B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.
12. Explicitação da problemática a respeito da experiência originária
O reconhecimento de que a proposição nos remete às próprias coisas, não às “representações” de quem as pronuncia, desencobre, sem dúvida, uma determinação essencial da nossa própria existência enquanto transcendência. Ao mesmo tempo, po- rém, as pretensões da orientação fenomenológica, pela qual se realiza tal desvelamento ontológico, agravam em face das vicissitudes da existência humana a problematicidade desse próprio que nos remete à coisa em sua autonomia fenomênica. Uma vez que a
presentação das coisas só se efetiva relativamente para quem as descobre e as reco- nhece, não se pode apreender tal presentação plenamente à parte daquilo que determina a liberdade hermenêutica por intermédio da qual se tornam possíveis tais descobertas e reconhecimentos. Portanto, a referência, constitutiva de qualquer discurso, à liberdade fenomenológica das coisas ocorre sempre no transcurso histórico do lógos, em que se desdobra a liberdade hermenêutica da existência humana. – Desencobrir essências, compreendendo as coisas assim e assim, sempre consiste em assumir um determinado posicionamento em meio aos envios do passado.
A partir dessa perspectiva, a verdade não se resume simplesmente num desenco- brimento do ente circunjacente tal como se dá em si mesmo para a apreensão de um filó- sofo que, numa “experiência originária”, se mantém momentaneamente imune aos in- fluxos deturpantes da coexistência. Em qualquer momento de sua existência, cada qual lida com as próprias coisas – de sorte que disso não duvidamos, deixe-se claro. Preocu- pa-nos antes a seguinte questão: como assimilamos, numa interpretação historicamente determinante, essa concretude fenomenológica das coisas com que nos deparamos coti- dianamente? Embora a experiência da verdade compreenda os esforços individuais, cada qual traz em si mesmo a presença viva de uma tradição, de cuja influência não po-
de se precaver plenamente na medida em que sua existência decorre, sobretudo, numa coexistência. Porém, Heidegger determina a experiência originária de tal modo que pa- rece contrariar essas nossas indicações, sobretudo, se atentarmos para a sua caracteriza- ção do pensamento metafísico.
A etimologia da palavra “metafísica” já nos apresenta um problema de significa- ção, pois, como se tornou historicamente notório, as motivações para a sua cunhagem não advieram de uma interpretação cuidadosa do tópico fundamental dos textos de Aris- tóteles, dos quais, porém, essa palavra se tornou título célebre. As exigências técnicas para se cunhar a expressão tà metà tà physiká não parecem condizer com uma “experi- ência humana essencial” – somente a partir da qual se torna possível, como Heidegger
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(2003a, p. 31) apregoa, a formação de uma “palavra originária”. Portanto, as vicissitu- des da história apresentam a Heidegger um impasse desconcertante: a palavra pela qual se nomeia a própria filosofia não adveio de uma experiência originária. Por isso, nesse questionamento a respeito da origem filosoficamente espúria da expressão tà metà tà
physiká, Heidegger se orienta a partir de uma interpretação prévia da filosofia – ou seja, da metafísica – como uma experiência originária.
A determinação do pensamento metafísico não se resume apenas ao aspecto po- sitivo de “um conhecimento que se encaminha para o ente em totalidade”, conforme abertamente nos revela Heidegger (ibid., p. 66). O pensamento se torna especificamente
metafísico porque, ao perguntar pelo ente em totalidade, se contrapõe à atitude cotidia- na, que, segundo Heidegger (ibid., p. 52), nos desvia das determinações originárias de Aristóteles acerca da próte philosophía – o parâmetro para uma genuína significação da palavra “metafísica”. – Ora, para comprovar que efetivamente houve uma apropriação “ilegítima” das investigações de Aristóteles, Heidegger (ibid., p. 54) nos apresenta uma interpretação crítica do pensamento de Tomás de Aquino – que não nos parece um pen- samento propriamente cotidiano.
Rigorosamente, portanto, a atitude cotidiana parece compreender também filóso-
fos que forneceram uma significação substancial à palavra “metaphysica”, sintetização latina da expressão grega tà metà tà physiká. O desgarro do mundo das ocupações, que constantemente ameaça a assunção do mistério, parece assolar a filosofia desde dentro, pondo em questão a pretensa autonomia da atitude filosófica em relação ao pensamento cotidiano, como apregoa Heidegger (loc. cit.).
Antes mesmo dessa incursão na história da expressão tà metà tà physiká, portan- to, Heidegger já parece dispor de uma derradeira determinação do pensamento metafísi- co em face das “opiniões da tradição” (ibid., p. 66): “ficar só no qual cada um se encon- tra a partir de si mesmo como um singular diante da totalidade” (ibid., p. 11, grifos meus). Aí se abrem, enfim, os nossos questionamentos não porque desconsideramos quaisquer diferenças fundamentais entre a atitude filosófica e a conduta despretensiosa do cotidiano. Toda a controvérsia reside em que a experiência originária se assenta nes- sa singularização da experiência hermenêutica, que, como tal, supostamente nos res-
guarda dos influxos concretos da coexistência e, em geral, da tradição, promovendo um momento de absoluta clarividência ontológico-fenomenológica. Já apontamos prelimi- narmente para essa orientação de Heidegger, que somente agora pôde se tornar suficien- temente explícita. A indicação tácita e problemática de uma experiência originária da
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verdade consiste em nos orientar, em suma, para esse encontro a sós de cada intérprete
a partir de si mesmo diante da totalidade.
Enfim, devemos nos perguntar: quais as condições dessa experiência que, como Heidegger apregoa, nos mune de uma perspectiva que se orienta a partir de si mesma e, assim, nos liberta das “opiniões da tradição”? Em que medida não nos deparamos com uma abstração da ontologia fenomenológica?