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Explicitação da problemática a respeito da experiência originária

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 48-50)

B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.

12. Explicitação da problemática a respeito da experiência originária

O reconhecimento de que a proposição nos remete às próprias coisas, não às “representações” de quem as pronuncia, desencobre, sem dúvida, uma determinação essencial da nossa própria existência enquanto transcendência. Ao mesmo tempo, po- rém, as pretensões da orientação fenomenológica, pela qual se realiza tal desvelamento ontológico, agravam em face das vicissitudes da existência humana a problematicidade desse próprio que nos remete à coisa em sua autonomia fenomênica. Uma vez que a

presentação das coisas só se efetiva relativamente para quem as descobre e as reco- nhece, não se pode apreender tal presentação plenamente à parte daquilo que determina a liberdade hermenêutica por intermédio da qual se tornam possíveis tais descobertas e reconhecimentos. Portanto, a referência, constitutiva de qualquer discurso, à liberdade fenomenológica das coisas ocorre sempre no transcurso histórico do lógos, em que se desdobra a liberdade hermenêutica da existência humana. – Desencobrir essências, compreendendo as coisas assim e assim, sempre consiste em assumir um determinado posicionamento em meio aos envios do passado.

A partir dessa perspectiva, a verdade não se resume simplesmente num desenco- brimento do ente circunjacente tal como se dá em si mesmo para a apreensão de um filó- sofo que, numa “experiência originária”, se mantém momentaneamente imune aos in- fluxos deturpantes da coexistência. Em qualquer momento de sua existência, cada qual lida com as próprias coisas – de sorte que disso não duvidamos, deixe-se claro. Preocu- pa-nos antes a seguinte questão: como assimilamos, numa interpretação historicamente determinante, essa concretude fenomenológica das coisas com que nos deparamos coti- dianamente? Embora a experiência da verdade compreenda os esforços individuais, cada qual traz em si mesmo a presença viva de uma tradição, de cuja influência não po-

de se precaver plenamente na medida em que sua existência decorre, sobretudo, numa coexistência. Porém, Heidegger determina a experiência originária de tal modo que pa- rece contrariar essas nossas indicações, sobretudo, se atentarmos para a sua caracteriza- ção do pensamento metafísico.

A etimologia da palavra “metafísica” já nos apresenta um problema de significa- ção, pois, como se tornou historicamente notório, as motivações para a sua cunhagem não advieram de uma interpretação cuidadosa do tópico fundamental dos textos de Aris- tóteles, dos quais, porém, essa palavra se tornou título célebre. As exigências técnicas para se cunhar a expressão tà metà tà physiká não parecem condizer com uma “experi- ência humana essencial” – somente a partir da qual se torna possível, como Heidegger

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(2003a, p. 31) apregoa, a formação de uma “palavra originária”. Portanto, as vicissitu- des da história apresentam a Heidegger um impasse desconcertante: a palavra pela qual se nomeia a própria filosofia não adveio de uma experiência originária. Por isso, nesse questionamento a respeito da origem filosoficamente espúria da expressão tà metà tà

physiká, Heidegger se orienta a partir de uma interpretação prévia da filosofia – ou seja, da metafísica – como uma experiência originária.

A determinação do pensamento metafísico não se resume apenas ao aspecto po- sitivo de “um conhecimento que se encaminha para o ente em totalidade”, conforme abertamente nos revela Heidegger (ibid., p. 66). O pensamento se torna especificamente

metafísico porque, ao perguntar pelo ente em totalidade, se contrapõe à atitude cotidia- na, que, segundo Heidegger (ibid., p. 52), nos desvia das determinações originárias de Aristóteles acerca da próte philosophía – o parâmetro para uma genuína significação da palavra “metafísica”. – Ora, para comprovar que efetivamente houve uma apropriação “ilegítima” das investigações de Aristóteles, Heidegger (ibid., p. 54) nos apresenta uma interpretação crítica do pensamento de Tomás de Aquino – que não nos parece um pen- samento propriamente cotidiano.

Rigorosamente, portanto, a atitude cotidiana parece compreender também filóso-

fos que forneceram uma significação substancial à palavra “metaphysica”, sintetização latina da expressão grega tà metà tà physiká. O desgarro do mundo das ocupações, que constantemente ameaça a assunção do mistério, parece assolar a filosofia desde dentro, pondo em questão a pretensa autonomia da atitude filosófica em relação ao pensamento cotidiano, como apregoa Heidegger (loc. cit.).

Antes mesmo dessa incursão na história da expressão tà metà tà physiká, portan- to, Heidegger já parece dispor de uma derradeira determinação do pensamento metafísi- co em face das “opiniões da tradição” (ibid., p. 66): “ficar só no qual cada um se encon- tra a partir de si mesmo como um singular diante da totalidade” (ibid., p. 11, grifos meus). Aí se abrem, enfim, os nossos questionamentos não porque desconsideramos quaisquer diferenças fundamentais entre a atitude filosófica e a conduta despretensiosa do cotidiano. Toda a controvérsia reside em que a experiência originária se assenta nes- sa singularização da experiência hermenêutica, que, como tal, supostamente nos res-

guarda dos influxos concretos da coexistência e, em geral, da tradição, promovendo um momento de absoluta clarividência ontológico-fenomenológica. Já apontamos prelimi- narmente para essa orientação de Heidegger, que somente agora pôde se tornar suficien- temente explícita. A indicação tácita e problemática de uma experiência originária da

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verdade consiste em nos orientar, em suma, para esse encontro a sós de cada intérprete

a partir de si mesmo diante da totalidade.

Enfim, devemos nos perguntar: quais as condições dessa experiência que, como Heidegger apregoa, nos mune de uma perspectiva que se orienta a partir de si mesma e, assim, nos liberta das “opiniões da tradição”? Em que medida não nos deparamos com uma abstração da ontologia fenomenológica?

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 48-50)