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O discurso da memória: entre o sensível e o inteligível

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Academic year: 2017

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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Linguística

O

DISCURSO DA MEMÓRIA

ENTRE O SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL

Mariana Luz Pessoa de Barros maluzpessoa@hotmail.com

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Linguística.

Orientador: Profª. Drª Norma Discini de Campos

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A

GRADECIMENTOS

À professora Norma Discini de Campos, que me guiou com carinho, muito entusiasmo, sabedoria e rigor.

Ao professor José Luiz Fiorin, meu primeiro orientador, pelo apoio afetuoso, pelas inúmeras contribuições desde o mestrado e pela leitura cuidadosa, como sempre, do relatório de qualificação.

Ao professor Luiz Tatit, pelos cursos inspiradores e pelas excelentes sugestões no exame de qualificação.

Ao professor Denis Bertrand, que me acolheu tão bem em Paris e deu grandes contribuições ao trabalho.

Aos professores Ivã Carlos Lopes, Waldir Beividas, Antonio Vicente Pietroforte, Lucia Teixeira, Beth Harkot-de-la-Taille, Sémir Badir, Éric Landowski e Claude Zilberberg que em cursos, congressos, comunicações, conferências, reuniões contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa.

Aos professores do Departamento de Linguística e, em especial, aos professores Marcos Lopes, Esmeralda Negrão e Evani Viotti, grandes incentivadores.

Aos funcionários do Departamento de Linguística, Érica, Beh-Hur e Robson, por toda a assistência

Aos meus pais, Diana e Hyeróclio, pelo apoio incondicional de todas as horas, pelo afeto, pelas ajudas inúmeras, enfim, por tudo e ainda mais alguma coisa.

À minha irmã, Flávia, sempre interrompendo o meu trabalho com bolos e cafés. Ainda bem, a vida fica melhor assim!

À Lu, minha avó, pelo carinho de sempre.

Aos meus familiares, Murilo, Dario, Lucia, Regina, Gabi, Gui, Lícia, Henrique, Thyciara, pelos jantares ―de quarta‖. Isso também ajuda!

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Aos amigos queridos (Carô, Lucia, Fábio, Flávia, Manu, Lucimara, Paulo, Dri, Alê, Maíra, Camila, Martine, Pierre, Ramiro, Fred e tantos outros), pelo amparo, pela afeição.

Aos amigos semioticistas e também queridos, Carol Lemos, Kiko, Carol Tomasi, Ju Pondian, pela interlocução sensível e inteligível.

Ao pessoal do Grupo de Estudos Semióticos da USP e, em especial, ao Alexandre, à Bruna e à Dayane, pelos aprendizados partilhados.

Aos colegas do grupo Clássicos da Linguística, pelos debates calorosos que, certamente, estão refletidos neste trabalho.

Ao CNPq, pela bolsa concedida a esta pesquisa. À CAPES, pela bolsa de doutorado-sanduíche.

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R

ESUMO

Com base na teoria semiótica greimasiana e em seus desdobramentos na gramática tensiva, são analisados diferentes gêneros autobiográficos produzidos no Brasil, como a autobiografia literária em prosa, os poemas de caráter autobiográfico e os memoriais acadêmicos. Um dos objetivos deste trabalho é examinar a construção desses gêneros em relação com as esferas da comunicação de que participam: a esfera literária e a esfera acadêmica. Além disso, são analisadas as formas de adesão do enunciatário aos discursos, uma vez que, em cada gênero e mesmo em cada texto, o enunciador, ao apresentar retrospectivamente a sua vida, regulamenta de forma singular a entrada de grandezas no campo de presença do enunciatário. A análise do corpus permite propor duas formas discursivas de memória como categoria analítica dos discursos autobiográficos: a memória do acontecido e a memória-acontecimento. Mais da ordem do inteligível, a primeira manipula o enunciatário por meio de estratégias que privilegiam a legibilidade do texto, enquanto a segunda promove uma experiência, predominantemente, sensível. Os diversos gêneros que compõem o corpus desta pesquisa tendem a favorecer uma combinação específica entre essas duas formas da memória. Isso possibilita que eles sejam organizados num gradiente, que tem num dos extremos os memoriais acadêmicos e, no outro, os poemas de caráter autobiográfico. As autobiografias literárias em prosa se encontram entre as duas pontas, ora tendendo para um, ora para outro extremo.

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A

BSTRACT

Based on the French Semiotics theory and its segments in the tensive Grammar, this study analyses different sorts of autobiographical genres written in Brazil, such as the literary autobiographies in prose, autobiographical poems and academic autobiographies. One of the aims of this study is to examine the building up process of these genres and how they relate with the communication spheres they participate in: the literary sphere and the academic sphere. Moreover, as the enunciator uniquely regulates the introduction of objects in the enunciatee‘s presence field while recollecting past moments of his life, this study also analyses the different ways how the enunciatee adheres to the discourses in each genre and even in each text. The analysis of the corpus allows this study to propose two discursive types of memory as an analytical category: the memory of past event and the event memory. Being more intelligible, the former captures the enunciatee through strategies which highlight the legibility of the text, whereas the latter promotes an essentially sensitive experience. The different genres which compose the corpus of this research contribute to a particular combination between these two types of memory. Such combination leads to the organization of the autobiographical genres in a gradient which presents the academic autobiographies at one end and the autobiographical poems at the other. The literary autobiographies in prose lie between both ends, tending alternatively to one or another end.

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S

UMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

CAPÍTULO 1–A AUTOBIOGRAFIA LITERÁRIA EM PROSA: A CRIAÇÃO DO PASSADO ... 22

1 O gênero ... 23

2 Estudo de caso ... 28

2.1 Pedro Nava ... 32

2. 1.1 As três identidades do discurso autobiográfico: uma comparação entre Baú de ossos e Galo-das-trevas ... 32

2.1.2 Memória e amplitude ... 51

2.1.3 Sobre a saudade e o ressentimento ... 71

2.2 Graciliano Ramos ... 79

2.2.1 Infância: memória e fragmentação ... 79

3 Considerações finais: a prosa literária autobiográfica ... 86

CAPÍTULO 2–POESIA: MEMÓRIA E PRESENÇA EM MANUEL BANDEIRA ... 94

1 ―Profundamente‖: a festa e a morte ... 103

2 ―Evocação do Recife‖: o fluxo das lembranças ... 111

3 ―Infância‖: a memória como visão ... 121

4 As duas cidades: ―Recife‖ ... 127

5 Considerações finais: os poemas autobiográficos ... 137

CAPÍTULO 3–O MEMORIAL ACADÊMICO: A IMAGEM DO PROFESSOR-PESQUISADOR 155

1 A vida como itinerário ... 163

1.1 Afeto e movimento ... 163

1.2 A ciência e a memória ... 178

2 Duas memórias ... 184

2.1 Da práxis enunciativa ao gênero ... 184

2.2 O éthos do memorialista: ―aprovado com distinção e louvor‖ ... 202

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CAPÍTULO 4–ENTRE MEMÓRIAS E GÊNEROS ... 238

1Os níveis do discurso autobiográfico ... 239

2 Identidade: uma questão de graus ... 243

3 A passagem do tempo ... 252

4 A memória-acontecimento e a memória do acontecido ... 266

5 Considerações finais: a relação entre o enunciador e o enunciatário no discurso autobiográfico ... 288

CONCLUSÃO ... 290

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I

NTRODUÇÃO

Inventei um menino levado da breca para me ser. Ele tinha um gosto elevado para chão De seu olhar vazava uma nobreza de árvore. Tinha desapetite para obedecer a arrumação das coisas

Manoel de Barros

Memórias inventadas

As Memórias inventadas: a terceira infância (2008, I), de Manoel de Barros, apresentam como ―os doadores de suas fontes‖: os ―pássaros‖, por propiciarem o aprendizado dos ―despreendimentos das coisas da terra‖; os ―andarilhos‖, por fazerem uso da ignorância, e a criança que ―me escreve‖. O sujeito que se recorda de seu passado não quer colocar ―data em sua existência‖, prefere antes ―encher o tempo‖: ―Nossa data maior era o quando [...] Tem hora que eu sou quando uma pedra‖ (BARROS, 2007, XV). A ressignificação da língua é festejada nessa obra, assim como todas as possibilidades dadas pela imaginação.

