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A circularidade como movimento da verdade

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 54-57)

B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.

15. A circularidade como movimento da verdade

A maneira estável pela qual as coisas se mostram não se deve simplesmente a uma firmeza de espírito pessoal, mas à reciprocidade hermenêutica que os existentes humanos estabelecem entre si na coexistência. Nesse ambiente de compreensibilidade, nos encontramos sempre numa relação circular entre a apreensão da coisa à mostra e a reciprocidade dos humanos em relação ao modo em que tal coisa obtém uma significa- ção concreta, numa experiência mútua de verossimilhança. Subsumimos categorialmen- te a unidade desses fenômenos na palavra composta comum-unidade, que se tornou, desde então, o fio condutor da nossa investigação. Revelou-se também, no desdobra- mento circular dessa comum-unidade, a necessidade de um engajamento, que, num primeiro momento, se nos mostrou a partir da reabilitação de Heidegger da circularida- de. Nessa ocasião, porém, não nos perguntamos: qual a posição de Heidegger a respeito desse engajamento? – tarefa que devemos assumir agora.

Na recuperação do círculo hermenêutico, Heidegger (2002a, p. 210) sequer en- trevê, assim nos parece, algum engajamento, conquanto se trate de uma tarefa da inter- pretação apropriar-se de sua dimensão prévia. Todavia, essa tarefa não consiste em res- pondermos aos encaminhamentos da tradição onde nos situamos; ao contrário até, de- vemos nos precaver dos “conceitos populares” (Volksbegriffe) dela provenientes. Ora, resta-nos reorientar, portanto, todo o horizonte prévio da interpretação exclusivamente a partir das próprias coisas, numa experiência originária que, a partir de si mesma, lhes

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desvela o ser. Em face da superficialidade do pensamento tradicional, a experiência ori- ginária da verdade se realiza numa solidão absoluta, somente onde se deixa ouvir o sus- surro silencioso do ser. Ainda que estruture previamente a existência, mesmo numa tal experiência originária, a coexistência (Mitsein) parece se tornar de repente uma via de mão única. O abandono ao ser motiva o filósofo a discursar longamente para os outros, ao passo que estes, porém, devido à virginalidade do fenômeno, não parecem participar da própria urdidura dessa experiência. – Aí a tradição parece se calar, deixando de atuar previamente no pensamento do filósofo.

Somente após as transformações desse instante de lucidez, o filósofo parece pronto não tanto para dialogar realmente com seus predecessores e contemporâneos, mas, sobretudo, para lhes mostrar aquilo para que não tiveram olhos. Não por acaso, dentre todos os modos de discurso, Heidegger (2003a, p. 354) privilegia a interpretação do lógos apophantikós, que, de acordo com as indicações de Aristóteles, simplesmente

mostra a coisa visada. Diferentemente de um pedido, que mobiliza alguém para a reali- zação de uma tarefa, o lógos apophantikós, segundo Heidegger, apenas abre a possibili- dade de aprimorar o conhecimento de quem o compreende. Haja vista as determinações da experiência originária da verdade para as quais apontamos até agora, parece bem condizente esse predomínio do lógos apophantikós na interpretação de Heidegger a res- peito da linguagem. – Todavia, o desvelamento do lógos apophantikós sucede mesmo

sem qualquer interpelação de quem nos mostra uma coisa? – Em caso contrário, eis a questão, não devemos considerar que, em qualquer experiência da verdade, já sempre ressoa historicamente essa interpelação de outrora, de modo que jamais nos encontra- mos a sós a partir de nós mesmos diante das coisas?

