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3 “I NFÂNCIA ”: A MEMÓRIA COMO VISÃO

O poema ―Infância‖ começa de modo abrupto: ―Corrida de ciclistas‖. Logo vem a possibilidade de algum entendimento: ―Só me recordo de um bambual debruçado no rio‖. Esse verso insere a primeira imagem em um passado lembrado pelo narrador, que fala a partir de um tempo presente, enunciativo (―me recordo‖). O sintagma é apresentado como um fragmento da

infância, que surge de repente. Invade o campo de presença do narrador sem qualquer preparação. O narrado sai de um estado pressuposto de virtualização, correspondente à ausência de determinada grandeza em seu campo perceptivo – o esquecimento –, e passa à realização, que tem como correlato a presença dessa mesma grandeza.

A partir daí, é construída uma sequência de imagens que parecem ser narradas à medida que vêm à memória do sujeito recordador, o que faz lembrar o poema ―Evocação do Recife‖. A extensão dos versos também é variada, produzindo o efeito de possuírem a dimensão de cada reminiscência. Verifica-se, então, o desejo por parte do narrador de deixar-se tomar pela memória, que parece não organizar os eventos em sequência; muito pelo contrário, pode mostrá-los como simultâneos ou ligar experiências que aparentemente são muito distantes.

O que parece dificultar o contato direto do sujeito com as lembranças é o tempo, apresentado no poema como figura. Ele é o filtro que se interpõe entre o sujeito e as experiências vividas na infância. Podemos, então, entender o tempo, nesse poema, como a concretização do antissujeito.

Quem me dera me lembrar da teta negra de minh‘ama-de-leite... ... Meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo.

Apesar dos pontos comuns, ―Infância‖ e ―Evocação do Recife‖ são poemas que apresentam diferenças. Se ―Evocação do Recife‖, pelo modo como as reminiscências aparecem para o narrador e ainda para o enunciador e o enunciatário, faz lembrar um filme em Super-8, que traz uma sequência de cenas do passado em um ritmo levemente entrecortado, ―Infância‖, por seu ritmo ainda mais marcado por saltos e interrupções, pode ser comparado a um álbum de fotografias, uma vez que o efeito de congelamento das imagens é muito maior neste do que naquele poema. Esse efeito é criado principalmente pelo pequeno emprego de conectivos ligando a série de lembranças, pela organização paratática do texto (também presente em ―Evocação do Recife‖) e pela abundância de frases sem verbos ou com verbos empregados em suas formas nominais, como em: ―Corridas em círculos riscados na areia...‖, ―Véspera de Natal... Os chinelinhos atrás da porta...‖ e ―Eu, junto do tanque, de

linha amarrada no incisivo de leite, sem coragem de puxar‖. A maneira fragmentada de reconstruir a infância confere ao poema um efeito de aceleração do conteúdo, uma vez que há um salto de uma lembrança para a outra e que, conforme já mencionamos, a entrada de cada bloco de memória no campo de presença do sujeito faz-se de forma repentina. Conforme afirma Rosenbaum, o poema solicita:

[...] uma leitura tão vertiginosa quanto a aparição das visões para o poeta. De fato, a impressão que se tem é a de que o eu lírico tem domínio apenas parcial de suas lembranças, tendo que se submeter ao material que a associação livre lhe fornece (1993, p. 57).

―Poesia de naufrágios!‖, exclama o narrador, não sabemos se a respeito do tio ou de sua própria poesia, que traz pedaços da infância para a experiência presente.

Além da aceleração do conteúdo, o recurso de utilizar as formas nominais dos verbos também cria o efeito de que as imagens foram congeladas, não sofrem a ação do antissujeito (o tempo), podem ser vistas pelo narrador, assim como pelo sujeito da enunciação (enunciador e enunciatário), como no momento em que se realizavam pela primeira vez. Elas estão paralisadas. A celeridade do fluxo de lembranças se choca, portanto, com a desaceleração de cada imagem recordada.