Que concepção de escritura autobiográfica podemos depreender de uma obra em que se afirma ―Tudo o que não invento é falso‖? Com certeza não é a mesma da que se revela em Memórias (1947),de Humberto Campos, livro cujo narrador diz preferir ―confessar a ignorância a recorrer à fantasia‖ (p. 11), quando se propõe a discorrer sobre suas origens. Desde o ―Prefácio‖, suas páginas estão repletas de certezas, de asserções:

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Se a obra de Manoel de Barros focaliza as miudezas – os ―pardais‖, as ―rãs‖, as ―coisinhas seráficas‖, o ―regador‖, as ―brancas bostas‖ das garças –, a de Humberto Campos conta a história dos grandes feitos de um homem que, indo contra o destino que acreditava lhe caber, chega a ocupar ―uma poltrona de Academia e uma cadeira de Parlamento‖ (1947, p. 8).

Em obras separadas por mais de meio século, a própria memória, com suas faculdades de esquecer e lembrar, parece não ser compreendida de forma semelhante. Em Manoel de Barros, a memória aparece associada à ―invenção‖, à ―imaginação‖, à ―descoberta‖, sendo marcada pela incoatividade – ela é o começo de alguma coisa – , em Humberto Campos, ela é o ponto de chegada, o ―baú‖ de onde são retirados os fatos importantes, como eles foram – e não como são –, e que devem sobreviver à morte do autor e fazer seu nome perdurar: ―Que pretendo eu, em verdade, ao idear uma obra vasta, uma bibliografia numerosa? Pretendo, apenas, que meu nome me sobreviva, que se fale de mim quando eu já repousar no seio da terra‖ (1947, p. 7-8). Algumas vezes, o narrador até confessa que, apesar de sua sinceridade, é possível que a memória altere certos eventos lembrados, mas isso apenas atribui maior credibilidade ao restante do texto.

Podemos, a partir da concepção de memória veiculada em cada texto, perguntarmo-nos que verdade cada um deles constrói, pois a memória pode ser apresentada dominantemente como retrato fiel do passado ou como criação. Talvez decorra daí o interesse pelo exame das relações entre ―ficção‖ e ―realidade‖ que se pode notar nos diversos estudos da literatura autobiográfica.

Para Galle e Olmos, as incertezas que rondam o gênero autobiográfico parecem ser uma marca do século XX:

[...] no século XX, as certezas nas quais as autobiografias se fundavam,

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Dessas observações iniciais, nasce um primeiro interesse deste trabalho de tratar não mais das relações entre ―ficção‖ e ―realidade‖, numa perspectiva referencial, mas do contrato de veridicção que se estabelece entre enunciador e enunciatário, tal como entendido pela semiótica.

A peculiaridade da semiótica greimasiana no tratamento dado ao discurso autobiográfico está na possibilidade de deslocar um pouco as questões brevemente esboçadas, passando da ordem do ser à da relação entre o ser e o parecer. Assim, é possível deixar de lado a busca por definir se as cenas autobiográficas criadas em cada enunciado são reais ou ficcionais e passar à tentativa de entender os efeitos de verdade propostos pelos discursos a seus leitores, e também como a arquitetura memorialística os atinge e os afeta.

Para a semiótica, a enunciação é sempre pressuposta. Tal concepção da enunciação exclui de seu âmbito de pertinência a pessoa de carne e osso e não caracteriza os discursos de acordo com o seu referente externo, mas a partir de um contrato fiduciário firmado pelos parceiros da comunicação, o enunciador e o enunciatário, que determina o estatuto veridictório do discurso. Esse posicionamento funda-se na compreensão da ―[...] participação da língua na construção do mundo dos objetos, e da relatividade, correspondente à diversidade das sociedades humanas, do recorte do mundo das significações‖

(GREIMAS, 1970, p. 51; tradução nossa)1. Assim, a definição de um discurso como autobiográfico passa pelo exame dos efeitos de sentido ou simulacros criados na própria imanência discursiva.

Esses efeitos estão vinculados aos gêneros, que estabelecem formas relativamente estáveis para sua produção, dentro de uma cultura e de um período determinados. Assim, a semiótica entenderá os textos autobiográficos como um discurso que não designa a pessoa efetiva, mas produz um simulacro do escritor no interior da obra. Conforme afirma Bakhtin:

Mesmo se ele (autor) escrevesse uma autobiografia ou a mais verídica das confissões, como seu criador, ele igualmente permanecerá fora do mundo representado. Se eu narrar (escrever) um fato que acaba de

1 ―[...] participation de la langue à la construction du monde des objets, et de la relativité, correspondant à la diversité des sociétés humaines, du découpage du monde des

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acontecer comigo, já me encontro, como narrador (ou escritor), fora do tempo-espaço onde o evento se realizou. É tão impossível a

identificação absoluta do meu ―eu‖ com o ―eu‖ de que falo, como

suspender a si mesmo pelos cabelos (1998, p. 360).

Não se trata de negar a realidade, pois, conforme afirmam Beividas e Ravanello: ―A linguagem ou o discurso não cria o mundo ex nihilo, mas uma vez em cena, o mundo está recriado à sua imagem e estrutura‖ (2006, p. 15). Além disso, não se trata de negar a história. Pelo contrário, a imanência constrói em si a transcendência social e histórica. Segundo Bertrand (2003a, p. 406), é justamente por considerar que as formas de ajuste entre as semióticas do mundo natural2 e as manifestações discursivas não são fixas, mas culturalmente marcadas pelo uso, que a teoria semiótica não classifica os textos de acordo com o seu ―referente‖, opondo os que teriam ―referentes imaginários‖ àqueles que teriam ―um referente real‖.

Ao herdar a noção saussuriana de signo e ainda de valor, a semiótica descola a linguagem de qualquer ―naturalização‖, libertando-a justamente para a história3. Como mostra Discini:

A noção de valor também ampara a ideia de sistemas de crenças sociais. As representações simbólicas obedecem a um sistema que as rege, logo não se pode supor que sejam dadas aleatoriamente. Elas se organizam segundo certa formação ou rede estrutural. A estrutura não é a-histórica, e pensar isso acaba por clarear a própria noção de formações discursivas, que subsidiam os temas e figuras do discurso. A assunção de valores ideológicos pela enunciação reverbera na axiologia estabelecida no nível fundamental, e, sendo a recíproca verdadeira, todos os patamares da construção do sentido esboçam certo lugar que o sujeito ocupa no mundo (2009, p. 598).

Por conseguinte, as relações entre enunciador e enunciatário são pensadas, na semiótica, a partir da noção de contrato e mais especificamente de contrato veridictório ou enunciativo. Para Greimas e Courtés (2008), a problemática da verdade pode ser interpretada como a inscrição e, assim, a

2 Greimas (1970) define o ―mundo natural‖ como uma semiótica e propõe considerar as

relações entre os sistemas linguísticos e os sistemas de significação do mundo natural, não como uma referência do simbólico ao natural, mas como uma rede de correlações de dois níveis de realidade significante para o homem.

3 Para Saussure (1969), só existem diferenças na língua. A significação é dada pelo valor, ou

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leitura das marcas que fazem um discurso-enunciado se apresentar como verdadeiro ou falso, mentiroso ou secreto. Entretanto, conforme evidenciam os autores, esses dispositivos não garantem a construção da verdade, que depende de mecanismos epistêmicos presentes nas duas extremidades da comunicação, nas instâncias do enunciador e do enunciatário: ―um crer -verdadeiro deve ser instalado nas duas extremidades do canal de comunicação, e é esse equilíbrio, mais ou menos estável, esse entendimento tácito entre dois cúmplices mais ou menos conscientes que nós denominamos contrato de veridicção‖( p. 530).

