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1 “P ROFUNDAMENTE ”: A FESTA E A MORTE

O poema ―Profundamente‖ constitui-se de duas partes, separadas tanto espacialmente, no plano da expressão (há um intervalo entre elas na página), como temporalmente, no plano do conteúdo (esse intervalo marca a passagem de um tempo para o outro). A primeira trata aparentemente de um passado

37 Falamos da infância do enunciador, porque nos textos autobiográficos é produzido o efeito

de identidade entre enunciador, narrador e protagonista, conforme mencionamos.

38 Para a semiótica, o narrador e o narratário são actantes da enunciação enunciada delegados

pelo enunciador e pelo enunciatário (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 327). Tendo em vista essa definição, optamos por empregar tais noções na análise de poemas, o que não indica a falta de reconhecimento da especificidade da poesa.

recente ("ontem"), e a segunda, de um passado mais remoto ("quando eu tinha seis anos")39.

No início do poema, é construída a cena da festa de São João ocorrida ―ontem‖:

Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes, cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.

Características sensoriais – em especial, sons e luminosidade – são evocadas: ―estrondos‖, ―rumor‖, ―luzes‖, "vozes, cantigas e risos‖, ―fogueiras acesas‖. A memória da festa constitui-se, então, de maneira fragmentária. O todo recordado no presente da narração vem à luz apenas por meio de alguns traços sensíveis. A festa é, então, claridade, em oposição à escuridão, e barulho, em oposição ao silêncio. Conforme esses elementos aparecem no poema, a presença da festa vai sendo restaurada. Trata-se de uma restauração principalmente das sensações causadas no sujeito, ou seja, da experiência sensível vivida por ele. O único verbo utilizado em meio à descrição é ―havia‖, que está no imperfeito, o que cria o efeito de que o evento é vivido de dentro, em sua duração (FIORIN, 1996, p. 155).

Na passagem da primeira para a segunda estrofe, a festa é interrompida de forma inesperada, o que é reiterado por um verbo no pretérito perfeito, que possui o aspecto da pontualidade (―despertei‖). O sono é o responsável pela ruptura, embora ela só seja notada pelo narrador no instante em que acorda. No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões

Passavam, errantes Silenciosamente

Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel.

39

A leitura que fazemos de ―Profundamente‖ possui como ponto de partida a análise proposta por Arrigucci, em Humildade, paixão e morte (1990b).

No nível narrativo, é desfeita a conjunção do sujeito com o objeto festa, o que é revelado por seu apagamento sensorial (―não ouvi mais vozes nem risos‖). A festa dá lugar à cidade modernizada (ARRIGUCCI, 1990b, p. 215), figurativizada pela noite, pelo túnel (passagem para carros) e pelo ruído do bonde, único som a cortar o silêncio. Essa cidade não representa um novo universo denso sensorialmente, é apenas falta: ―Apenas de vez em quando/ O ruído de um bonde/ Cortava o silêncio/ Como um túnel‖. O túnel, elemento vazado, é comparado ao som produzido pelo bonde, o que somente reforça o vazio sensorial. O sujeito parece viver o estado da vacuidade ou de incompletude, definido por Tatit como:

[...] a menor densidade existencial que um sujeito pode experimentar. Tudo indica, de fato, que o enunciador se projeta no texto como alguém que sofreu um processo de esvaziamento modal e emocional e se encontra desolado e sem elã (entenda-se por isso a ausência de direcionalidade ou, simplesmente, de intenção) (2001, p. 139).

A saída da festa do campo de presença do sujeito realiza-se de forma abrupta, inesperada, e o sujeito, que se sentia pleno (realização), vivencia o sentimento de vazio (virtualização), causado pelo desaparecimento repentino da festa.

Em seguida, o narrador pergunta: Onde estavam os que há pouco

Dançavam Cantavam E riam

Ao pé das fogueiras acesas?

