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1 A VIDA COMO ITINERÁRIO 56 1.2 Afeto e movimento

1.2 A CIÊNCIA E A MEMÓRIA

Nos memoriais, o sujeito do narrado olha sua vida de maneira prospectiva, em direção ao futuro, ao que é inacabado, aberto. Isso faz com que a vida não possa ser compreendida por ele apenas como exercício, para que não pareça uma vida que cumpre um programa pré-instituído, conforme já foi comentado. As dúvidas a respeito do futuro e das escolhas a serem feitas confirmam que, embora o sujeito desenvolva projetos na tentativa de controlar todas as variáveis e não ser surpreendido, ele ainda pode deparar com o acontecimento, que é a própria impossibilidade de tudo prever e a medida de sua competência.

Diferente do ocorrido por ocasião do ingresso no Mestrado, tive dúvidas sobre a área de trabalho que gostaria de desenvolver na Tese de

Doutorado. Meu dilema era: prosseguir na Botânica ou dedicar-me a algum trabalho na área do Ensino de Ciências ou Biologia. Qual o ―caminho certo‖ a seguir? (URSI, 2007, p. 11).

Que tipo de professora eu seria? Será que existiria correspondência entre minhas idéias e minha prática docente? Será que eu aguentaria ficar longe da USP, dos meus amigos, das pesquisas, dos cursos, das algas? Será que eu conseguiria um emprego?

Finalmente, chegará o momento de procurar respostas para todas essas questões... (URSI, 2007, p. 17-18).

Entretanto, se o sujeito do vivido tem um olhar prospectivo, não é esse o caso do narrador. O narrador observa a própria vida de maneira retrospectiva, podendo assim lançar ―previsões‖ no texto, que não são mais do que antecipações. Em Pompêo, por meio do futuro do pretérito – tempo próprio das antecipações por descrever ações posteriores a um momento de referência pretérito (FIORIN, 1996, p. 159-160) –, o narrador mostra a importância que o encontro com Viviane teve em sua vida. Nessa passagem, fica bem evidente que a valorização dos eventos passados está ligada a seus desdobramentos futuros, já conhecidos pelo narrador. O passado é observado, hierarquizado e valorizado a partir do tempo presente.

Foi também nesse período que conheci a Viviane, que viria a ser não só minha namorada, mas esposa, mãe do meu filho, minha parceira profissional e a luz que falta na nossa vida solitária (POMPÊO, 2007, p. 5).

É a observação retrospectiva que permite ainda ao narrador reintegrar – ao menos em seu relato – boa parte do que foi vivido como acontecimento a uma ordem causal, regida pela lógica implicativa. Essa reintegração é necessária porque o acontecimento parece ser avaliado como excessivo nos memoriais. Para a jovem, não conseguir a sua primeira opção no vestibular não era esperado, mas, quando a narradora, instaurada no presente, examina o ocorrido, pode atribuir um novo sentido à derrota. Recupera-se então, em Negrão, a relação de necessidade entre a segunda escolha – ou seja, a derrota – e o futuro profissional. É como se a narradora dissesse: ―hoje sou linguista graças a esse fracasso‖. Com isso, ocorre até mesmo uma inversão do valor do fracasso. Dahlet busca alguma explicação para as inconstâncias que

configuram sua identidade. Inicialmente, não encontra nenhuma ―lei‖, mas logo reconhece a ligação entre todos os caminhos que sua vida tomou, percebe um fundo comum para o que parecia fortuito: sua ―estrangeiridade‖.

Não conseguir minha primeira opção foi um grande fracasso para mim naquele momento. Hoje, no entanto, vejo meu ingresso na segunda opção como uma das causalidades que mudaram o meu percurso (NEGRÃO, 2004, p. 8).

Mesmo assim, será que esses percursos se caracterizam por uma linha reta? Não, definitivamente. A identidade não é feita de um bloco só, e sim de uma história ainda em processo. A não ser que se entenda identidade como se fosse um momento apreendido para extraí-lo do fluxo temporal no intuito de imobilizá-lo, de fixá-lo, à semelhança da foto. Ainda assim, a linha não se apresenta reta: ela se desenha também conforme os encontros, seja com leituras, seja com pessoas, seja com instituições, que acabam mostrando trilhas novas. Para mim, qual seria o fio que costura minhas três identidades?

Minha estrangeiridade: a parte mais aflorada da minha (inter) subjetividade, e que permeia todos os campos nos quais evoluo por via das línguas (DAHLET, 2004, p. 71).