Greimas inicia ―Le contrat de véridiction‖ (1983, p. 103-113) dizendo que os modos de leitura de um texto estão condicionados às variações históricas dos contextos socioculturais. Para exemplificar tal afirmação, recupera as reflexões de Y. Lotman sobre textos recebidos como religiosos na Idade Média e que passaram a ser lidos como literários alguns séculos depois. No entanto, o autor enfatiza que, embora um texto possua múltiplas isotopias de leitura, ele não aceita qualquer leitura:

Esta resistência do texto a certas variações ideológicas contextuais e não a outras explica-se apenas se é aceito que o texto mesmo possui marcas próprias de isotopias de leitura (e no caso que nos preocupa, suas marcas de veridicção), que limitam as possibilidades de variação (GREIMAS, 1983, p. 106; tradução nossa)4.

Para Greimas, uma tipologia estrutural das atitudes epistêmicas, ou ainda, das interpretações conotativas dos discursos deveria ser possível. Ele chega mesmo a sugerir alguns exemplos, como a exploração da materialidade do significante para assinalar a verdade do significado.

Na continuidade da proposição de Greimas, Fiorin, em ―A crise da representação e o contrato de veridicção no romance‖ (2008), procura depreender, a partir, principalmente, da análise da produção brasileira, grandes procedimentos de representação da realidade no romance, compreendendo a

4―Cette résistance du texte à certaines variations idéologiques contextuelles et non à d‘autres

ne s‘explique que si l‘on accepte que le texte lui-même possède ses propes marques

d‘isotopies de lecture (et dans le cas qui nous préoccupe, ses marques de véridiction) que en

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noção de representação a partir da poiese, ou seja, ela é também construção, efeito de sentido. Distingue os seguintes contratos: objetivante, subjetivante, semiótico, metalinguístico.

No mesmo quadro teórico, Bertrand (2003a) também se dedica à noção de contrato veridictório, mas a partir de uma reflexão sobre a figuratividade. O autor propõe quatro grandes vias de leitura do texto literário, cujo centro é a modalidade do crer: o crer assumido, o crer recusado, o crer crítico e o crer em crise.

Após criticar a concepção do ―estruturalismo estático‖, que estabelece uma ―correspondência‖ unívoca e mecânica entre as vias figurativas da linguagem e o mundo, Bertrand retoma e desenvolve ideias apresentadas por Greimas em Da imperfeição (2002). A figuratividade e o mundo seriam antes duas instabilidades que procuram, em vão, uma compatibilidade. A correspondência fica a cargo das convenções: ―[...] a correspondência se faz pelo crivo cultural que lhe é aplicado, tornando possível, por meio de convenções coercitivas mas provisórias, consistentes mas precárias, a legibilidade figurativa‖ (p. 405). Para o semioticista é então a dimensão figurativa que rege os diferentes modos de participação e adesão na leitura:

Sob o figurativo está, portanto, o crer; existe, como se diz na semiótica, um ―contrato de veridicção‖, uma relação fiduciária de confiança e de crença entre os parceiros da comunicação, que especifica as condições da correspondência, um crer partilhável e partilhado no interior das comunidades linguísticas e culturais, que determina a habilitação dos valores figurativos e enuncia seu modo de circulação e validade. É esse contrato que tematiza a figuratividade do discurso e engendra diferentes regimes de persuasão e de adesão: o verossímil e a ficção, o real e o fantástico, o representável e o absurdo (p. 405-406).

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Discini, para romper com a dicotomia real/fictício, apoia-se também na veridicção. Para isso, recorre à noção de escopo, entendida como uma espécie de fiador da verdade, com função diferente no discurso da arte e no discurso da vida5: ―Entre as extremidades e com oscilação possível mais para uma e menos para outra, estão ancorados os gêneros discursivos. Aqueles de fronteira circulam em mais de uma esfera de comunicação‖ (2009, p. 610). No discurso da arte, a construção do referente se distanciaria do ―contexto pragmático imediato‖; o contrário ocorreria no discurso da vida. A autora ilustra suas afirmações com uma breve comparação entre a literatura e o jornal:

Para distinguir literatura de jornal temos em mente que há diferentes modos de fazer assentar o relato na veridicção. O mesmo se dá em relação aos gêneros. Naqueles relativos ao discurso jornalístico, como a reportagem, a veridicção não acolherá como próxima sua variável tipológica, a verossimilhança, mais móvel em relação ao escopo do

―contexto pragmático‖. A literatura goza de um grau maior de auto -centramento da palavra (p. 607).

As interações que se estabelecem entre o enunciador e o enunciatário variam conforme os diferentes gêneros discursivos. Se retomamos a primeira definição de ―contrato‖ dada pelo Dicionário de semiótica, temos: uma estrutura intersubjetiva que se constitui como ―[...] por um lado, uma abertura sobre o futuro e sobre as possibilidades da ação e, por outro, uma coerção que limita de certa forma a liberdade de cada um dos sujeitos‖ (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 100). Podemos pensar o gênero, então, como algo que organiza o contrato firmado entre os parceiros da comunicação.

Para definir gênero, teremos como ponto de partida o conceito estabelecido por Bakhtin e herdado pela teoria semiótica: ―No âmbito dos estudos do discurso, o gênero pode ser entendido como um acontecimento que orienta a presença sensível‖ (DISCINI, 2010, p. 11). Segundo Bakhtin, gêneros são tipos de enunciados relativamente estáveis:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as

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condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (2006, p. 261-262).

Para o pensador russo, os enunciados devem ser estudados em sua relação com o processo de interação, uma vez que a linguagem a as atividades humanas não podem ser dissociadas; daí a pertinência do exame da noção de esfera de circulação, ou seja, o domínio de atividades no qual circulam os gêneros. Esses domínios refletem nos gêneros suas condições específicas e suas finalidades, e, assim, interferem no modo como é estabelecida a interação entre enunciador e enunciatário. É possível pensar nisso ainda de outra forma: o exame dessa interação ajuda a descrever as relações entre esferas e gêneros, por meio da leitura das marcas recuperáveis nos discursos enunciados.

O gênero caracteriza-se, como aponta Bakhtin, por uma temática, um estilo e uma forma composicional. A temática ―[...] não é o assunto de que trata o texto, mas é a esfera de sentido de que trata o gênero‖ (FIORIN, 2005a, p. 102). É por meio do estudo da semântica discursiva que podemos depreender a temática dos gêneros estudados. A forma composicional diz respeito à organização do texto e da linguagem, ou seja, ajuda a compreendê-la o exame da discursivização dos tempos, espaços e pessoas, e o da textualização, daí os tipos textuais ganharem relevância. Eles são, segundo Fiorin (2005a, p. 102-103), construções textuais que apresentam determinadas características linguísticas, devendo ser observados a partir de relações de dominância e não de exclusividade (FIORIN, 2005a, p. 104). Os seis tipos mais comuns são: o narrativo, o descritivo, o injuntivo, o expositivo, o opinativo e o argumentativo. Esses três últimos reúnem-se geralmente num macrotipo, a dissertação.

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em estilo autoral, menos submetido às coercões genéricas. A literatura é mais propícia ao fortalecimento do estilo autoral, enquanto documentos oficiais, pertencentes a gêneros mais estereotipados, menos. Frisamos, no entanto, que mesmo o estilo autoral está, em parte, sujeito às coerções de gênero e que nem todos os gêneros são igualmente aptos para refletir a individualidade do estilo autoral.

O estudo do estilo leva-nos ao éthos, entendido como a imagem do enunciador, ou ainda, como corpo, voz e caráter, reconstituídos a partir de uma totalidade discursiva. Como afirma Maingueneau sobre o éthos: ―Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário através da própria fala do locutor‖ (2008, p. 14). Assim, o éthos será entendido, tal como vem sendo trabalhado pela semiótica de linha francesa, como um modo de ser e habitar o mundo depreendido enquanto imagem do enunciador e produzido pelas recorrências de um modo próprio de dizer, ou seja, por um fazer. Ele é determinado na relação de comunicação e, assim, só pode ser buscado pelo analista no próprio discurso. Nesse sentido, o estilo é o próprio éthos:

Pensamos no estilo como o modo próprio de dizer de uma enunciação, única, depreensível de uma totalidade enunciada. Essa perspectiva faz com que as relações de sentido convirjam recorrentemente para um centro que, longe de mostrar um sujeito empírico, cria o próprio sujeito (DISCINI, 2003, p. 17).