Reforça a semelhança de ―Infância‖ com a fotografia o fato de a visão ser o sentido que se sobressai no poema. É o que se lê no verso: ―...Meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo‖. Logo, como nos outros dois textos já comentados, neste também encontramos uma relação estreita entre a memória e os sentidos, com a peculiaridade de haver, em ―Infância‖, um predomínio do sentido da visão. É como se o narrador estivesse enxergando aquelas cenas da infância novamente, junto com o menino que foi. Ele vê o que a criança via; ou a criança volta a ver pelos olhos do adulto: o pátio do hotel com os brinquedos no chão, tio Cláudio erguendo uma ponta de mastro destroçado, a ratazana enorme, a obscuridade da alcova de música, as teclas amarelecidas. Tal centralidade da visão explica por que o passado é retomado a partir da espacialidade. As imagens recriadas verbalmente parecem estar ligadas aos espaços e vêm à tona conforme o narrador se

desloca, por meio da linguagem, pelos lugares por onde passou quando menino. É necessário enfatizar, no entanto, que os outros sentidos também são convocados, por exemplo, quando se vê tocando a ―trombeta de papel‖ (audição), quando menciona os ―tapetinhos de peles de animais‖ (tato), o ―silêncio‖ da alcova de música (audição) ou ―as cordas desafinadas‖ do piano (audição).

Essa experiência corporal propiciada pela memória vem carregada dos sentimentos da criança, como o medo da dor de arrancar o dente, o susto e o encanto diante de seu primeiro gesto de magia, o deslumbre com os brinquedos trazidos pela fada, o medo dos gatunos, o impacto do primeiro contato com a sexualidade. A infância é um período construído no poema como o encadeamento de fatos que surpreendem e encantam, um período de vivências arrebatadoras. Se os eventos são mostrados como impactantes para a criança, eles também se apresentam como afetando o narrador adulto, o que se nota na forma de organizar o texto, da qual já tratamos, que mostra as reminiscências surgindo de maneira abrupta, nas exclamações e na escolha de um léxico que conota afetividade dominante, por meio do emprego de diminutivos, dos pronomes possessivos e da interjeição ―Ai‖ (―reloginho‖, ―presentinhos‖, ―chinelinho‖, ―tapetinhos‖, ―meu tio Cláudio‖, ―meu avô materno‖, ―minha avó‖, ―Ai mundo de papagaios de papel, dos piões, da amarelinha!‖). Os diminutivos possuem o papel ainda de recuperar o ponto de vista infantil sobre os acontecimentos e, somados aos possessivos, reforçam o elo entre o narrador e o passado.

O final do poema rompe a sequência de imagens para falar do amadurecimento:

Descoberta da rua!

Os vendedores a domicílio.

Ai mundo dos papagaios de papel, dos piões, da amarelinha!

Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou, imperiosa e ofegante, [para um desvão da casa de Dona Aninha Viegas, levantou a sainha e disse mete. Depois meu avô... Descoberta da morte!

A saída da infância corresponde claramente a uma abertura do espaço, dada no nível figurativo. O menino deixa a casa e passa a frequentar a rua. É na rua que vive sua iniciação sexual, narrada com o emprego de quatro verbos

no pretérito perfeito que possuem o aspecto da dinamicidade e do acabamento: ―tirou‖, ―levou‖, ―levantou‖ e ―disse‖. O acontecimento marcante, apresentado sem preparação, irrompe em um verso bastante logo, construído por orações coordenadas que devem ser lidas quase que de uma vez só. São todos recursos que alimentam a aceleração. Para a delegação de voz à menina, são enfraquecidos os limites oferecidos pelo discurso direto, no que diz respeito à falta de aspas, travessão, letra maiúscula, o que viabilizaria a pausa.

Como em ―Evocação do Recife‖, a infância e o poema vão claramente caminhando para um fim, marcado pela morte do avô (―Depois meu avô... Descoberta da morte!‖). Essa é a etapa derradeira do amadurecimento da criança. Como os outros acontecimentos vividos na infância, a morte é impactante, e talvez aqui o texto chegue à sua máxima intensidade e, assim, encontre o seu limite: ―A experiência de finitude vem com a morte do avô; dada sua intensidade, apenas um verso curto, puramente nominal, sem qualquer ação que mova o leitor, fixa a imagem no impacto descrito‖ (ROSENBAUM, 1993, p. 69).

Com dez anos vim para o Rio.