A questão que encerra a primeira parte do poema funciona, como bem mostra Arrigucci (1990b, p. 212), como uma enumeração negativa, refazendo de maneira gradativa a saída da festa do campo de presença do sujeito. Os elementos mencionados são trazidos outra vez ao texto, mas como falta. Tal movimento de subtração não diz respeito apenas à figuratividade, mas também à ―carga tensiva‖ do poema. Assim, a cada verso introduzido, não é apenas a

festa que se dissolve, mas o próprio sujeito que, ao ver cada vez mais distante o objeto que o atrai, experimenta o sentimento de incompletude.

Nos termos de Zilberberg (2006a), trata-se de uma queda de intensidade. A festa, vivida como valência paroxística, vai deixando o campo perceptivo. Inicialmente, ocorre uma operação de ―menos mais‖, uma atenuação – retira-se tonicidade. Isso dá lugar a um acréscimo de menos, a minimização: soma-se um ―menos‖ àquilo que já está fraco se considerarmos o eixo da intensidade (operação de ―mais menos‖). A enumeração negativa corresponde, então, a uma gradação no nível tensivo da densidade de presença da festa, que vai sendo esvaziada. O ponto de interrogação, que dá direção ascendente à prosódia silenciosa do poema, corrobora o sentimento de falta que se instala. A estrofe é encerrada pela resposta:

– Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo

Profundamente

Na primeira estrofe da segunda parte de ―Profundamente‖, o narrador afirma que foi também por causa do sono que não pôde ver o final da festa: Quando eu tinha seis anos

Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci

Em seguida, para falar sobre a distância dos entes queridos, utiliza o tempo presente e enunciativo, que é o tempo que possui como marco temporal a concomitância com o instante da enunciação: ―Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo‖. Com isso, aproxima-se aquilo que é narrado do sujeito da enunciação, formado pelo enunciador e pelo enunciatário, não para presentificar o passado, mas para tornar presente a sua ausência. Trata-se de uma afirmação da falta.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó

Meu avô

Tomásia Rosa

Onde estão todos eles?

A pergunta feita na primeira parte é retomada (―Onde estavam os que há pouco/ Dançavam/ Cantavam/ E riam/ Ao pé das fogueiras acesas?‖), assim como a resposta (Estavam todos dormindo/ Estavam todos deitados/ Dormindo/ Profundamente):

Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo

Profundamente.

Há, como vemos, uma diferença sutil, mas crucial entre a primeira vez em que a pergunta e a resposta aparecem no texto, na segunda estrofe, e essa que acabamos de mencionar: o tempo verbal. Primeiro é empregado o pretérito imperfeito (―Estavam‖) e, depois, o presente com aspecto durativo (―Estão‖). Se os verbos coincidem quanto ao aspecto, durativo contínuo, que insere aqueles que dormem num sono congelado, não se pode afirmar o mesmo quanto ao sistema temporal de cada um. O imperfeito pertence ao sistema enuncivo, que possui um marco temporal não-concomitante ao instante da enunciação (FIORIN, 1996, p. 154), enquanto o presente concerne ao enunciativo. A primeira resposta, então, coerentemente à pergunta, afasta aqueles que dormem do presente do narrador e também do enunciador. Já a segunda os aproxima, trazendo o passado para o presente, ao menos da narração, e permitindo a conjunção temporal com a infância. Isso significa que, apesar da ausência física da festa e dos entes queridos, o vínculo temporal continua40. A memória feita narrativa é que permite a realização da festa outra vez no poema.

40Essa observação tem como base a análise proposta por Tatit (2001) para ―Saudosa maloca‖,

de Adoniran Barbosa: ―Em razão da ausência física da maloca (e de tudo de bom que ela representava), o sujeito refaz sua relação com o objeto, estabelecendo a conjunção num plano nostálgico, no qual recupera subjetivamente aquilo que está fora do seu alcance material‖ (p. 39).