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A bula, conforme mostra Discini (2009), é um gênero bastante rígido e que, assim, não permite muita variabilidade na construção do simulacro do enunciador; pressupõe um estilo tendente aos efeitos de objetividade, com ―ares‖ de discurso científico e um corpo construído como asséptico e isento. Imaginemos agora uma bula de remédio que, ao contrário do previsto, possua um éthos passional, descomedido, ao qual falta a objetividade. A presença desse éthos, como fiador do discurso que é, em princípio, tornaria não confiável tudo o que é dito ali. Além disso, ela poderia criar uma sensação de desconforto, de estranhamento para o enunciatário, que pode ser indesejável, a não ser no caso de tratar-se de uma paródia do gênero. Não se deve esquecer que as coerções de gênero podem prestar-se a subversões.

Confirma-se, portanto, a pertinência do estudo do éthos para a compreensão das relações estabelecidas entre enunciador e enunciatário. Todorov afirma, em Os gêneros do discurso (1981, p. 52), que o gênero é um ―modelo de escrita‖ para o enunciador e um ―horizonte de espera‖ para o enunciatário.

Para cumprir o objetivo de examinar as relações entre contratos enunciativos e gêneros autobiográficos, selecionamos, para formar o corpus desta pesquisa, textos pertencentes a diversos gêneros que materializam o discurso da memória. O corpus de análise aqui reunido remete ao discurso acadêmico, no gênero memorial, bem como ao discurso literário em prosa e em verso. Para os primeiros, temos como totalidade de partida 20 exemplares reunidos em duas áreas do conhecimento: Letras e Biociências. Além disso, a demanda se circunscreve aos textos produzidos na situação de um concurso: de efetivação docente, de livre-docência, de titularidade. A instituição que acolhe tais concursos é a Universidade de São Paulo, no período que vai de 1970 até a contemporaneidade. Memoriais de outras instituições são trazidos para comparação.

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Quanto à poesia, trazemos quatro poemas de caráter autobiográfico de Manuel Bandeira (1993): ―Evocação do Recife‖ e ―Profundamente‖, de Libertinagem; ―Infância‖, de Belo Belo; ―Recife‖, de Estrela da tarde. Tais poemas foram incorporados à pesquisa, principalmente, por permitirem uma comparação entre o modo de fazer autobiografia em poesia e em prosa. Além disso, somados à prosa literária, possibilitam uma análise mais abrangente do discurso autobiográfico literário e ainda a contraposição desta nova totalidade aos memoriais acadêmicos. Viabiliza-se, assim, o estudo das relações entre contratos enunciativos e gêneros autobiográficos, bem como o das relações entre gêneros e esferas de circulação, no caso, a literária e a acadêmica.

A extensão do corpus explica-se na medida em que se verifica a flexibilidade dos gêneros autobiográficos, especialmente, no século XX, conforme frisam Galle e Olmos:

A autobiografia, em evidente sintonia com o romance do período, respondeu a esse desafio com experimentos formais que transgrediam os códigos precedentes e dinamizavam os princípios de produção discursiva das formas autobiográficas, estabelecendo um jogo de submissão e transgressão às leis do gênero que, longe de provocar uma recessão desse modelo de discurso, estimulou a produtividade dos autores até os dias de hoje (2009, p. 10).

Em síntese, os objetivos desta tese são: examinar as diferentes organizações do discurso autobiográfico, das quais emergem diferentes modos de interação entre o enunciador e o enunciatário; investigar as relações entre a variação dessas formas de interação e os gêneros autobiográficos e, por fim, discutir as relações entre esses gêneros e as esferas de atividade pelas quais circulam.

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respaldarão o exame das formas de adesão do enunciatário aos discursos autobiográficos, uma vez que, em cada gênero e mesmo em cada texto, o enunciador, ao apresentar retrospectivamente a sua vida, regulamenta de forma singular a entrada das grandezas no campo de presença do enunciatário. Pretendemos, assim, investigar de que forma o enunciatário é afetado sensivelmente nos diferentes gêneros autobiográficos e ainda como esse fazer sensibilizador do enunciador interfere na relação fiduciária estabelecida entre os parceiros da comunicação. Conforme afirma Discini:

Acolhemos o ponto de vista tensivo da semiótica, já que buscamos meios de obtenção da presença sensível, para, quem sabe, viabilizar uma maior integração da noção de estilo, autoral e dos gêneros, aos próprios estudos semióticos (2010, p. 3).

Nossa pesquisa conta ainda com as contribuições da teoria literária e de autores de outras linhas de análise do discurso, retomadas na perspectiva semiótica, além de dialogar com a filosofia da linguagem de M. Bakhtin, para a abordagem da noção de gênero, e com as reflexões a respeito da memória oriundas de outras áreas, como a filosofia, a sociologia e a psicologia. As questões teóricas e metodológicas serão apresentadas e discutidas ao longo do trabalho.

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falar de características gerais da prosa autobiográfica literária, já que a obra de Nava e a de Graciliano são bastante diferentes.

O segundo capítulo, ainda dentro da esfera literária, dedica-se ao estudo dos quatro poemas selecionados de Bandeira: ―Evocação do Recife‖; ―Profundamente‖; ―Infância‖; ―Recife‖. Enfatizamos nessa parte a noção de existência semiótica, pois o jogo de velar e desvelar o passado lembrado mostra-se determinante para a construção de sentido dos poemas. É preciso dizer que, ao fazer-se linguagem, a memória se configura como presença, e também como ausência, já que a escritura é a experiência presente de um tempo que não existe mais. Logo, presença e ausência parecem constituir os termos de uma categoria fundamental para o exame das relações entre memória e linguagem. Analisamos cada poema separadamente, para ao final apresentarmos alguns elementos comuns aos quatro textos e que parecem definir um modo singular de fazer autobiografia e de estabelecer a interação entre o enunciador e o enunciatário.

O memorial acadêmico constitui o foco do terceiro capítulo. Inicialmente, fazemos um estudo do simulacro do vivido elaborado no gênero e de seus efeitos sobre o enunciatário, buscando observar se é construído como ―linha reta‖, sem bifurcações, ou como sucessão de surpresas e desvios. Em seguida, a partir da comparação entre os textos, depreendemos dois modelos diferentes de memorial, enfatizando especialmente as diferenças de estilo e de constituição do éthos, e, consequentemente, as mudanças no contrato enunciativo.

O quarto capítulo antecipa, de certo modo, algumas conclusões da tese. Retomando aquilo que foi apresentado nos capítulos anteriores, confrontamos os diferentes gêneros estudados, o que possibilita a organização desses gêneros num gradiente tensivo. Inclinado à generalização e à formalização teórica, o capítulo propõe categorias de análise da organização geral do discurso autobiográfico que propiciam, entre outras coisas, o exame das relações entre enunciador e enunciatário.

(24)

C

APÍTULO

1

A

AUTOBIOGRAFIA LITERÁRIA EM PROSA

:

A CRIAÇÃO DO PASSADO

Querer dizer o indizível, pintar o invisível: provas de que a coisa, única, adveio, que outra coisa seja talvez possível. Nostalgias e esperas alimentam o imaginário cujas formas, murchas ou desabrochadas, substituem a vida: a imperfeição, desviante, cumpre assim, em parte, seu papel.

