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A ciência positiva do século XIX

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CAPÍTULO II – CIÊNCIA ESPÍRITA: POSITIVISTA?

2.1 A ciência positiva do século XIX

O positivismo é um dos conceitos mais complexos dentro da área do conhecimento, sendo aplicado ora em referência ao positivismo lógico do Círculo de Viena

(de 1922 a 1936), ou ao pensamento comteano26 sobre a ciência (Comte – 1798-1857), ou ao empirismo inglês (século XVII), ou ao método científico indutivo das ciências naturais baseado na observação e experiência empírica usado desde o século XVIII. E ainda existem aqueles que afirmam que o positivismo não foi um método científico, mas tão-somente uma ideologia ou doutrina.

Por outro lado, existem pensadores que consideram o positivismo como um bloco científico-filosófico hegemônico que tem como ponto básico central o aspecto de considerar o dado factual como o único objeto de pesquisa científica realmente confiável. Comentando esse ponto de vista, escreve Arana:

Do positivismo se diz que é hegemônico. Que se distingue e se impõe como a teoria filosófica do conhecimento mais difundida entre nós, a mais influente, a mais enraizada. Diz-se até que representa, na agitada atualidade em que vivemos, nosso senso comum filosófico.

Desta hegemonia dariam testemunho as reações mesmas que o positivismo provoca. Tomemos a crítica filosófica ao positivismo. Logo nos chama a atenção que esta crítica é de tal modo insistente, inflamada, acerba, é de tal modo intensa, que, por sua intensidade mesma, por seu estrépito, acaba prestigiando o positivismo: fica o historiador da filosofia com a impressão de que, após o surgimento do positivismo, não têm os demais sistemas filosóficos outro assunto, outra causa em que se ocuparem criticamente... – como se dessa crítica dependesse a própria sobrevivência dos demais sistemas filosóficos.

Deve haver algo de perturbador aqui: todos têm contas que ajustar com o positivismo...

Hegemônico? (Arana, 2007, p. 1)

E Arana constata a “hegemonia” do positivismo: “A verdadeira filosofia e a verdadeira ciência atêm-se ao dado empírico – essa a tese de que vamos, o leitor e eu, partir para a caracterização do positivismo” (op. cit., p. 3).

Esse autor focaliza o dado empírico, embora admita a heterogeneidade dessa corrente, criticando veladamente os que a rotulam talvez sem conhecê-la em profundidade e amplitude: “Não iremos muito longe. Já será bastante se formos além dos lugares-comuns a que o positivismo – complexo, multiforme, desconcertante – é frequentemente reduzido nas exposições acadêmicas” (idem, p. 4).

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Neste trabalho optou-se pela forma “comteano”, com “e”, em consonância com o nome do autor (Comte), embora a gramática da língua portuguesa registre e recomende a forma com “i”, “comtiano”.

Em sua exposição, esse autor discorre rapidamente sobre os expoentes clássicos do positivismo: Spencer (Herbert Spencer: 1820-1903), Mach (Ernst Mach: 1838-1916), Stuart Mill (1806-1873), Círculo de Viena (“escola” que vai de 1907 a 1936) – e Comte (1798- 1857), o nome mais lembrado quando se fala em positivismo.

Comte já tinha exposto a sua tese de que o conhecimento é relativo, quando Spencer fez desse postulado o centro da sua filosofia da ciência. O termo “relativo” tem, na concepção do positivismo, dois significados: o de que o conhecimento capta relações entre os fatos da experiência (portanto todo o processo do conhecimento e do pensamento se baseia em relações); e o de que o conhecimento possível não é absoluto, não é o todo, mas uma parte do todo (relativo no sentido de restrição, limitação, de saber circunscrito a um objeto em determinadas circunstâncias). Um segundo pilar do sistema spenceriano é a evolução: evolução universal, em todos os aspectos: do mundo, da arte, da literatura, da ciência, da linguagem, do comércio, do governo, da sociedade. O mundo todo caminha para o progresso, em constante evolução – como afirmava Comte, que tomou a expressão “ordem e progresso” como lema da doutrina que pretendeu desenvolver.

Stuart Mill, um outro positivista-empirista do século XIX, é, nas palavras de Arana, “o homem da lógica e das ‘ciências morais’, entre elas a psicologia” (op. cit., p. 24). E complementa aludindo-se a Comte: “A psicologia que Comte não inclui no quadro das ciências Stuart Mill inclui” (idem).

