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Precursores clássicos do Espiritismo: Sócrates e Platão

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CAPÍTULO I – O ESPIRITISMO: DOUTRINA DOS ESPÍRITOS

1.3 Precursores clássicos do Espiritismo: Sócrates e Platão

No campo do saber, a metafísica representou historicamente a primeira grande tentativa de pensar o ser e a realidade e de encontrar respostas àquilo que parecia estar além das concepções físicas do mundo.

Aristóteles, considerado o "pai" da metafísica, embora não tenha usado o termo “metafísica”, fez deste um dos temas centrais de seu pensamento, como a “filosofia primeira”, tendo-o buscado em ideias de Platão, trazendo-o para a posteridade, com reflexões que ocuparam filósofos e cientistas por mais de um milênio. Por metafísica não se devem compreender exclusivamente as investigações realizadas em planos extrafísicos, ou seja, fora da realidade do mundo físico, mesmo porque, numa época em que a ciência não estava constituída, a especulação, como o único modo de se criar conhecimento, abrangia os dois planos: o material e o imaterial.

Em Aristóteles, o que se denomina hoje de metafísica não possuía um conceito único, até porque tal atividade intelectiva, considerada por muitos como ciência, englobava amplos aspectos, como a indagação de causas e princípios do ser enquanto ser e a investigação da substância sensível e da substância suprassensível.

García Morente, referindo-se à ontologia, define metafísica:

Fica, pois, reduzido nosso problema da ontologia a estas duas perguntas: quem existe? e: que é consistir?

Para a primeira existem múltiplas e variadas respostas. As respostas que se dão à pergunta: quem existe? constituem a parte da ontologia que se chama a

metafísica. A metafísica é aquela parte da ontologia que se encaminha a decidir

quem existe, ou seja, quem é o ser em si [...]. A metafísica é a parte da ontologia que responde ao problema da existência, da autêntica e verdadeira existência, da existência em si (Morente, 1970, p. 62). (com grifos no original)

Se para esse escritor a metafísica é parte da ontologia, para outros pensadores a metafísica se confunde com a própria filosofia na atividade de reflexão sobre o ser e o mundo, num esforço de pensar certo sobre as respostas às inquietações quanto a essas realidades, na busca dos “porquês” que explicariam a origem do homem, sua presença e seu destino no mundo.

Na introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo, no item IV, com o título de

Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo, Allan Kardec resgata as ideias

intuitivas dos dois filósofos gregos referentes a vários conceitos especulativo-metafísicos acerca do homem, da morte e da alma, que viriam, depois de dois milênios, a constituir-se fundamentos do Espiritismo: o homem como alma encarnada; a sabedoria como estado a ser alcançado pela alma (virtude como dom de Deus); a verdade como busca da liberdade e da perfeição; as almas errantes dos homens maus; a recondução da alma à vida depois da passagem pelo Hades; a existência de demônios/daimon (Espíritos inferiores, categorizados pelo Espiritismo); a eternidade referendada pela imortalidade da alma; a imperiosidade de maior cuidado da alma na vida encarnada devido a sua curta existência terrena; a existência de mundos invisíveis para abrigar as almas invisíveis; a justiça da imortalidade das almas (boas ou más); a determinação do homem para o campo do bem; a morte como convite à consciência do próprio homem; o mútuo respeito entre os homens como condição de justiça; a lei de causa e efeito das ações humanas (boas ou más); os diferentes graus de desmaterialização da alma; a morte como transformação de estados vitais sem solução de continuidade; o estado de pureza ou não do Espírito como aferição do bem e do mal; o retorno da alma (Espíritos sem corpos) ao mundo dos vivos (reencarnação); etc.

Baseado na “teoria dos contrários” de Heráclito, Platão desenvolve um raciocínio lógico-dedutivo da existência da alma. Lê-se em Fédon (2005) o seguinte diálogo entre Sócrates e Cebes:

–– Sócrates, tudo isso me parece excelentemente dito. Porém, o que você disse a respeito da alma é objeto de grande incredulidade para os homens, pois estes não crêem que, depois de se separar do corpo, ela possa existir em alguma parte. Acreditam que a alma é destruída e perece no dia da morte. Se separa e sai do corpo, imaginam, esvai-se como hálito ou fumo e, esvaída deste modo, não existe em nenhum lugar. Pois, se subsistisse em outro lugar, unida a si mesma e liberta dos males de que falaste agora, a esperança de que as suas palavras fossem verdadeiras, Sócrates, seria bela e grande. Mas a afirmação de que a alma de quem morre continua a viver, atuar e pensar necessita de explicação e de prova (p. 33).

Em primeiro lugar, inquiramos se as almas dos que morrem vão para o Hades ou não. Uma tradição antiga, da qual nos lembramos, conta que as almas, depois de partirem para o além, voltam para este mundo com o objetivo da renascer dos mortos. Caso isto seja verdade, isto é, se os mortos renascem, como poderemos concluir outra coisa senão a de que as almas existem no além? Afinal, como poderiam renascer se não existissem? Se houvesse clareza no fato de que os vivos nascem dos mortos, teríamos nisto uma prova satisfatória. Porém, se isto revelar-se uma inverdade, será necessário procurar outra (p. 34).

[...]

–– E qual é a geração contrária da morte? –– Renascer.

–– Então – prosseguiu – dado que o renascimento exista, não seria o regresso à vida a geração que parte dos mortos para os vivos?