Algirdas Julien Greimas Da imperfeição

(25)

1 O GÊNERO

Os diários, as cartas, os memoriais acadêmicos, os romances autobiográficos são gêneros que realizam o discurso autobiográfico, cuja marca central é, além da temática da ―minha vida‖ – o ―eu‖ é o centro do discurso –, a produção do efeito de identidade entre o enunciador (autor implícito) e o narrador; o narrador e o protagonista (ator central do narrado); o protagonista e o enunciador. O papel dessa tripla relação de identidade nos gêneros autobiográficos vem sendo debatido por diversos pesquisadores.

Lejeune apresenta a seguinte definição para a autobiografia: ―Relato retrospectivo que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando ela coloca ênfase sobre sua vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade‖ (1996, p. 14; tradução nossa)6. O teórico a analisa a partir da noção de pacto autobiográfico, ou seja, uma espécie de contrato estabelecido entre o autor e o leitor, ou ainda um ato de linguagem, um performativo, uma promessa. Em oposição ao pacto romanesco, trata-se de um compromisso assumido pelo autor de contar sua vida num espírito de verdade, o que acarreta uma forma de leitura específica. Para Lejeune (1996; 2005), o pacto autobiográfico não diz respeito à correspondência ponto por ponto do texto à vida extralinguística. O autor afirma, porém, que seria legítimo verificar a existência de uma adequação em nível mais amplo, pois, para ele, aquele que escreve uma obra autobiográfica compromete-se definitivamente com a verdade. O teórico relativiza em parte essa visão quando lida com obras autobiográficas mais literárias. A concepção primordial de Lejeune é, todavia, a de que a autobiografia institui um pacto referencial de leitura, como o discurso histórico ou científico, posição que não será assumida neste trabalho, conforme mostraremos ao longo dos capítulos.

Ainda segundo Lejeune (1996; 2005), o pacto autobiográfico é fundamentado, essencialmente, na relação de identidade entre autor e narrador, narrador e personagem central, personagem central e autor. Trata-se do que Genette (1991, p. 83) entende por discurso homodiegético não ficcional:

6

(26)

A= autor, P= personagem, N = narrador

A = P, P = N, N = A → autobiografia (discurso homodiegético não ficcional)

A ≠ P, P ≠ N, N = A → biografia (discurso heterodiegético não ficcional)

A ≠ P, P = N, N ≠ A → ficção homodiegética

A = P, P ≠ N, N ≠ A → autobiografia heterodiegética A ≠ P, P ≠ N, N ≠ A → ficção heterodiegética

Desses autores, herdamos essa noção de tripla identidade, mas como efeito que cria a ilusão de que a vida narrada pertence ao enunciador. No entanto, como afirma Parret: ―‗Minha vida‘ é uma narrativa, um discurso: que esta vida seja minha não é senão um efeito de discurso, um simulacro discursivo‖ (1988, p. 43; tradução nossa)7. O efeito de identidade entre narrador e protagonista é produzido, geralmente, pelo emprego do pronome eu, ou seja, por uma debreagem enunciativa do enunciado: ―quando o narrador se identifica com uma das personagens, naquilo que concerne ao enunciado enunciado, ou seja, ao eu actante da narrativa‖ (FIORIN, 1996, p. 117). Já o efeito de identidade entre enunciador e protagonista pode realizar-se pela onomástica, que concretiza semanticamente num mesmo antropônimo o ator da enunciação e o ator do narrado. Lejeune (1996) chama a atenção para a coincidência do nome do autor, na capa do livro, e o da personagem.

O efeito de identidade entre narrador e enunciador resulta das identidades anteriores, podendo ser fortalecido pelo fato de o narrador apresentar-se, muitas vezes, como o autor da obra. É o que chamamos na semiótica de embreagem:

Ao contrário de debreagem, que é a expulsão, da instância da enunciação, de termos categóricos que servem de suporte ao enunciado, denomina-se embreagem o efeito de retorno à enunciação, produzido pela suspensão da oposição entre certos termos da categoria da pessoa e/ou do espaço e/ou do tempo, bem como pela denegação da instância da enunciação. Toda embreagem pressupõe, portanto, uma operação de debreagem que lhe é logicamente anterior (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p. 159-160).

7

―‗Ma vie‘ est un récit, un discours: que cette vie soit à moi n‘est qu‘un effet de discours, un

(27)

Nesse caso, temos um tipo de embreagem que confunde os níveis do narrador e do enunciador, instância pressuposta, criando a aproximação entre eles (FIORIN, 1996, p. 122-123). O narrador, instalado no enunciado sempre como um não-eu em relação à enunciação, é apresentado como se fosse o enunciador8. Isso aparece com frequência na abertura das obras, especialmente depois de Rousseau, que inicia suas Confissões (1933) com um pequeno texto assinado, no qual justifica, então, não apenas o que levou o narrador a contar sua história, mas os motivos que fizeram com que o enunciador a escrevesse e publicasse.

É o que encontramos também na obra de José de Alencar, Como e por que sou romancista, que data de 1873 e foi publicada postumamente em 18939.

Meu amigo

Na conversa que tivemos, há dias, exprimiu V. o desejo de colher acerca da minha peregrinação literária alguns pormenores dessa parte íntima de nossa existência, que geralmente fica à sombra, no regaço da família ou na reserva da amizade.[...] Seria esse o livro dos meus livros. [...] Enquanto não vem ao lume do papel, que para o da imprensa ainda é cedo, essa obra futura, quero em sua intenção fazer o rascunho de um capítulo.

Será daquele, onde se referem as circunstâncias, a que atribuo a predileção de meu espírito pela forma literária do romance (1955, p. 5-7).

Outras estratégias discursivas podem contribuir para reforçar as identidades próprias ao gênero, como a explicitação no título ou subtítulo do fato de tratar-se de uma obra autobiográfica (memórias, história da minha vida, lembranças, etc.) (LEJEUNE, 1996). Isso cria no enunciatário a expectativa,

8 É preciso lembrar que a debreagem, concernente à instauração de pessoas, tempos e

espaços no enunciado, consiste num primeiro momento ―[...] em disjungir do sujeito, do espaço

e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não-eu, um não-aqui e um não-agora‖ (FIORIN, 1996, p. 43).

9 Esse livro pode ser considerado um dos precursores da literatura memorialista no Brasil, pois,

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que pode ser confirmada ou não, de convergência das três instâncias mencionadas.

A identidade entre protagonista, narrador e enunciador é, então, característica dos discursos da memória e, assim, do romance autobiográfico. Outros elementos ajudam ainda a definir o gênero quanto à sua estrutura composicional. Destacaremos os principais. A história é narrada, predominantemente, de forma retrospectiva e cronológica, mesmo que antecipações e recuos se façam sempre presentes. O tempo dominante é, normalmente, o passado, recriado pelo sistema enuncivo pretérito, que instala um então no discurso, em oposição ao agora da enunciação (FIORIN, 1996, p. 154). É, porém, a partir do presente que o narrador relata e recorda o passado. Logo, as debreagens temporais enuncivas mesclam-se às enunciativas. Daí a afirmação de Molloy (1996, p. 11), de que os textos autobiográficos tentam realizar o impossível: narrar a história passada de uma primeira pessoa que, por definição, só existe no presente de sua enunciação.

A temática do romance autobiográfico é a vida pessoal e pública, assumida como ―minha vida‖ pelo narrador e pelo enunciador. A ―minha vida‖ surge como simulacro depreendido na recriação do passado por meio da narrativa das memórias, da qual decorre a construção do sujeito ou ainda de sua identidade. Quanto ao estilo, observa-se a enorme flexibilidade do gênero, afinal pertence à esfera literária. Isso possibilita o uso de diferentes normas linguísticas e favorece o fortalecimento dos estilos autorais.

Apresentamos a seguir o quadro que sugere a forma composicional, o estilo e a temática da autobiografia literária em prosa10. Nosso objetivo não é o de um fazer prescritivo, já que o quadro teve origem na observação e análise de recorrências. Nada impede que ele venha a se modificar.