Assim, mesmo que num primeiro momento o percurso intelectual se apresente sem orientação alguma, o narrador logo mostra que a falta de coerência e de sentido em sua vida era apenas aparente, revelando a verdade do memorial acadêmico, que é uma vida cuidadosamente planejada. Quando o fato torna-se lembrança, o narrador pode explicá-lo de maneira distanciada, encontrando sua lógica profunda, velada, o que aumenta a inteligibilidade do passado.

A visão retrospectiva do acontecimento, que busca uma lei escondida sob a aparente desordem, mostra que o narrador é mesmo um acadêmico ou um cientista competente, uma vez que ele consegue encontrar as regularidades encobertas. Ele faz bem o seu trabalho. Landowski (2005, p. 81), refletindo sobre as possibilidades de dar conta de processos em grande escala com seu modelo de regimes de interação, define a prática científica (em oposição às práticas de tipo religioso, estético e filosófico) como justamente a que busca descobrir a lei de uma regularidade. Geninasca (1997, p. 212) afirma que a unidade do mundo, para o sábio, não é mais que um objeto do pensamento, que ele constitui para si por meio de um encadeamento de

causas e efeitos. Ele acrescenta ainda que a racionalidade científica ou a maneira como o discurso científico garante a inteligibilidade do mundo procede pelo estabelecimento de cadeias causais, de caráter metonímico, colocadas fora do campo da percepção imediata.

Normalmente, a memória autobiográfica é aquela de uma presença, mais tônica ou menos, como vimos. Quando o narrador se recorda de seu passado, ele se recorda de sua própria presença naquele período. O narrador lembra-se das emoções e das sensações já experimentadas (os aromas, as texturas, os sabores, as formas), podendo até mesmo revivê-las, o que mostra que ele esteve lá, como testemunha de um mundo que não existe mais e, principalmente, como alguém que fez parte desse mundo. Nos memoriais, entretanto, são raras as passagens em que vemos essa aproximação do narrador e do ator do narrado ser realizada por recursos que ultrapassem a debreagem de pessoa. Além disso, essas raras passagens localizam-se, principalmente, no início dos memoriais, quando a infância é retratada, e desaparecem conforme o texto avança.

Em Discini, a descrição da escola é feita por meio de uma hiperfocalização em detalhes e, principalmente, nas qualidades dos objetos – o branco do avental, a sensação tátil do estojo –, recriando no texto não simplesmente como o mundo era, mas como a criança o percebia. Essa hiperfocalização produz inclusive um desequilíbrio entre os objetos da escola, que parecem enormes, e a menina por cujos olhos entramos em contato com eles. Em Angialossy, as embreagens de tempo (―vejo‖) e de espaço (―este‖), que anulam a oposição entre o sistema enuncivo e o enunciativo, são responsáveis por trazer o tempo e o espaço da infância para o aqui e o agora da enunciação, inserindo o narrador e também o sujeito da enunciação na cena lembrada. O presente pontual em ―vejo‖ faz com que o evento narrado seja mostrado como se surgisse naquele instante diante do sujeito que revive o seu passado. Principalmente os aromas são recuperados nesse texto.

Importa o tato do estojo de madeira ou de lata, em que se guardavam lápis, caneta e sonhos; o cheiro da borracha de apagar; o avental branco com inscrição em linha azul, Q.A., Quinzinho do Amaral, uniforme a ser conservado limpo (DISCINI, 2002, p. 8).

Nasci em uma fazenda de café e desde cedo convivi com o cheiro dos grãos de café secando no terreiro – trago este aroma em minha mente até hoje; cresci em uma serraria, tendo contato próximo com o cheiro da serragem e a visão das toras de madeira – araucária e peroba-rosa; ao vir para a cidade grande, vejo meu pai todos os dias cuidando de suas orquídeas, que eram muitas – todas protegidas em ripados de madeira, com etiquetas indicando seu nome científico; no jardim de casa havia uma planta masculina de Cycas circinalis, que sempre após as chuvas exalava seu odor característico, que sempre me fascinou. Creio que essas situações me foram marcantes e nortearam minha decisão, desde cedo, que trabalharia de alguma forma com as plantas (ANGYALOSSY, 2006, p. 1).

No entanto, é preciso insistir na ideia de que não são frequentes as vezes em que a presença sensível desse outro eu, o do passado, é recuperada nos memoriais. No geral, busca-se apagá-la, para que o outrora possa ser analisado, estudado e examinado com o devido distanciamento. Além da dominância da lógica implicativa que subjaz à análise feita pelo narrador, outros elementos também contribuem para recortar o passado. São eles o emprego recorrente de topônimos, antropônimos e cronônimos, a presença fraca de um léxico que expressa emoção, a preferência por certas formas verbais, como o pretérito perfeito, que apresenta os eventos a partir de um ponto de vista externo, em oposição ao imperfeito, entre outros elementos.

