo reflexivo da modernidade, que estende as bases de questionamento sobre si mesma, revelando a produção do que se tornam riscos e ameaças em um nível nunca antes observado. Assim, “[...] cedo ou tarde na história social começam a convergir na continuidade dos processos de modernização as situações e os conflitos sociais de uma sociedade ‘que distribui riqueza’

21 GIDDENS, BECK, LASH, 1997, p. 16. Esse trecho é bastante elucidativo para o escopo de

diferenciação, sob a perspectiva de Beck, dos termos “reflexividade” e “reflexão”, e a relação deles com o processo de emergência da sociedade de risco. No entendimento de Beck, a passagem da sociedade industrial para a sociedade de risco se dá de forma reflexiva (modernização reflexiva), no sentido de reflexividade. A este termo, o autor relaciona a percepção de que ocorre uma “autoconfrontação” da sociedade industrial com suas próprias bases, de modo que os efeitos da sociedade de risco não podem ser tratados e assimilados dentro dessa realidade – isso significa o retorno da incerteza. Assim, a passagem ocorre não por meio de reflexão, de forma consciente, mas pelo não-conhecimento – o não visto e o não desejado (os efeitos colaterais latentes) é que permitem fazer surgir (e que caracterizam) a sociedade de risco. Essa percepção a respeito do mecanismo autônomo e impensado de transição não impede que, em um segundo momento, como de fato expõe o próprio autor, os elementos da sociedade de risco se tornem alvo de debate público (reflexão). Diferentemente, Giddens atribui, segundo Beck, a transição para a modernidade radicalizada a um processo consciente, cognitivo, dos sujeitos a respeito de suas próprias ações e resultados. Para aprofundar entendimentos a respeito das semelhanças e divergências entre os autores, vide: GIDDENS, BECK, LASCH, 1997.

com os de uma sociedade ‘que distribui riscos’” (2010, p.25), realidade que se observa na República Federal Alemã por volta dos anos setenta, a qual demonstra a emergência da sociedade de risco.

Mas, afinal, como se apresentam esses novos riscos? Que elementos permitem diferenciá-los de outros riscos sofridos pela humanidade?

Os riscos e perigos sempre estiveram presentes no desenvolvimento humano, e o medo, visto que bem administrado, foi uma alavanca à busca por novas condições de vida pelos seres humanos – começando mesmo pelo domínio do fogo, a domesticação das plantas e animais e a criação de instrumentos de pedra e metal. Assim, nas sociedades pré-modernas, os “ambientes de risco” (GIDDENS, 1991) existentes estavam relacionados com o parco domínio sobre a natureza – doenças infecciosas, insegurança climática, inundações ou outros desastres naturais –, com a violência praticada por grupos humanos em razão da inexistência de monopólio da mesma nas mãos do Estado, e nos temores decorrentes da crença no castigo divino.

Com o processo de modernização – em especial a segunda modernidade, os perigos enfrentados, conforme Giddens (1997, p. 111- 2),

[...] não derivam mais primariamente do mundo da natureza. É claro, ciclones, terremotos e outras catástrofes naturais ainda ocorrem. [...] O contraste, contudo, é muito nítido. Ameaças ecológicas são o resultado do conhecimento socialmente organizado, mediado pelo impacto do industrialismo sobre o meio ambiente material22. Dessa forma, os riscos assumem a posição central porque deixam de ser simples riscos pessoais, assumidos conscientemente ou não, ou decorrentes totalmente da força maior. Apresentam-se como ameaças não sensorialmente identificáveis em suas origens, visto que estão ubicadas nas fórmulas físico-químicas das criações científico- tecnológicas, elaboradas e aplicadas pelo próprio ser humano23.

22Noções como destino predominavam no imaginário coletivo, como é possível notar na

abordagem da “fortuna” no clássico da ciência política de Nicolau Maquiavel: MAQUIAVEL, 2006.