Estrutura composicional:

o efeito de identidade entre enunciador, narrador e ator, criado por diferentes recursos;

o presença do sistema temporal enunciativo e do sistema temporal enuncivo pretérito;

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o predomínio do sistema enuncivo pretérito (essa dominância é maior em certas obras do que em outras);

o predomínio do sistema enuncivo espacial, embora o enunciativo também possa ser utilizado;

o narração da história em ordem cronológica, o que significa que a história vai do período mais distante ao mais recente (podem ser encontrados avanços e recuos no texto, tratados como embreagens de tempo, entretanto, a ordem cronológica, normalmente, predomina);

o predomínio do tipo textual narrativo11;

o texto figurativo (alto grau de densidade semântica na construção de pessoas, tempos e espaços);

o destaque para os papéis temáticos pessoais do narrador (enunciador).

Estilo:

o grande flexibilização do gênero no encontro com o estilo autoral, fortalecimento dos estilos autorais;

o utilização de diferentes normas e registros linguísticos;

o configuração do éthos dependente, entre outros aspectos, da relação que o enunciador estabelece com seu passado;

o efeito de aproximação entre enunciador e enunciatário, criado pelo uso do sistema enunciativo de pessoa;

o efeito de aproximação entre sujeito da enunciação e enunciado, criado pelo uso do sistema enunciativo de pessoa;

o efeito de distanciamento e objetividade entre sujeito da enunciação e enunciado, criado pelo uso do sistema enuncivo de tempo e de espaço.

Temática:

o memória da vida pessoal e pública.

11 Em obras mais recentes, a descrição, assim como tipos dissertativos vêm sendo largamente

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2ESTUDO DE CASO

―Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais‖ (2000, p. 5), assim começam as extensas Memórias de Pedro Nava, talvez a obra autobiográfica mais festejada da literatura brasileira. Aguiar ressalta o impacto que teve sua publicação:

Ao lançar suas Memórias, Nava logo se tornou um best-seller. A cada volume publicado, seu nome ia para a lista de mais vendidos. Certamente, seu modo de reconstruir o tempo, num estilo exuberante, refinado, divertido e por demais envolvente, foi decisivo para o sucesso da obra junto ao público e também à crítica (1998, p. 13-14).

Para o crítico, Nava vem preencher um lugar deixado vago na tradição do memorialismo brasileiro: ―É como se o próprio gênero tivesse se reservado para ele, à espera do seu melhor praticante‖ (AGUIAR, 1998, p. 16). O autor, que já beirava os setenta anos e que pouco havia publicado na esfera literária – alguns poemas e crônicas –, lança ao longo de pouco mais de uma década seis volumes de memórias, Baú de ossos (2000), Balão cativo (2000), Chão de ferro (2001), Beira-mar (2003), Galo-das-trevas (2003) e O círio perfeito (2004), consagrando-se como escritor. O sétimo livro, Cera das almas (2006), publicado postumamente, teve sua redação interrompida pelo suicídio do autor em maio de 198412.

Nossa análise terá como centro o primeiro – Baú de ossos (BO) – e o quinto volume –Galo-das-trevas (GT) – das Memórias, por acreditarmos que eles sintetizam algumas características importantes da obra de Nava e que possuem, ao mesmo tempo, peculiaridades que os tornam centrais para a compreensão de sua memorialística, conforme mostraremos. Primeiro abordaremos a questão das identidades e, em seguida, a organização discursiva da memória.

Baú de ossos está dividido em quatro partes: ―Setentrião‖, ―Caminho Novo‖, ―Paraibuna‖ e ―Rio Comprido‖. Em ―Setentrião‖, o narrador, após

12 Informamos a data das primeiras edições: Baú de ossos (1972), Balão cativo (1973),

Chão de ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo-das-trevas (1981), O círio perfeito (1983),

(31)

traçar algumas observações de cunho sociológico e geográfico a respeito de Juiz de Fora, cidade em que nasceu, passa a falar da família de seu pai. Começa por seus antepassados mais distantes até chegar aos avós. Já a segunda parte é dedicada à família de sua mãe. Inicia-se com uma breve análise bastante impiedosa da sociedade mineira, que já anuncia a maneira como os antepassados do lado de sua mãe – mineiros conservadores, escravocratas, monarquistas, antigos proprietários de terras e mineradores – serão vistos, em oposição aos parentes de seu pai, no geral funcionários públicos vindos do Ceará e do Maranhão, gente mais liberal e benevolente.

―Paraibuna‖ descreve a vida do pai, José Pedro da Silva Nava, e de seus amigos e colegas de trabalho. Relata também a primeira infância de Pedro Nava em Juiz de Fora. ―Rio Comprido‖, a última parte, conta a experiência da família no Rio, os passeios do menino com o tio Salles, o movimento dos vendedores na rua, as viagens para a casa da avó em Juiz de Fora, onde a mulata Rosa lhe contava histórias. É principalmente nessa parte que o narrador interrompe a história para discorrer a respeito da memória. O livro termina com a partida da mãe, Diva Mariana Jaguaribe, e das crianças para Juiz de Fora, como consequência da morte traumática do pai:

Não sei se sofri na hora. Mas sei que venho sofrendo destas horas, a vida inteira. Ali eu estava sendo mutilado e reduzido a um pedaço de mim mesmo, sem perceber, como o paciente anestesiado que não sente quando amputam sua mão. Depois a ferida cicatriza, mas a mão perdida é dor permanente e renovada, cada vez que a intenção de um gesto não se pode completar (BO, p. 376).

Balão cativo (BC), o segundo volume das Memórias, trata da vida do menino em Juiz de Fora, na casa da avó, Inhá Luísa, lugar para onde a mãe retorna com os filhos. Esse período sob os desmandos da avó é retomado com pesar:

Não importa muito a direção. O que sei é que aquela encosta do morro e a sombra que dele se derramava sobre a chácara da Inhá Luísa ficaram representando o lado noruega da minha infância. Nunca batido de sol (BC, p. 5).

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Após a morte de Inha Luísa, o avô, Joaquim José Nogueira Jaguaribe, resolve mudar-se com toda a família para Belo Horizonte. Alguns anos depois, já adolescente, o jovem Nava retorna ao Rio para estudar no Internato do Colégio Pedro II, ficando sob os cuidados dos tios Alice e Antonio Salles.

Chão de ferro (CF) dá continuidade à narrativa dos anos passados no internato, sem deixar de lado outros temas importantes na vida do adolescente. Os estudos na Faculdade de Medicina em Belo Horizonte são um dos focos de Beira-mar (BM), que intercala relatos de aulas aos das noites de boemia. O livro trata ainda de sua participação na vida literária da cidade. Membro do grupo modernista mineiro, Nava teve, entre seus amigos, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, João Alphonsus, Milton Campos e outros.

Galo-das-trevas encontra-se dividido em duas partes. A primeira, ―Negro‖, cujo capítulo único se intitula ―Jardim da Glória à Beira-Mar plantado‖, constitui um momento de exceção na obra de Nava. Vamos reencontrar o tempo e o espaço da narração, pois o narrador, um homem velho e amargurado, fala de seu presente a partir do apartamento no bairro da Glória (Rio de Janeiro). Relata os encontros com seus mortos numa noite de insônia, seus passeios pelo Rio, lugar impregnado de lembranças, mas que já não é mais o mesmo. No final dessa parte, ele anuncia que passará a narrar as memórias daquele que diz ser seu alter ego, José Egon Barros da Cunha. Na segunda parte, ―O branco e o marrom‖, formada pelos capítulos ―Santo Antônio do Desterro‖ e ―Belorizonte Belo‖, Egon se torna então personagem central. Ele já havia aparecido nos volumes anteriores das Memórias, sendo apresentado como um primo de Pedro Nava, um sósia, e mesmo um alter ego. O primeiro capítulo dessa segunda parte narra a expedição para Caetés, a verdadeira estreia como médico do Dr. Egon, seu ―batismo‖, como diz o narrador. Em seguida, o médico parte para Santo Antônio do Desterro, sua cidade natal, que corresponderia a Juiz de Fora, de onde é Pedro Nava. A cidade não o acolhe como esperava e o jovem decide retornar a Belo Horizonte um ano e meio depois de sua chegada. O segundo capítulo é dedicado ao período em Belo Horizonte, onde Egon encontra certa estabilidade. O livro termina com os tiros anunciando a Revolução de 30.