Conhecia a vida em suas verdades essenciais. Estava maduro para o sofrimento

E para a poesia!

Torna-se pertinente perguntar de que forma é construído no poema o amadurecimento. O narrador diz explicitamente que estava maduro aos dez anos para a poesia e para o sofrimento por já ter conhecido as verdades essenciais da vida, como a morte e a sexualidade. Além disso, o poema passa a ser mais temático e menos figurativo nessa última estrofe, caminhando para uma abstração maior. Elementos sensíveis são deixados de lado e no lugar são empregados termos como ―verdades essenciais‖. As últimas linhas são bastante expositivas. Comportam períodos completos, com verbos conjugados e que possuem uma relação implicativa, diferente da que vinha sendo apresentada até então. Podemos ler nessas últimas palavras: conhecia a vida em suas verdades essenciais, estava, portanto, maduro para o sofrimento e para a poesia. Logo, o amadurecimento corresponde a uma desaceleração no nível tensivo em direção ao inteligível: a uma diminuição do envolvimento

afetivo do sujeito, que agora já teve suas primeiras experiências, aquelas mais fortes e mais verdadeiras, segundo o narrador.

Ao final do poema, é possível perceber que o álbum de fotografias, que no início parecia seguir apenas a ordem da memória, foi sendo organizado sob o simulacro de uma forma cronológica. Essa ordenação pode ser notada, entre outros recursos, pelo emprego de advérbios e locuções adverbiais (―Ainda em Petrópolis‖, ―Depois a casa em São Paulo‖, ―Depois... a praia de Santos...‖, ―Depois Petrópolis novamente‖, Véspera de Natal‖, ―Manhã seguinte‖, ―Uma noite‖, ―Depois meu avô‖) e pela referência às idades (o poema se inicia com as memórias de quando tinha em torno de três anos, ―Três anos?‖, e termina com as de quando possui dez, ―Com dez anos vim para o Rio‖). As mudanças de espaço topológico também contribuem para determinar a ordem em que os eventos são dispostos no texto: Petrópolis, pátio do hotel, casa de São Paulo, a praia de Santos, Petrópolis novamente, chácara da Gávea, casa da rua Don‘Ana, volta a Pernambuco, a casa da Rua da União (cada lugar da casa: o pátio, o banheiro, o cambrone, a alcova), a rua, o Rio. É criada no poema uma equivalência entre o percurso espacial e o percurso temporal do ator do enunciado, já que a sintaxe do espaço contribui para organizar o tempo. Uma sequência dos fatos narrados é, então, sugerida, mesmo com pequeno emprego do pretérito perfeito.

O efeito de cronologia faz um contraponto à aceleração gerada pela ausência de conectivos, entre outros elementos, desacelerando o conteúdo por meio de uma programação previsível, que organiza a expectativa do enunciatário. Essa ordem que obedece a uma temporalidade estranha à da memória parece produzir uma tensão em relação ao modo como as imagens são construídas no poema, já que, como dissemos, em ―Infância‖, cria-se o efeito de que as lembranças vão sendo narradas conforme surgem à memória.

Cria-se, assim, uma oposição entre a temporalidade dinâmica e a temporalidade estática, bastante frequente no romance autobiográfico e que aparece também em ―Evocação do Recife‖, conforme já foi comentado. Embora dos quatro poemas selecionados, este seja o que possui a organização que mais se aproxima da autobiografia em prosa em relação à programação

temporal, é nele que a tensão entre os dois tempos é mais exacerbada, já que tanto a paralisia é levada a seu extremo quanto a aceleração47.

O uso do espaço para determinar a passagem do tempo contribui também para que não seja indicado, com exatidão, o ano em que os fatos narrados ocorreram; apenas se sabe que foram vividos em um intervalo que vai dos três aos dez anos do narrador. Assim, o tempo é recriado mais como tempo autobiográfico, cujos marcadores são dados pela experiência pessoal, do que como tempo histórico. Mesmo os topônimos mantêm essa ligação com a biografia do sujeito. Não são incorporados pontos turísticos, grandes avenidas ou monumentos históricos, pois, insistimos, a ênfase do poema parece ser recriar a lembrança de um lugar ou de um tempo como experiência sensível.