É a psicologia associacionista a que Stuart Mill, cujos dados são as sensações, isoladas ou associadas a outros fatores do mundo das experiências, que, para ele, é anterior ao processo de percepção.

Em seu sistema, Stuart Mill trata da linguagem e da lógica, relacionando os nomes e os raciocínios lógicos também ao mundo sensível, à experiência sensível, ao fato vivenciado, de onde o homem extrai todo o seu saber. Para ele o conceito universal não é nada, e o processo para se obter o conhecimento é o da indução. Expondo o pensamento de Stuart Mill, escreve Arana:

Não há experiência do universal, não há como representar uma natureza geral em estado puro. (...) Ou pensamos por imagens concretas ou não pensamos nada. (...) O valor da ideia geral é inteiramente empírico. Ela é apenas um nome que

sintetiza na memória determinado conjunto de sensações. (...) Nós não podemos observar senão casos particulares. A proposição geral é um meio cômodo de reunir em uma única fórmula multidões de casos individuais observados. (...) O processo indutivo, único raciocínio válido (...), está na raiz de todos os princípios gerais. O valor de todas as proposições, mesmo as gerais, mesmo as ideais, é empírico (Arana, op. cit., p. 26, 28, 29).

Mais um empirista positivista que se destaca no século XIX, já entrando no XX, é Ernst Mach, físico e filósofo austríaco. Para ele o mundo, o corpo, as representações, a linguagem e o próprio “eu” são sensações, complexos de sensações. Professor de Física, de Matemática e estudioso de diversas áreas, interessou-se também pela psicologia da percepção sensorial. Assim se expressa Arana ao falar sobre Mach (que teria sido uma das bases das ideias filosóficas de Einstein):

Tanto da ideia de causalidade, como da ideia de substância – de todo conceito que não consiga atestar sua consanguinidade com a vida empírica, terrena e suas estruturas –, a ciência tende a desembaraçar-se. (...) A expressão é de Einstein, quando enaltece o “mérito imperecível de Hume e de Mach” em defenderem a raiz empírica, “mundana”, dos conceitos científicos fundamentais. Sabe-se que Einstein, à semelhança de Mach, rejeita os conceitos newtonianos de espaço e tempo absolutos, e afirma, como o próprio Mach antes dele, a “natureza” relacional da massa (Arana, op. cit., p. 34).

Mach27 teve influência também no Círculo de Viena28, que teria surgido “a partir do pano de fundo dessa filosofia empirista” (Arana, op. cit., p. 36). Nascido informalmente, o Círculo de Viena congregou filósofos e cientistas que desejaram conversar e trocar ideias sobre assuntos relativos à filosofia da ciência. Nasceu sobre bases empiristas, mas com críticas às mesmas à luz da lógica da época. A pergunta que se fazia o Círculo de Viena era “como conciliar o lógico e o empírico nas ciências” (Arana, op. cit., p. 36). Os avanços da lógica, a crise e a pesquisa dos fundamentos das matemáticas, a crítica e a busca de um novo empirismo são os principais temas discutidos pelo Círculo de Viena, que também teve a influência de Russell e Wittgenstein. Em 1928, Carnap publica A construção lógica do

mundo, obra em que tenta aproximar a lógica formal e as ciências factuais empíricas – “duas

linhas filosóficas de pesquisa, dois imensos projetos, que até ali, em larga medida, se desenvolvem independentemente” (Arana, op. cit., p. 37).

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Segundo Arana, “Mach é chamado o Hume do século XIX” (op. cit., p. 35).

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Componentes do Círculo de Viena, que se reuniram, com maior ou menor regularidade, de 1907 a 1936, tendo se formado ao redor da figura de Moritz: Otto Neurath, Herbert Feigl, Philipp Frank, Friedrich Waissman, Hans Reichenbach, Kurt Gödel, Car Hempel, Hans Hahn, Karl Popper, W. V. Quine, Rudolf Carnap.

Formado de pensadores dos diversos ramos da ciência, o Círculo de Viena buscava um consenso epistemológico, tendo como um dos seus pilares a experiência, o dado sensível, a visão empírica do conhecimento. Sua metodologia de pesquisa, o positivismo lógico, pautava-se pelo processo indutivo – em oposição aos idealistas e à metafísica, portanto.