(33)

médico decide então afastar-se e ir para o Oeste Paulista, onde consegue acumular um pequeno capital que lhe permite instalar-se mais uma vez no Rio de Janeiro.

A obra de Nava parece definir-se pelo excesso. Nela, é narrada não apenas a história pessoal do ―autor‖, mas a de seus antepassados e também de amigos e conhecidos da família, a história de uma época, vista por um prisma pessoal. Além disso, seu estilo, dado ao ornamento, mescla registros e dialetos. Como mostra Arrigucci, não faltam:

[...] termos regionais e coloquialismos; palavras esquecidas, com o dom de ressuscitar o passado de que um dia foram parte; vocábulos cultos e preciosos, nomes exóticos que deixam sabor na boca; palavrões em quantidade; estrangeirismos, sobretudo galicismos abundantíssimos; tecnicismos da linguagem médica e científica em geral; neologismos; tesouros dos clássicos portugueses; uma verdadeira avalanche de nomes próprios, muitas vezes já esvaziados das pessoas e lugares que os habitaram, com a rara e surpreendente poesia de seu puro som; latinismos e todo o baú de virtualidades da língua, atualizadas, arejadas, encarnadas concretamente e postas a caminhar na frase aberta e inclusiva sob a luz do presente (1987, p. 72-73).

Outra obra autobiográfica da literatura brasileira será trazida para comparação com as Memórias de Nava: Infância (2003), de Graciliano Ramos. Lançado em 1945, trata-se de um livro autobiográfico que se constitui de forma radicalmente diferente do que encontramos nas Memórias, o que permitirá uma discussão mais ampla ao final a respeito do gênero autobiográfico na literatura. Em Infância, um narrador, nada saudoso, conta seus primeiros anos de vida no interior do Nordeste (Pernambuco/Alagoas). Ele relembra a infância como um período de sofrimento e incompreensão, revendo, assim, o lugar-comum da infância idílica: ―[...] os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vítimas os fracos, estão na base da organização do mundo‖ (CANDIDO, 1992, p. 53). É na leitura que o menino encontra a possibilidade de evasão, assim como é pela escrita literária que o narrador busca ressignificar suas memórias.

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desses capítulos já haviam sido publicados separadamente em jornais e revistas da época, quando o livro foi lançado. Eles parecem estar ligados uns aos outros apenas porque constituem as memórias de infância de um mesmo sujeito. A fragmentação, todavia, não esconde totalmente a progressão cronológica. A obra tem início com a primeira recordação, como é bastante comum em gêneros autobiográficos, e termina com a entrada na adolescência, marcada por dois amores: Laura e a literatura.

A obra memorialista de Graciliano compreende ainda Memórias do cárcere (2008). Publicado em 1953, o livro tem grande afinidade com Infância, principalmente pela atitude do narrador em relação ao passado, marcada pela desconfiança.

2.1 PEDRO NAVA

2.1.1 As três identidades do discurso autobiográfico: uma comparação entre Baú de ossos e Galo-das-trevas

Do primeiro (Baú de ossos) até o quarto volume (Beira-mar) da obra de Pedro Nava, reconhecemos, sem maiores dificuldades, o efeito de identidade entre o enunciador, o narrador e o ator do enunciado, o que é característico das obras autobiográficas, conforme já mostramos. A classificação genérica da obra – ―memórias‖ –, que aparece na capa, já sugere para o leitor a identificação entre as instâncias mencionadas.

O efeito de identidade entre o ator do narrado e o enunciador é garantido, principalmente, pelo nome, Pedro Nava, reconhecido na capa como autor e, no interior da obra, como ator do narrado, a personagem. Em Baú de ossos, na primeira de suas duas dedicatórias, lemos13:

13 O livro apresenta duas dedicatórias. Na primeira, o autor homenageia alguns amigos e,

(35)

À memória de

PEDRO DA SILVA NAVA e ANA CÂNDIDA PAMPLONA NAVA FEIJÓ

meus avós

JOSÉ NAVA e DIVA JAGUARIBE NAVA,

meus pais;

ALICE NAVA SALLES e

ANTÔNIO SALLES

meus tios;

JOSÉ HIPÓLITO NAVA RIBEIRO

meu sobrinho;

ALICE DE LUNA FREIRA

minha prima;

GASTÃO CRULS, JOAQUIM NUNES COUTINHO CAVALCANTI e

RODRIGO DE MELO FRANCO DE ANDRADE,

meus amigos.

P R O F U N D A M E N T E

Além de já introduzir o leitor no mundo dos mortos, que vai ocupar boa parte das Memórias, a dedicatória também reforça a identidade entre o enunciador, ao qual se atribui a responsabilidade de escrevê-la, e o ator do narrado. O nome dos familiares (―JOSÉ NAVA e DIVA JAGUARIBE NAVA‖),

acompanhado da relação de parentesco (―meus pais”) com esse enunciador, permite que o enunciatário, ao longo da leitura, reconheça esses mesmos atores como parentes e amigos do Pedro Nava, Pedro ou Pedrinho, como é chamado o ator do narrado.

(36)

Além disso, a interdiscursividade também corrobora a produção da identificação, permitindo ao enunciatário, com seu conhecimento a respeito do autor, originado da leitura de biografias, reportagens e notícias, estabelecer certa correspondência entre a vida narrada nas Memórias e aquela que aparece nos outros discursos. Salientamos que a interdiscursividade apenas pode fortalecer um efeito localizável no interior da obra, a não ser que se queira ler qualquer texto como autobiográfico, sem levar em conta o que as marcas discursivas sugerem. É nesse sentido que afirmamos que a interdiscursividade vai tornar ainda mais eficaz o efeito de identidade entre enunciador e ator do narrado, mas ela não será neste trabalho tomada como critério único para o estabelecimento desse efeito.

A identificação entre o enunciador e o narrador, em Nava, realiza-se por meio da embreagem de pessoa, que confunde os níveis do enunciador e do narrador. Isso faz com que o enunciatário atribua a responsabilidade pelo que é dito tanto ao narrador quanto ao enunciador. Conforme já foi comentado, a presença de uma espécie de prólogo assinado é muitas vezes responsável pela produção de semelhante efeito. Na obra de Pedro Nava, não há esse ―prólogo‖. Entretanto, em toda a primeira parte de Galo-das-trevas, além de explicar a aparição de Egon, o alter ego, o narrador justifica a escritura das Memórias. Nessa parte, que se destaca do todo da obra, encontramos o narrador falando, predominantemente, do aqui e do agora da narração. Para o espaço temos seu apartamento no bairro da Glória, no Rio de Janeiro: ―Estou escrevendo no meu escritório, olhando lá fora o dia molhado, frio e gris que cobre o Aterro (GT, p. 5)‖. Para o tempo, temos como data inicial o dia 5 de junho de 1978: ―É o que penso no dia em que completo setenta e cinco anos de vida e começo este meu quinto volume de memórias‖ (GT, p. 5). Segundo Aguiar, esse capítulo é de fundamental importância para o leitor da obra literária de Nava, pois constitui uma interrupção do fio narrativo que vinha se desenrolando, além de ser também uma parte de transição (entre narradores e entre protagonistas, conforme veremos adiante):

(37)

espaço para a continuação da narrativa, que já não será exatamente a

mesma. No ―Jardim da Glória‖ se dá o encontro do eu que narra com o escritor. É, portanto, o primeiro grande momento de confissão, explícita, por assim dizer, das Memórias (1998, p. 47).

