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A orientação epistemológica de Dilthey com respeito à determinação da consciência

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 67-70)

B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.

19. A orientação epistemológica de Dilthey com respeito à determinação da consciência

19.1. A alternativa de Dilthey para o antagonismo entre a consciência histórica e a propensão da metafísica à universalidade necessária.

Esse paradoxo em que a experiência da verdade se pretende universal e necessá- ria, quando, em contrapartida, deve as condições de seu surgimento às contingências da história – esse paradoxo se tornou notório na tradição da filosofia principalmente por meio dos questionamentos de Dilthey. Contra quaisquer demonstrações rigorosas em prol da validez universal dos sistemas metafísicos, segundo Dilthey (1992, pp. 15ss), um fato se impõe historicamente a todos os pensadores. Tal como os costumes, os ideais morais e as religiões, os sistemas metafísicos sucumbiram ao decurso da história, sem consolidar a validez universal e necessária com que se apresentaram; um após outro, se combateram e se excluíram sem, porém, estabelecer alguma decisão sólida. Embora tencione um “conhecimento objetivo da conexão da realidade efetiva” (ibid, p. 18), toda metafísica resulta dos condicionamentos decorrentes de certas circunstâncias históricas e detém uma validez apenas relativa.

Embora a história revele tal panorama desanimador para as pretensões da meta- física, Dilthey (ibid., p. 28) nos convida a resistir à tendência de propagar um “ceticismo vazio” que se baseia num raciocínio simples: “Ora, se a dialética da história conduz à eliminação mútua das sucessivas metafísicas, porventura, esse processo se deteria diante do meu próprio pensamento metafísico?”. À primeira vista, a alternativa de Dilthey não parece responder a esse impasse: resta-nos promover uma auto-reflexão, a fim de que a filosofia tome a sua própria história como “objeto de conhecimento”, até reconhecer ali, na variedade das perspectivas metafísicas, um fenômeno comum. Trata-se de elaborar, a partir de uma análise metódica da história, um conceito filosófico que torne compreen- sível o próprio curso da filosofia. Dilthey (ibid., p. 20) rascunha esse procedimento nu- ma proposição demasiado sumária, porém, significativa: “Aplicação da consciência histórica à filosofia e à sua história”.

Podemos marcar uma diferença substancial na postura que Dilthey assumiu em comparação com os historiadores que se inspiravam em Hegel. Em vez de resolver as contradições de uma metafísica por meio de uma relação dialética com uma metafísica historicamente subseqüente (ibid., p. 57), atitude que não passa de um “deleite improfí- cuo do erudito” (ibid., p. 29), devemos nos portar como filósofos, segundo Dilthey, ten- tando buscar na história a origem das metafísicas – apesar da finitude implacável que

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também inere tal empreendimento. Mas onde, na miríade de pensamentos legados pela história, devemos procurar esse fenômeno originário?

Se a história nos conscientiza da finitude de todo pensamento metafísico, essa conscientização possibilita ao menos uma abertura para essa limitação, uma vez que passamos a notar, enfim, a condição do nosso próprio pensamento. Ora, a finitude não se encontra exatamente nas coisas sobre as quais elaboramos interpretações metafísicas, mas sim em nós mesmos, justo em virtude das condições pelas quais existimos enquanto de seres pensantes. Assim, Dilthey (ibid., p. 110) nos orienta a procurar o fenômeno comum às várias perspectivas metafísicas no ser humano, não no mundo. Devemos nos perguntar, porém, a partir de qual perspectiva Dilthey promove essa auto-reflexão e que postura em relação à finitude pode decorrer de sua alternativa.

19.2. A orientação epistemológica da consciência histórica.

Ao tentar fazer jus à atitude genuinamente filosófica por meio dessa conscienti- zação histórica, em direção de um “sistema unitário de validade universal”, Dilthey (i-

bid., p. 134) se empenha em inflectir por um rumo diferente não apenas dos historiado- res mas também de uma tendência imperante entre os próprios metafísicos. A inversão de rota da visada cognoscitiva, que retorna do mundo para ao ser humano, visa uma investigação das “condições da consciência” (ibid., p. 62), que, em síntese, confluem para a vida, o fenômeno comum onde se enraíza qualquer metafísica. Nesse aspecto, essa auto-reflexão propagada por Dilthey (loc. cit.) revela explicitamente a sua inspira- ção prévia no transcendentalismo de Kant,15 pois a vida consiste no horizonte funda- mental em que o conhecimento desenvolve o seu percurso histórico.