Antes do Círculo de Viena e de muitos positivistas do final do século XIX e início do XX, Comte já havia apresentado os postulados básicos do positivismo, tanto que hoje, quando se fala em positivismo, o primeiro nome que vem à mente é o de Comte – verdade que com algumas reservas e posturas negativas, típicas da resistência e do preconceito acadêmicos, muitas vezes caricatural devido à falta de conhecimento mais profundo e de uma visão superficial e distorcida sobre autores e suas ideias.

Expondo a natureza e o caráter da filosofia29 positiva, Comte (1798-1857) apresenta “uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano” (1973, p. 09), princípio que representa a sua teoria dos três estados ou métodos de filosofar pelos quais passa o espírito humano na sua trajetória em busca do conhecimento. Ele diz:

Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo. Daí três sortes de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto de fenômenos, que se excluem mutuamente: a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda, unicamente destinada a servir de transição (Comte, op. cit., p. 10).

No estado teológico, o espírito humano dirige a agentes transcendentais as suas investigações sobre a natureza, as causas, a origem, os fins de todos os fenômenos, fatos e coisas que o cercam. Seres transcendentais seriam os criadores do mundo e do próprio homem. No início de tal estado, o transcendental era representado por numerosas divindades ou diversos deuses (politeísmo); em fase posterior um único deus (monoteísmo) seria o grande criador do universo – a humanidade chegou assim ao Deus do Cristianismo.

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Comte “usa o termo filosofia na acepção geral que lhe davam os antigos filósofos, particularmente Aristóteles, como definição do sistema geral do conhecimento humano; e o termo positiva designa, segundo ele, o real frente ao quimérico, o útil frente ao inútil, o certo frente ao incerto, o preciso frente ao vago, o relativo frente ao absoluto, o orgânico frente ao inorgânico, e o simpático frente à intolerância” (João Ribeiro, p. 17).

No estado metafísico – “que no fundo nada mais é do que simples modificação geral do primeiro” (Comte, op. cit., p. 10) – forças abstratas de definição imprecisa (“abstrações personificadas”) tomam o lugar das divindades como a explicação da existência do mundo e seus objetos. Esse estado também evoluiu: de várias entidades chegou-se a apenas uma – a natureza – como a fonte e origem de todas as coisas, fatos e fenômenos existentes. A natureza íntima, interna, essencial de todas as coisas definiria o seu caráter ontológico, a sua própria razão de ser. Nessa fase, o espírito humano busca noções absolutas para tudo que o cerca, procura a origem e o destino do universo, criando para isso sistemas especulativos que poderiam lhe dar as respostas desejadas. Trata-se (como o primeiro estado) de uma era pré- científica, sendo ambos “estados primitivos” ou “filosofias primitivas”.

Finalmente instala-se o estado positivo. Com o raciocínio sustentado pela observação dos fatos, o espírito humano chega à ciência. Para Comte, a filosofia positiva consiste no verdadeiro sistema e no verdadeiro método que daria ao homem todas as explicações por ele sempre buscadas. Endossando seu raciocínio, Comte cita Bacon:

Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados. Essa máxima fundamental é evidentemente incontestável, se for aplicada, como convém, ao estado viril de nossa inteligência (Comte, op. cit., p. 11).

Segundo Comte:

A filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana, aquele para o qual sempre tendeu progressivamente.

[...]

A razão humana está agora suficientemente madura para que empreendamos laboriosas investigações científicas.

[...]

Homogeneizando-se todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia constituir-se-á definitivamente no estado positivo. Sem nunca mais poder mudar de caráter, só lhe resta desenvolver-se indefinidamente, graças a aquisições sempre crescentes, resultantes inevitáveis de novas observações ou de meditações mais profundas. Tendo adquirido com isso o caráter de universalidade que lhe falta ainda, a filosofia positiva se tornará capaz de substituir inteiramente, com toda a superioridade natural, a filosofia teológica e a filosofia metafísica (Comte, op. cit., p. 12 e 16).

Para Comte, todas as concepções humanas deveriam se tornar positivas. O paradigma positivo seria então aplicado a todas as ciências (biológicas, físicas, naturais, sociais, etc.), bem como à filosofia e às artes, sob o apanágio do racionalismo e da

observação, na busca das leis universais dos fatos e fenômenos. O método filosófico e científico positivo conduziria com sucesso o trabalho enciclopédico a ser empreendido pelo espírito humano na elaboração e classificação do conhecimento.

