• Nenhum resultado encontrado

A dinâmica entre pergunta e resposta: o diálogo

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 105-108)

B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.

29. A dinâmica entre pergunta e resposta: o diálogo

Devemos nos aproximar cautelosamente da indicação de Platão segundo a qual a

essência do pensamento consiste num “diálogo da alma consigo mesma”; indicação a

que Gadamer (2004g, p. 235) nos remete reiteradamente. De fato, quando pensamos, ensaiamos um diálogo do qual participam interlocutores imaginários, geralmente, anô- nimos, onde diversas perspectivas se confrontam por meio de perguntas que desafiam a assertividade de respostas. Ora, em que medida nós estamos rigorosamente conosco

mesmos, conforme nos diz Platão, quando elaboramos tais diálogos? Quem intervém como interlocutor desses diálogos aparentemente solitários? Já que se trata de um diálo- go consigo mesmo, não deveríamos determinar a essência do pensamento não propria- mente como um diálogo, mas como um monólogo?

30 Nesse caso, “ser” indica a assertividade com que respondemos à questão metafísica fundamental: “Co-

mo são as coisas?”, por meio de uma determinação ontológica da seguinte forma: “As coisas são assim e

assim”. Portanto, ser não indica aí o próprio fenômeno de presentar-se do ente – que, vale dizer, também consiste numa resposta à pergunta metafísica.

106

Mesmo que determinemos essa experiência como um monólogo, que se compõe aparentemente de apenas um personagem, devemos enfatizar aí um esforço constante para representar uma perspectiva distinta. Mesmo um monólogo não se desenvolve por meio de uma sucessão plenamente coerente de afirmativas, mas sempre se defronta com

perguntas que abrem a possibilidade de divergir da perspectiva até então predominante. Wittgenstein (2000, af. 253, 258, 265) nos concede uma indicação fundamental quando nos adverte de que não podemos concretizar a possibilidade da linguagem sem recorrer aos outros com quem coexistimos. A necessidade de autênticos “não-eu” requer o reco- nhecimento de uma dialética, pois não nos condena à simples reprodução de convencio- nalidades, mas revela que a comum-unidade se estrutura a partir de relações de interde- pendência, onde cada qual necessita de orientações alheias para realizar por si próprio a experiência de abertura para o mundo.31

Abrir-se para o mundo consiste em manter-se no âmbito de acolhimento do jogo

de possibilidades em cujo horizonte de temporalização se torna factível a determinação de uma constituição ontológica para as coisas circundantes. Devemos reconhecer a pri- mazia da pergunta na estruturação da abertura para o mundo, pois, segundo Gadamer (2003a, pp. 473ss) nos mostra, só determinamos uma coisa de tal e tal maneira porque, antes, respondemos a uma pergunta prévia. Qualquer afirmação sobre as coisas circuns- tantes resulta sempre de uma pergunta, que podemos resumir assim: “Tal coisa é desse

oude outro modo?”, de sorte que a conjunção „ou‟ exprime justamente a suspensão en- tre uma e outra possibilidade de interpretação. A pergunta consiste precisamente no adiamento da assertiva para, em contrapartida, se manter na própria disponibilidade para a interpelação das coisas, para o próprio enigma fundamental de que nos circundam coisas disponíveis a vir ao mundo por meio da palavra.

No entanto, nunca nos encontramos puramente nessa disponibilidade, pois a linguagem somente se concretiza sob a mediação de uma comum-unidade, onde a inter- pelação das coisas acontece sempre no horizonte de uma orientação prévia, que, como Gadamer nos adverte (ibid., p. 475), delimita o envergamento da abertura. Basta-nos considerar quantas perguntas já responderam para nós, antes mesmo de realizarmos os primeiros ensaios para amadurecer, por meio da linguagem, a possibilidade de nos fami-

31 Devemos repensar, portanto, a maneira em que geralmente acolhemos o notório lema de Kant (2005,

pp. 63-64): “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento”. A advertência de Kant ainda nos parece legítima, quando denuncia o acomodamento da maioria das pessoas na submissão à autoridade alheia que as dispensa de pensar. Porém, devemos nos perguntar, junto com Gadamer (2003a, pp. 368ss), de que maneira Kant interpreta a “autoridade” da tradição e em que medida se pode rigorosa- mente “servir-se de si mesmo sem a direção de outrem” (KANT, loc. cit.).