Uma vez que a vida deve ser o fundamento último de toda a referência humana ao mundo em redor, também nela se encontram as determinações da finitude, pois os limites das pretensões da metafísica se impõem a partir de circunstâncias decorrentes da vida. Em conseqüência, a postura dessa consciência histórica em relação à sua própria finitude, que nela vige segundo uma “lei”, como enfatiza Dilthey (ibid., p. 29), parece se mostrar surpreendentemente dúbia. Para quem a descobre como um fato, a vida deve atuar como o “fundamento firme” (loc. cit.) – vale acrescentar: necessário e universal (ibid., p. 62) – do embate histórico entre as concepções de mundo; ao mesmo tempo,

15 “A consciência histórica vira-se para a profundidade quando indaga as condições produtoras [dessas

três atividades] na vida, etc. Tal foi, ao fim e ao cabo, a intenção de Kant.” (ibid., p. 29). As três ativida- des da vida a que se refere Dilthey são a filosofia, a religião e a arte.

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porém, em quem vige como uma condição transcendental, a vida deve atuar como o fenômeno determinante da finitude do pensamento metafísico.

Nessa dubiedade, se exprime o anelo conflitante de Dilthey de preservar a legi-

timidade do impulso primordial da própria filosofia contra o diletantismo do erudito, que, em face da consolidação iminente do relativismo, se contenta em dispor dialetica- mente em série as várias perspectivas históricas – exercício filosoficamente inócuo –. No entanto, preservar a legitimidade do impulso filosófico, conforme as indicações de Dilthey, consiste em elaborar um conhecimento cujo fundamento seja “firme”, numa palavra, não só universal mas também necessário. A orientação de Dilthey coere ple- namente com as preocupações da epistemologia, da qual o retorno aos “pressupostos” da metafísica colhe a sua significação primária. A vida deve tornar compreensível o malogro do projeto epistemológico moderno em favor de um conhecimento universal e necessário, embora, simultaneamente, na condição de fundamento desse fato histórico, deva possibilitar, enfim, a realização desse mesmo projeto!

Rigorosamente, portanto, a consciência histórica não reivindica a assunção da finitude, mas sim a persistência do “sujeito cognoscitivo” em consumar a pretensão do conhecimento metafísico. A própria história, desde que origina os contínuos insucessos da metafísica, deve esconder em si a resposta para o mistério, que se oculta enquanto os filósofos se mantêm atentos ao mundo. Deve haver, portanto, um fenômeno comum na pluralidade das concepções de mundo,16 de onde se pode haurir um conceito filosófico. O retorno à vida se propõe a corrigir um equívoco dos filósofos precedentes, que, até então, buscaram erroneamente no mundo o fundamento universal e necessário do co- nhecimento. Em resistência ao ceticismo vazio e ao diletantismo do erudito, Dilthey busca na consciência histórica um refúgio, talvez último, para a meta epistemológica da metafísica. Todavia, esse recurso não parece evitar uma pergunta renitente, de que Dil- they (ibid., p. 28) não se esqueceu: “(...) acreditas que, porventura, ela [a dialética histó- rica] se vá deter diante do teu sistema?”.

Nesse aspecto, o impulso fundamental de Dilthey não parece diferir daquele que movia os metafísicos anteriores, de maneira que, para resolver o antagonismo entre a finitude e a propensão da verdade filosófica à universalidade necessária, só lhe restou confrontar metafísica com metafísica. A finitude desfaz, num movimento avassalador,

16 A ênfase constante na metodologia nos proporciona um indício explícito do predomínio da orientação

epistemológica na investigação de Dilthey (ibid., pp. 43ss, 61), que constantemente se predispõe a encon- trar uma “lei” no decurso histórico da metafísica, assim como um cientista busca na natureza uma regula- ridade subjacente na sucessão de eventos. Cf. também Dilthey (2002).

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as pretensões epistemológicas do sujeito cognoscitivo, de sorte que não lhe resta qual- quer alternativa, senão um paradoxo. De antemão, Dilthey não poderia resolver o pro- blema, pois não se permitiu reorientar a sua determinação da atitude filosófica para tor- ná-la condizente com a sua própria condição finita.

Esse paradoxo no pensamento de Dilthey laureia, então, o ceticismo vazio e o diletantismo? Não restaria ainda na postura de Dilthey diante da história uma indicação legítima, haja vista que a sua motivação primordial aponta para a conjugação da filoso-

fia com o seu próprio percurso secular? – Por enquanto, pensemos a respeito das se- guintes palavras de Dilthey:

Há sempre muros que nos limitam. [...] pois tropeçamos [...] justamente na historicidade da consciência humana como uma propriedade fundamental su- a. A tarefa positiva consiste em elevar à consciência os pressupostos sob os

quais o homem vive e pensa [...]. (ibid., p. 62, grifos nossos).

20. A realização do propósito epistemológico da consciência histórica por

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 67-70)