Com seu discurso sobre o espírito positivo, Comte visa principalmente desbancar as concepções teológica e metafísica, bem como todos os princípios especulativos que ainda perdurassem na filosofia, considerando instalado definitivamente o estado positivo, a único capaz de trazer verdades às ciências, à filosofia, e ainda de organizar a sociedade, elevar a educação, impor a ordem, promover o progresso e sistematizar a moral. O positivismo de Comte prioriza a sociedade em detrimento do puramente individual, visando ao bem público e coletivo, com vistas no bem-estar e felicidade das pessoas.

Comte envereda, finalmente, para um catecismo positivista, que tinha o objetivo de dar novos rumos à sociedade, criando “uma verdadeira sociocracia”, em nome do progresso, da moral, da ordem – o sistema político-ideológico que ele imaginou seria mesmo uma nova religião para a humanidade, quando todos teriam deveres para com todos (fraternidade universal).

Mas não se pode dizer que o positivismo, no século XIX, tenha sido apenas uma ideologia. O positivismo é considerado, principalmente, um método de se fazer ciência e defendido pela comunidade científica. Com o uso do método indutivo aplicado às ciências naturais, percebe-se que Comte tinha o positivismo como um método científico (como ele mesmo supunha).

Bachelard considera o positivismo como um método científico. Acrescentando um quarto estágio aos três estados apresentados por Comte, Bachelard afirma:

Acreditamos, pois, que devido às revoluções científicas contemporâneas, se possa falar, no estilo da filosofia comtiana, em uma quarta idade, correspondendo, as três primeiras, à Antiguidade, à Idade Média e aos Tempos Modernos. A quarta idade, Época Contemporânea, realiza precisamente a ruptura entre conhecimento vulgar e conhecimento científico (Bachelard, 1977, p. 121).

Bachelard fala do positivismo nas ciências naturais (1977, p. 122, 123), referindo- se ao “rigor científico” da “química positivista”, referindo-se, por exemplo, à balança que

Lavoisier usava em seus experimentos. Considerando o positivismo do terceiro estágio fundamental para se chegar ao quarto, Bachelard diz:

Como, pois, chegar ao quarto período, se não se compreende bem a importância do terceiro, o próprio sentido do estado positivista? De fato, não há ruptura científica sem um cumprimento das obrigações, ao positivismo. É preciso passar pelo positivismo para superá-lo. Para nós que queremos determinar as condições epistemológicas do progresso científico, é preciso ter como positivo o positivismo em oposição ao caráter “retrógrado” das filosofias da natureza, marcada da metafísica idealista, tomando-se a palavra “retrógrado” no seu sentido comteano bem definido.

É, pois, a partir da positividade da experiência científica própria do terceiro estado da epistemologia comtiana que nos será necessário definir o sentido profundamente instrumental e racionalista da experiência científica (1977, p. 123). (sem grifo no original)

Estabelecendo um contraponto entre o terceiro e o quarto estados, Bachelard expõe o real em ciência nos dias atuais. Esses dois estados realizam experiências em ciência, extraindo leis. No entanto, o método epistemológico aplicado é diferente, predominando no quarto estado as equações matemáticas que representam os fenômenos físicos, enquanto que, no terceiro estado, o preponderante era a descrição das características dos fenômenos por sua observação direta. Ou seja, a questão do caráter direto e indireto é fundamental nessa diferenciação. Bachelard afirma: “O simples fato de haver agora o caráter indireto das determinações do real científico basta para nos situar num reino epistemologicamente novo” (Bachelard, 1977, p. 123).

Ele explica, por exemplo, que no terceiro estado bastava a balança para determinar o peso atômico, enquanto no quarto estado é usada outra técnica, indireta: o espectroscópio

de massa (que é instrumento indireto se comparado à balança). Bachelard afirma: “Na

química de Lavoisier pesa-se o cloreto de sódio como na vida comum se pesa o sal de cozinha”. Por outro lado, dando um exemplo do quarto estado, “os fenômenos elétricos dos átomos estão ocultos” e “é preciso instrumentá-los numa aparelhagem que não tem significação direta na vida comum”. Afastar-se, portanto, dos mecanismos da vida comum (do conhecimento vulgar, em que predomina o fenômeno concreto sensível), partindo para níveis mais teóricos, e em busca de uma linguagem específica da ciência, é o ponto central do quarto estado.