O sono é o responsável pelas rupturas vividas pelo sujeito, sua separação em relação à festa de São João e em relação ao próprio passado. Essa cisão encontra um correspondente no plano da expressão: o vazio – em termos de preenchimento de página – que existe entre as duas partes do poema, como dissemos.

Da primeira vez em que aparece no poema, a resposta dada à pergunta constitui um aumento gradativo da intensidade do sono e, numa relação inversa, uma compressão da extensidade: deitados → dormindo → profundamente. Trata-se do sono profundo, vivido como interrupção – algo que aparece de súbito, tomando o sujeito de surpresa.

Entretanto, a figura repetida do sono profundo (ela já é anunciada também no título ―Profundamente‖ e no advérbio ―silenciosamente‖), que aparece na segunda resposta, aquela que encerra o poema, funciona como um mecanismo que se, por um lado, duplica a intensidade, por outro, prolonga a ausência daqueles que dormem, o que indica o aumento da extensidade. Eis a morte – vivida como falta amplificada. A repetição da gradação torna a morte, então, também extensa, indicando a permanência da ausência do passado no presente da narração (―Estão todos dormindo profundamente‖).

Assim, a figura do sono profundo recobre inicialmente duas cifras tensivas: o sono pontual (no nível tensivo: une alta intensidade e pequena extensidade), que o sujeito percebe como ruptura e impacto, e o sono durativo (no nível tensivo: une alta intensidade e grande extensidade), que se prolonga por todo o poema, assim como por todo o campo de presença do sujeito, que se abre para abarcar um tempo passado que dura no presente. Nem por isso esse sono profundo durativo – a morte – é menos impactante. Embora ocorra como ruptura e, assim, pontualidade na percepção sensível, a morte torna-se durativa nos eventos narrados; afinal as pessoas não irão despertar do sono profundo. Isso se comprova na sintaxe temporal, por meio da recorrência do pretérito imperfeito na primeira parte do poema.

A leitura da segunda parte faz com que a primeira ganhe novos sentidos. O advérbio ―ontem‖, inicialmente entendido como marcador de tempo que indica o dia anterior a hoje, pode ser agora compreendido como a noite da festa de São João, quando o narrador era um menino de seis anos. Corrobora essa análise o paralelismo existente entre as duas partes: o adulto dormiu e

não viu o final da festa assim como a criança. Logo, como observa Fiorin (2008, p. 29), ―ontem‖ pode ser a realização de uma embreagem temporal, que consiste em utilizar um tempo no lugar de outro e que resulta na anulação da oposição existente entre eles. É interessante notar que Arrigucci também faz a leitura de ―ontem‖ como sendo o que a semiótica entende por embreagem, mesmo sem utilizar esse conceito: ―[...] tomando o mundo do passado como se fosse presente, o sujeito na verdade se reencontra consigo mesmo, com o menino que ele foi um dia [...]‖ (1990b, p. 227).

Assim, a utilização do advérbio ―ontem‖ para tratar de um passado longínquo presentifica esse passado, aproximando-o da enunciação. É importante notar, no entanto, que o passado presentificado não ocupa todo o presente, substituindo-o por completo, mas convive com ele, preenche-o. Há um efeito de simultaneização dos tempos, já que a narrativa da memória torna possível sua coexistência. Os dois sentidos de ―ontem‖ – dia anterior a hoje e a infância perdida – coabitam o poema, mas não com o mesmo grau de presença. Cria-se a ambiguidade própria às embreagens.

Como dissemos no início deste capítulo, os poemas ―Profundamente‖, ―Evocação do Recife‖, ―Infância‖ e ―Recife‖ podem ser considerados autobiográficos. Os elementos que nos permitem fazer essa afirmação, no entanto, não são muitos. Voltando para a primeira parte de ―Profundamente‖, é interessante notar que não há, nela, marcas que indiquem que esse é um texto autobiográfico. O que mais se aproxima disso é o uso da primeira pessoa, que cria o efeito de identificação entre o protagonista e o narrador. Entretanto, nos textos autobiográficos, conforme mostra Lejeune (1996), existe ainda um segundo efeito de identidade, entre o ator e o enunciador pressuposto, realizado, por exemplo, pela coincidência do nome, entre outros recursos.