Assim, essa parte pode ser lida como uma grande embreagem actancial, em que narrador e autor implícito surgem sobrepostos. Ao longo da obra, encontramos outras passagens do mesmo tipo que merecem atenção, como quando o narrador, comentando um dos filmes assistidos pelo ator do narrado Egon, detém-se no recurso cinematográfico do close-up e diz já ter tratado do tema em livros anteriores: ―Já discuti a questão da descoberta do close-up em livro anterior‖ (GT, p. 200). Podemos mencionar ainda o final de Galo-das-trevas, quando é anunciada a publicação do próximo volume das Memórias. Nesses dois casos, o narrador se apresenta como o autor dos livros.

Rio de Janeiro, Glória, 5 de junho de 1978 – 19 de outubro de 1980.

Gostou de MEMÓRIAS / 5?

Pois aguarde para breve MEMÓRIAS / 6 e a segunda parte deste livro designada:

O CÍRIO PERFEITO Galo-das-Trevas / 2

(GT, p. 441)

O efeito de identificação entre o narrador e o enunciador pode ser fortalecido pela debreagem enunciativa da enunciação: ―quando os actantes da enunciação estão projetados no enunciado‖ (FIORIN, 1996, p. 117). Tal procedimento é reconhecido por meio da leitura das marcas de primeira pessoa (do singular ou do plural) ou de segunda, como se nota nas primeiras palavras de Baú de ossos, quando o narrador indica suas origens: ―Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais‖ (BO, p. 5). A explicitação do narratário é menos frequente. ―Pensam que acabou?‖ (GT, p. 314), pergunta o narrador no meio de uma extensa descrição da rotina de Dona Diva Jaguaribe Nava (mãe de Pedro Nava).

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diferenciar-se do enunciador. Há inúmeros exemplos em nossa literatura, diferenciar-sendo um dos mais célebres talvez o narrador de Dom Casmurro (2008), de Machado de Assis, obra em que o leitor reconhece Dom Casmurro como narrador e não Machado de Assis, embora tal narrador seja projetado por meio de uma debreagem enunciativa da enunciação.

O efeito de identidade entre o narrador e o ator do narrado pode ser criado por diferentes recursos, mas em Pedro Nava prevalece a utilização da debreagem enunciativa do enunciado (ator do narrado é um eu)14. É o que se verifica no momento em que o narrador descreve os passeios feitos com tio Salles num tempo passado, quando ainda era um menino:

Ainda com tio Salles subi um dia as ladeiras da Rua do Morro, onde morava não sei mais que amigo seu. Enquanto ele parava, no alto, para olhar a vista escampa e larga que dali se descortina – Santa Teresa, o Corcovado e a Tijuca levantando a cara e o nariz pico – eu atentei num pano de muro branco todo cheio de inscrições e desenhos pornográficos. Esse gênero de criação plástica é sempre levado a efeito com a pressa inspirada aos autores pelo medo de um flagrante e a pressa obriga-os a sínteses essenciais, às vezes tão fabulosas que só podem ser comparadas a certos close-ups, relances e gags

achados pela suscetibilidade de um cinegrafista de gênio. Tal era o esboço que vi – que guardei de memória, como coisa perturbadora, posto que então incompreensível (BO, p. 369).

Nesse fragmento, é possível identificar o eu do narrado, que aparece em ―subi‖ ou ―eu atentei‖ e o eu da narração, que reconhecemos em ―não sei‖. Se os tempos diferenciam o narrador – instaurado no presente da narração – do protagonista – instaurado no passado do narrado –, o pronome pessoal os identifica (STAROBINSKI, 1970, p. 261-262). É preciso dizer ainda que os diferentes procedimentos para a criação dos efeitos de identidade no discurso autobiográfico fortalecem uns aos outros.

A partir de Galo-das-trevas, essa questão das identidades torna-se ainda mais complexa. Conforme já mostramos, o livro está dividido em duas partes: ―Negro‖ e ―O branco e o marrom‖. Na primeira, em que o narrador trata de seu presente ao longo de uma interminável noite que se aprofunda no tempo da

14 O caso de Galo-das-trevas e de O círio perfeito, obras em que o narrador passa a relatar a

(39)

memória, reconhecemos a identificação entre enunciador, narrador e ator do narrado, de que tratamos.

―Negro‖

Enunciador: Pedro Nava

Narrador 1: Pedro Nava (debreagem enunciativa da enunciação –eu) Protagonista: Pedro Nava (debreagem enunciativa do enunciado –eu)

É na página 100 de Galo-das-trevas, ainda nessa primeira parte, que o narrador fala sobre o dia em que, logo depois do café, recebeu um embrulho de seu primo Egon, já apresentado em volumes anteriores. Em Galo-das-trevas, o primo é descrito como ―sósia, primo, amigo de infância, colégio, faculdade, vida, profissão afora‖ (GT, p. 79). Egon, ou Doutor José Egon Barros da Cunha, é mostrado como o primo inseparável de Pedro Nava: ―mineiro de Santo Antônio do Desterro –outrora Vila Nova d‘El-Rey de Santo Antônio do Desterro no Mato Grosso das Minas – nos dias dagora Santo Antônio do Desterro ou só Desterro‖ (GT, p. 79).

Segundo o relato, o embrulho trazia cinco pastas de cartolina e uma carta, em que Egon explicava que pretendia ―desaparecer da vida social, na tolice como ela é entendida hoje‖ (GT, p. 101). Mudaria para um asilo, onde não desejava ser incomodado até a morte. Deixava para seu primo, Pedro Nava, manuscritos, fotos e documentos: suas memórias. É esse rico material que o narrador afirma constituir a base da história que tem início na segunda parte do livro.

Assim termina o trecho intitulado ―Negro‖. Em ―O branco e o marrom‖, começa, então, o relato que teria sido feito a partir dos manuscritos de Egon. Logo nas primeiras páginas, notamos uma mudança com relação ao narrador.

Para adiantar um pouco o caso, vamos contar que vários dias depois, voltando da zona tifenta, o Egon fora à casa da sua paciente (GT, p. 121: grifos nossos).

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descrevemos seu aspecto físico mas devemos voltar às qualidades morais que o completavam como a um ser absolutamente excepcional (GT, p. 297; grifos nossos).

O narrador que se utiliza sempre da primeira pessoa do singular (narrador 1) dá lugar, a partir da página 103 de Galo-das-trevas, a um segundo narrador (narrador 2), que se utiliza da primeira pessoa do plural. O narrador 1, responsável por passar a palavra a esse segundo narrador, não desaparece por completo em ―O branco e o marrom‖. Salvo engano, ele aparece duas vezes no corpo do texto da parte 2 de Galo-das-trevas. Além disso, é o responsável pela organização do narrado e é a voz dele que reconhecemos nas notas:

* Nesse subcapítulo noto que foi citado várias vezes o grande Couto. Talvez seja a necessidade de lembrar um nome de nossa Medicina que não deve ser olvidado. Não posso nunca esquecer da pergunta que ouvi, há bem seus muitos anos, de interno meu – sextanista – que diante de minha insistência em citar aquele médico perguntou-me – ―Mas Doutor Nava, afinal quem era esse Miguel Couto em quem o

senhor tanto fala?‖ isso se passou com um doutorando de 1949 –

apenas quinze anos depois da morte desse que, a seu tempo, era o maior médico brasileiro – a própria encarnação da Clínica Médica Brasileira... Preste-se ao menos atenção ao fato de existirem no Rio –

uma rua e um hospital com o nome ilustríssimo (Nota de Pedro Nava) (p. 377, nota).

Já discuti a questão da descoberta do close-up em livro anterior (GT, p. 200).

Assim como para o Falcão de Valadares quero repetir também alguma coisa sobre o Percival de Aquino (GT, p. 297).

A distinção que se estabelece na obra entre o narrador da primeira parte e aquele da segunda é então marcada no enunciado. Mas quem seria esse nós, ou seja, o narrador 2? Pedro Nava, José Egon, um narrador que não é personagem? Para o crítico literário Joaquim Aguiar, ele se constitui como um narrador de tipo romanesco, de terceira pessoa, que surge como resposta a uma busca por um distanciamento maior em relação à matéria relatada15:

15 A crítica literária, normalmente, considera narrador em terceira pessoa o narrador que não é

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