Tomando outros exemplos, como o da lâmpada elétrica, Bachelard diferencia as descrições fenomenológicas tradicionais do terceiro estado em relação às equações matemáticas e a “epistemologia discursiva” do quarto, o que trouxe uma ruptura epistemológica entre os dois. O quarto estado representa o “primado da reflexão sobre a apercepção”, “a preparação nomenal dos fenômenos tecnicamente construídos”, sendo dominado por “leis racionais” e “leis algébricas” (1977, p. 128). Ao empirismo realista do terceiro estado, opõe-se o racionalismo do quarto (mas não se trata do racionalismo anterior, que punha na razão pura e simples a origem do conhecimento; o novo racionalismo na verdade é erguido sobre o fenômeno empírico, indo além dele, além do sensível, partindo para esferas teóricas que o expliquem de modo científico e com outra linguagem). No terceiro, o objeto percebido; no quarto, o objeto pensado. No terceiro, o fenômeno; no quarto, o nômeno30.

O quarto estado representa um grande progresso em relação ao terceiro, pois, sem abandonar o fenômeno observável, confere-lhe a devida roupagem teórica que lhe garante, com segurança, o status de ciência. Esse é o método científico atual, esse é o real em ciência, na atualidade. No quarto estado, constrói-se o discurso científico, a linguagem científica, a voz científica, como uma segunda voz por cima do fenômeno empírico. Trata-se de uma linguagem inteligível só para os iniciados, inalcançável (inexpugnável) ao senso comum. Se se perguntar a um dos cientistas da NASA, por exemplo, o que é preciso para se mandar um foguete à Lua, ele responderá mostrando milhares de fórmulas algébricas e matemáticas (de cálculo avançado, de matemática aplicada, porque a dita “matemática pura”, composta de disciplinas como a topologia ou a análise, por exemplo, não é aplicada a objetos concretos). Igualmente, uma pessoa que manuseia com destreza impressionante os programas e ferramentas do computador terá memorizado comandos, teclas que deve apertar, janelas que deve abrir, mas não saberá explicar por que a linguagem binária do computador, composta de zeros e do algarismo um (1), transforma números em imagens coloridas, em sons, em textos, em movimentos, etc. Milhares de casos podem ser citados de fenômenos observáveis no mundo da experiência “traduzidos” para a linguagem científica que somente os cientistas compreendem31 (desde fórmulas químicas de medicamentos, funcionamento de motores e

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Nômeno: em filosofia, é o objeto inteligível, em oposição a objeto que se conhece pela intuição sensível. Dicionário Aurélio.

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Um exemplo interessante aconteceu comigo (autora desta dissertação de mestrado) algum tempo atrás. Passando pela frente de uma sala de aula no Departamento de Física da Universidade Federal de Goiás (Goiânia), vi um grupo de umas cinco ou seis pessoas conversando após a aula e centradas em uma roda raiada

aparelhos elétricos (e mesmo a própria eletricidade) à engenharia dos fogos de artifício ou à técnica da fotografia (milhares de turistas de todos os níveis culturais em todo o mundo dão lucros às empresas e se emocionam com as imagens de pessoas e lugares visitados, manuseando máquinas fotográficas sofisticadas, mal compreendendo instruções básicas do manual de uso do aparelho).

A questão do método em ciência surge no século XVII, como resultado da reflexão de filósofos e cientistas no sentido de se evitar o erro em ciência (erro percebido em relação a paradigmas científicos anteriores). Dessa forma, a preocupação com o método passou a ser uma característica do pensamento moderno, abrangendo tanto os objetos do conhecimento quanto o próprio problema do conhecimento (a epistemologia ou teoria do conhecimento). Na colocação da questão do método destaca-se Descartes (1596-1650), o “pai da filosofia moderna”, que influenciou não só o século XVII (o século cartesiano), mas também os séculos seguintes. Descartes introduziu um novo racionalismo na ciência moderna – que desde então demonstra um progresso impressionante, empírico e teórico, caminhando pari

passu com epistemologia ou teoria do conhecimento.

Um forte componente da ciência moderna é o empirismo (que representa a experiência fenomênica do terceiro estado exposto por Comte). De origem grega, o termo

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