Embora também reitere, assim como Heidegger, a caracterização de Aristóteles a respeito do lógos apophantikós, a orientação de Gadamer (2004d, pp. 60, 68) já nos encaminha noutro sentido, quando nos revela que a experiência da verdade se constitui essencialmente da interpelação. O desvelamento sempre envolve em seu âmbito de ex- periência aqueles para quem se discursa, convidando-os a se posicionar ante uma per- gunta ou uma afirmação. Não apenas as coisas disponíveis à mão nos constrangem, mas – eis toda a questão – esse constrangimento também se concretiza significativamente sob os influxos de uma orientação hermenêutica prévia. Por conseguinte, esse constran- gimento redunda sempre das orientações provenientes de uma tradição, cujo desdobra- mento devém da própria historicidade da coexistência. – Numa tradição em interminá- vel processo de consolidação histórica, nos encontramos sempre na iminência de reto-

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mar e preservar uma maneira prévia pela qual, predominantemente, viemos acolhendo o constrangimento que as coisas em redor livremente nos promovem.

O desvelamento do lógos apophantikós sempre interpela os outros a quem se dirige, em vez de exclusivamente lhes mostrar a coisa em pauta em seu discurso, como Heidegger pensa, seguindo as indicações de Aristóteles. – Por meio dessa interpelação, quem discursa convida os outros a reorganizar, ao menos em parte, a maneira prévia pela qual interpretam o mundo circunjacente, a fim de se orientar pela perspectiva em que se faz ver a coisa em questão no lógos. Uma vez que atendemos a tal convite, deve- remos lidar com tal transformação da nossa maneira de ver, que passa a constituir a nos- sa historicidade, devindo na maneira pela qual experimentaremos a verdade daí em di- ante. Pensar é dialogar com estes que comparticipam da nossa própria historicidade, enquanto coexistem conosco numa comum-unidade onde se sustém e se experimenta a reciprocidade quanto ao modo em que as coisas se mostram como tais e tais. Ninguém pode interpretar as coisas circunjacentes simplesmente a partir de si mesmo, pois não podemos suspender a nossa própria historicidade.

“A verdade começa a dois” não apenas porque os nossos desencobrimentos so- mente obteriam alguma solidez na comunicação, como nos diz Jaspers (1998, p. 123), mas porque, antes até de comunicá-la, a verdade principia constitutivamente a dois. Eis o nexo histórico da circularidade da experiência hermenêutica, que impulsiona em espi- rais incansáveis a configuração movente de preposições – a fenomenização da própria verdade. A errância já sempre contagiou o mistério do ser, de sorte que a estruturação prévia da interpretação nunca pode se pautar apenas pela “pressão das coisas mesmas”, mas já se norteia invariavelmente, a revelia dos “pensadores originários”, pelas orienta- ções da coexistência. Por isso, como sugerimos logo nos primeiros momentos dessa investigação, não há lógica que nos redima da circularidade em que a experiência da verdade se move. Na contramão de uma tendência predominante em nosso tempo, Ga- damer (2003a, p. 32) já nos adverte: “Aquilo que se transforma chama muito mais a atenção do que aquilo que continua como sempre foi”.

Uma vez que o lógos apophantikós não simplesmente mostra a coisa em apreço, como pensa Heidegger, mas requer aos outros a quem se dirige um engajamento, deve- mos reconsiderar a legitimidade do fenômeno da reconstrução, que se anunciou nas in- vestigações de Schleiermacher. Caso atendamos à interpelação do lógos apophantikós e, por isso, nos disponhamos a reorganizar nosso horizonte prévio, se necessário, para a coisa em questão se mostrar como tal e tal, devemos reconstruir a perspectiva na qual

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se move o discurso que nos dispomos a interpretar. No entanto, até em virtude da juste- za das críticas de Gadamer, não se pôde reconhecer certa legitimidade por trás da rei- vindicação de Schleiermacher (2000, p. 39), segundo a qual “(...) a tarefa da hermenêu- tica consiste em reconstruir (...) a inteira evolução interior da atividade compositora do escritor”. Esta investigação, por sua vez, se põe no caminho de conciliar a experiência da verdade com a conduta reconstrutora da experiência hermenêutica, a fim de não in- correr num “esteticismo” da linguagem.

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 54-57)