–– Certamente.

–– Portanto, neste aspecto também concordamos: que os vivos nascem dos mortos e, não com menos razão, que os mortos nascem dos vivos. Dessa forma, parece-me que há fundamento bastante para afirmarmos que as almas dos mortos existem em algum lugar, pois isso se faz necessário para que possam regressar à vida (Platão, Fédon, 2005, p. 37 e 38).

Continuando o diálogo maiêutico a respeito da dualidade corpo e alma, Platão tenta ainda provar a existência da alma pelas teorias da “reminiscência” e “ideias como objeto do pensamento”. Após esses raciocínios, Platão prossegue acerca da dicotomia corpo e alma:

–– Olha agora, Cebes – prosseguiu Sócrates –, se de tudo quanto dissemos se pode concluir que alma tem grande semelhança com o divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e com o que permanece sempre o mesmo e se comporta da mesma maneira; ao passo que o corpo é bastante semelhante ao que é humano, mortal, não inteligível, multiforme, dissolúvel e ao que nunca se comporta do mesmo modo. Poderemos, meu caro Cebes, alegar alguma razão contra isso e dizer que não é assim? (Platão, Fédon, 2005, p. 57).

[...]

–– Quando o homem morre, como já deve ter percebido – continuou ele –, a sua parte visível, o corpo, que jaz patente aos nossos olhos e a que chamamos cadáver, ainda que tenha a característica de dissolver-se, decompor-se e dissipar-se, não entra imediatamente neste estado, mas conserva-se incorrupto, por bastante tempo. E, se aquele que morreu era belo e estava na flor dos anos, o seu corpo resiste muitíssimo mais à corrupção. Sendo, porém, o cadáver embalsamado, como as múmias do Egito, chega a atingir, quase intacto, uma duração incalculável. Além disso, certas partes, como os ossos e tendões, são, por assim dizer, imperecíveis. Não é verdade? (Platão, Fédon, 2005, p. 57 e 58).

–– Sim.

–– E então a alma, a parte invisível do homem, que vai para um lugar semelhante a ela, nobre, puro, invisível, para o Hades propriamente dito, onde fará companhia à divindade que é boa e sábia, para onde espero ir em breve, se o deus o desejar: uma alma dessa natureza e constituição, deverá, depois de se separar do corpo, ser logo dissipada e perecer, como a maioria dos homens afirma? Bem longe disso, meus caros Cebes e Símias. Muito ao contrário, a verdade é como vou dizer. Se a alma se separa do corpo em estado de pureza, sem levar nada dele, visto que, durante a vida, não teve voluntariamente relacionamento alguma como ele, mas fugiu-lhe, para se unir a si mesma, a cujo exercício se entregou sempre, o que significa que se dedicou à verdadeira filosofia e a exercitar-se em morrer sem repugnância. Ou não se chamaria isso de exercitar-se em morrer? (Platão, Fédon, 2005, p. 57 e 58).

Apoiando as reflexões de suas descobertas sobre o destino da alma, Kardec lembra o diálogo de Sócrates com os seus juízes, quando este fala sobre a morte e vida como uma mudança de morada. Conforme palavras de Kardec:

Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que continuam as relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira que a morte não é nem uma interrupção, nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de continuidade (Kardec, ESE, 2006, p. 50).

Dessa forma, o pensamento especulativo e metafísico de Sócrates e Platão sobrea existência e imortalidade da alma (vida e morte) encontra-se na base da Doutrina Espírita erigida por Kardec (não a partir dos filósofos gregos mas a partir dos próprios desencarnados). Kardec refere-se a Sócrates e Platão diversas vezes em sua vasta obra:

Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam perfeitamente os diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na diversidade de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O que eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova como os inúmeros exemplos que nos põe sob as vistas (Kardec, O Céu e o Inferno, 2ª parte, 2006, p. 48).

Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates e Platão pressentiram a ideia cristã, em seus escritos também se nos deparam os princípios fundamentais do Espiritismo (Kardec, ESE, 2006, p. 44).

Pode-se questionar se Denizard Rivail se dedicava à leitura de Sócrates e Platão no tocante à alma, pois seu campo de saber e atuação, na sociedade francesa da sua época, era outro. Com certeza, apenas Allan Kardec, após estar convencido da existência e atuação dos Espíritos (pessoas desencarnadas), passa a se debruçar sobre as especulações desses filósofos acerca do assunto, chegando a ponto de considerar Sócrates e Platão como precursores do Espiritismo, o que de certa forma conferia um grande peso à nascente doutrina, em razão do reconhecido peso dos filósofos clássicos, cujos estudos são citados por todos que se interessem pelo espiritualismo em geral – embora Kardec se pautasse mesmo, para a codificação do Espiritismo, era no fato concreto e observável das manifestações espíritas, bem como nas explicações, orientações e ensinamentos fornecidos pelos Espíritos, que provaram que o homem é um ser espiritual e imortal:

O conceito de espírito é uma categoria lógica, semelhante às de espaço e tempo, que o homem desenvolveu com a experiência sensível. (...) não foi da

imaginação primata (incapaz de tal abstração) que surgiu o conceito de espírito, mas dos fenômenos de aparições, de materializações e de todos os tipos de manifestações paranormais” (Pires, 1983, p. 36, in Incontri, 2006, p. 78).

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