No caso de Itinerário de Pasárgada (1984), obra em prosa de Manuel Bandeira e de caráter autobiográfico, além da coincidência do nome entre o enunciador pressuposto e o protagonista, é realizada ainda uma embreagem de pessoa do tipo que confunde os níveis do narrador e do enunciador, criando a identificação entre ambos (FIORIN, 1996, p. 122-123). Essa embreagem é realizada por mecanismos diversos. Um deles é a sugestão de que é o narrador o responsável por escrever o texto, como se vê no trecho: ―Confesso que já me vou sentindo bastante arrependido de ter começado estas

memórias‖ (p. 29). Outro mecanismo que também gera tal efeito é a narrativa do processo de criação de certos poemas, afinal, quem os assina é Manuel Bandeira, o autor do livro, o nome na capa, que, por um efeito do discurso, torna-se idêntico ao narrador: ―[...] eis o clima dentro do qual compus os versos O ritmo dissoluto [...].‖ (p. 72). Todos esses recursos não são empregados nem em ―Profundamente‖ nem nos demais poemas estudados.

Com relação às marcas autobiográficas, a segunda metade de ―Profundamente‖ é um pouco mais rica. Há a menção da infância e dos avós, que pode funcionar como elemento biográfico, além da de nomes de personagens que povoaram a infância do autor (entendido aqui como entidade implícita), como outras obras revelam. Aliás, tais nomes são a única marca que permite fazer a identificação entre o ator biografado e o enunciador, e isso graças à alusão intertextual. Se, por um lado, essa é uma marca frágil, por outro, esses nomes são muito recorrentes na obra de Manuel Bandeira e, assim, suficientes para traçar o vínculo e trazer à tona a infância. São mencionados no primeiro capítulo de Itinerário de Pasárgada. Além disso, fazem-se presentes em outros poemas. Temos, assim, contato com Totônio Rodrigues em ―Evocação do Recife‖ e com Tomásia em ―Recife‖, conforme foi comentado anteriormente. O avô aparece nos quatro poemas com os quais estamos trabalhando; mais do que o avô, a morte do avô está sempre presente. Essas são algumas das figuras que condensam o sentido de infância na obra de Bandeira.

Na segunda parte de ―Profundamente‖, aparecem ainda uns poucos antropônimos, alguns sob a forma de apelidos. Não é fornecida muita informação a respeito das pessoas nomeadas: a ligação que possuem com o menino aparece somente em alguns casos (―Minha avó‖ ou ―Meu avô‖) e elas não realizam nenhuma ação no texto. Essa falta de detalhamento faz com que a aparição desses nomes não contribua tanto para a criação do efeito de realidade, como de uma realidade externa à memória. Sua função é realmente a de trazer para o texto o universo da infância, de uma infância particular e única, apresentada de modo bastante subjetivo, familiar, como evidencia o uso de apelidos, do marco temporal ―seis anos‖, em oposição a fatos históricos, por exemplo. Trata-se, assim, da infância da memória, e não exterior a ela.

Essa forma de construir a figuratividade no poema ajuda a recriar o elo, ao menos temporal, com o passado, aproximando-o do narrador e do enunciador, o que é corroborado pelo uso do presente na segunda resposta (―Estão todos dormindo‖), já discutido anteriormente. Se a morte, estado no qual se encontram os avós, Totônio Rodrigues, Tomásia e Rosa, é vivida como amplitude, a escritura das memórias permite resgatar o tempo da infância e todos os entes queridos. Entretanto, eles são evocados no poema, insistimos, somente por meio da afirmação da perda.