Em meados de 1993, o SENAC me convidou para fazer uma palestra em Salvador, no lançamento do livro África: moda, cultura e tradição, que reunia textos de Fábio Ávila e Fábio Leite (e algumas citações de minha tese) (219), sobre fotos do vestuário africano feitas por Maureen Bisilliat em Abijan (PETTER, 2008, p. 24).

O mundo produzido nos memoriais aparece como preexistente ao ato de lembrar e ainda de narrar. As datas, os nomes completos, os endereços apontam para um conhecimento oriundo de um discurso social partilhado. O narrador apoia, então, esse seu universo naquilo que já é dado. Isso justifica bem o porquê de a memória não ser vista, nesse gênero, em ato de fazer-ser o passado, como geralmente ocorre nos textos mais literários, especialmente nos poemas analisados de Bandeira. Logo, também não são frequentes as passagens que mostram um narrador de certa forma espantado pela lembrança do que lhe ocorreu, fazendo da memória um acontecimento.

Assim, com relação à constituição da memória, encontramos apenas alguns trechos que revelam uma diminuição da extensidade e um pequeno aumento da intensidade, como quando o narrador em Arrigucci mostra sentir dificuldade em contar tudo o que experimentou no período passado na França. Confessa-se inicialmente ―perplexo‖, ou seja, hesitante, paralisado pela massa de histórias que invade seu campo de presença, preenchendo-o:

Como contar, ainda que sumariamente, tudo o que pude ver, ouvir e pensar, em matéria de arte, ao longo do tempo em que estive fora? Confesso-me perplexo, sem saber por onde começar. No entanto, como é preciso, vou sugerir alguma coisa (ARRIGUCCI JR., 1990a, p. 20). Outra passagem que mostra o narrador surpreendido pela memória é o início do memorial de Matioli, especialmente o momento em que salienta que as lembranças ocorrem a ele, na forma própria do sobrevir. O efeito, ao menos nesse pequeno trecho, é de que ele as narra conforme surgem em seu presente. São recordações que carregam uma carga afetiva forte, como indica o emprego de certos diminutivos (―tatus-bolinha‖, ―bichinhos‖), possessivos (―meu‖ e ―minha‖), verbos perceptivos (―via‖) e ainda de alguns adjetivos e advérbios que exprimem avaliação e emoção (―alegrias‖, ―maravilhosas‖, ―sofregamente‖, ―solenemente‖). O narrador mostra a criança a partir de como percebia o mundo ao seu redor e mostra o passado a partir do ponto de vista da criança, ao qual o seu vem fundir-se momentaneamente. A recorrência de expressões relacionadas à memória – que instaura o narrador como aquele que se lembra de seu passado (―A primeira lembrança‖, ―Posso ainda lembrar cristalinamente‖) – também é fundamental para criar a identificação entre o narrador e o menino, pois, por meio dessas expressões, produz-se o efeito de que o narrador esteve presente naquele outro período e de que é dessa sua presença que fala:

A primeira lembrança que eu posso registrar com relação ao meu interesse pela área biológica data de 1961, aos quatro anos de idade, ao acompanhar o sofrimento de minha avó Kasemira (materna) que estava com câncer terminal. Prometi solenemente a ela que torna-me-ia um médico para poder curá-la. Desde então ocorre-me uma série de outras memórias relacionadas a esse interesse. Algumas mais marcantes são os experimentos realizados com tatus-bolinha e

formigas, sendo alguns deles de natureza sádica como ocorre naturalmente em várias crianças, mas outros de natureza lúdico- científicas, tais como a construção de labirintos (com jogos infantis de construção que meu pai, que sempre trabalhou com construção civil, gostava de me presentear) para os pobres bichinhos que teimavam em usar as paredes para seu desvencilhamento. Muitos laboratórios químicos infantis e juvenis, além de ―kits‖ preparados pela extinta FUNBEC foram completamente sucumbidos através tanto do acompanhamento cuidadoso dos protocolos fornecidos como da execução de experimentos de natureza aleatória, com resultados muito menos interessantes do que as fantásticas explosões ou descobertas maravilhosas desejadas. Posso ainda lembrar cristalinamente a alegria ao ganhar um microscópio, aos dez anos, quando tudo que eu via pela frente era disposto sobre poucas lâminas que acompanhavam o instrumento e que eram sofregamente observadas (MATIOLI, 2001, p. 2).