23 Dentre os autores que criticam a perspectiva de Beck, Adams ressalta, segundo Guivant “[...]

que a distinção entre riscos modernos e os antigos perigos pode ser exagerada. [...] Os micróbios que provocavam doenças e mortes – tifo, varíola, tuberculose, peste bubônica – também eram invisíveis. [...] Contudo, Adams reconhece que, apesar das diferenças não

Também, os novos riscos podem ter sua fonte causal em ações realizadas em espaços distantes de onde são sentidos seus efeitos; podem atingir os mais diversos seres – humanos, flora e fauna – o que revela seu caráter global. Por fim, o principal elemento qualificador: decorrem do processo de modernização da sociedade; ou, dito de outra maneira, são riscos derivados do meio ambiente criado, ou, nos termos de Giddens (1991), natureza socializada, por meio da introdução de conhecimento humano no meio ambiente material, causando interferências no mesmo.

Nessa linha, em razão da modernização reflexiva e da crise na crença no progresso, conseqüência primordial do reconhecimento do risco é o potencial político que ele possui e desenvolve. Apesar da dependência da ciência – que se torna cada vez mais necessária – para a identificação e interpretação dos riscos, a sua perda de poder para dizer qual é a verdade implica uma abertura a processos sociais de definição do que eles são e significam – de modo que, paradoxalmente, ela se torna também cada vez menos suficiente. Tal potencial político, relacionado com a abertura dos processos de definição dos riscos, será especialmente ressaltado no licenciamento ambiental a ser compreendido, momento em que se destacará o encontro da racionalidade científica com a racionalidade social e cultural.

Desencadeiam-se, portanto, segundo Beck, disputas entre várias racionalidades24 (especialmente a científica e a social), que servem de base argumentativa para discussões em ambientes políticos (e não políticos, nos termos da modernidade simples) – com suas respectivas tomadas de decisão (Parlamento e empresas, por exemplo). Nesse contexto, conforme ressalta Beck, “[...] aumenta a importância social e política do conhecimento, e consequentemente do acesso aos meios de forjar o conhecimento (ciência e pesquisa) e disseminá-lo (meios de comunicação de massa)” (2010, p. 56).

Outra conseqüência das características elencadas acima se refere à diferença essencial da lógica de distribuição dos riscos para a de distribuição da riqueza. Em regra, nos processos produtivos da sociedade da escassez os efeitos colaterais atingem aqueles que não têm o poder de controle sobre esse processo: as conseqüências da pobreza

serem tão nítidas como propõe Beck, não há dúvidas que a ciência e a tecnologia têm gerado novos riscos [...]”. GUIVANT, 1998,p. 30.

24

Enrique Leff, questionando a racionalidade econômica (técnica) predominante na atualidade, propõe a construção de uma racionalidade ambiental, que englobe quatro esferas de racionalidade: substantiva, teórica, técnica e cultural. Para saber mais: LEFF, 2006.

são sentidas mais severamente pelos pobres. Diferentemente, os novos riscos não podem ter sua dinâmica de distribuição explicada (somente) pela sociedade de classes: “os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucram com eles” (BECK, 2010, p. 27), o chamado efeito bumerangue.

No que se refere à conceituação de risco, em decorrência da recente emergência dessa realidade e do caráter aberto de suas definições, Beck realiza uma conceituação aberta dessa categoria25. Dentre várias referências estruturalmente realizadas sobre a essência do risco ao longo da obra, seria possível optar pela seguinte organização de ideias, por apresentar-se mais ampla nos elementos que compreende:

‘Os riscos da modernização’ são o arranjo conceitual, o enquadramento categorial no qual violações e destruições da natureza inerentes à civilização são socialmente concebidas, com base no qual são tomadas decisões a respeito de sua validade e urgência e definida a modalidade de sua eliminação e/ou de seu manejo (BECK, 2010, 99).

Diante do exposto, considera-se como adequadamente compreendidos os elementos caracterizadores da emergente sociedade de risco. Dessa maneira, a partir desse momento, as atenções são dirigidas para a análise das consequências para a ciência e a política decorrentes desse novo cenário.