107

liarizar com as coisas – basta-nos considerar isso para reconhecermos que, apenas por já-termos-sido, nos posicionamos no mundo, mesmo que tal posicionamento advenha de uma imposição da tradição histórica em que nos situamos.32

Abrir-se para o mundo requer simultaneamente decidir-se por essa ou aquela possibilidade de orientação, decisão decorrente da resposta pela qual se justifica a apre- ensão das coisas de uma maneira, em vez de outra. A infinitude do diálogo, a que Ga- damer (2004c, pp. 180-181) nos remete, se deve à impossibilidade de nos apropriar de todas as perguntas cujas respostas, todavia, nos encaminham num sentido determinado no decurso da temporalização da nossa existência. A infinitude do diálogo decorre para- doxalmente, note-se bem, da finitude da nossa situação, já que não podemos nos posi- cionar de uma perspectiva para a qual se tornam temáticas todas as nossas pré- conceituações. Essa perspectiva também demandaria algum horizonte prévio, portanto, aquém do foco imediatamente temático, para que revelasse criticamente as próprias pré- conceituações, ao passo que essa mesma perspectiva não poderia se furtar da submissão a outro questionamento, num diálogo infindo.

Deparamo-nos com um problema, muitas vezes ambíguo, que Gadamer (2003b, p. 69) nos lega: como podemos “pôr entre parênteses” as nossas pré-conceituações quando, porém, justamente elas norteiam a nossa própria lida com o mundo? Quando nos mostra que a realização de uma pergunta proveniente da tradição nos compromete com a concretude de uma experiência de verdade, quase de passagem, Gadamer (2003a, p. 489) nos diz: “Quem quiser pensar deve perguntar”. Ora, a deslegitimação de certas pré-conceituações requer justamente a suspensão da assertividade delas, quando as tor- namos tema de uma pergunta. Contudo, nos parece ingênua a pretensão de empreender por si próprio essa suspensão, à maneira de Descartes,33 pois devemos reconhecer aí a

cooperação imprescindível dos outros com quem coexistimos.

Portanto, esse problema das pré-conceituações também deve afetar a indicação de Platão conforme a qual a essência do pensamento é “um diálogo de alma consigo mesma”. Rigorosamente, ninguém dialoga consigo mesmo, mas sempre, no máximo, se empenha em evocar, de maneira tão genuína quanto lhe parecer possível, a alteridade de uma perspectiva alheia com a qual possa confrontar a sua própria perspectiva. Se a ex- periência hermenêutica sempre “ultrapassa a mera reconstrução” da pergunta que a tra-

32 Aliás, quantas perguntas já não respondemos para asserir tais considerações?!

33 “[...] a respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dis-

por-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança, para substituí-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após havê-las ajustado ao nível da razão”. (DESCARTES, 2000, p. 45).

108

dição nos lega, como diz Gadamer (ibid., p. 488), uma vez que efetivamos a sua experi- ência de verdade no horizonte contemporâneo e, assim, podemos pensar “no que não representava problema” para o interlocutor histórico – essa ultrapassagem só se torna possível porque fazemos valer a nossa própria alteridade.

A pergunta medeia a dinâmica constante entre “ser” e parecer, na medida em que se interpõe entre ambas para mostrá-las enquanto possibilidades de modulação da determinabilidade ontológica das coisas: ou “são” efetivamente assim, ou “são” apenas

aparentemente assim. Portanto, o problema das pré-conceituações também revela toda a problematicidade do propósito implícito no lema da fenomenologia: “às coisas mes- mas!”, já que Husserl, assim como Heidegger, atribui às interpretações da tradição o renitente encobrimento da possível revelação das coisas a partir de si mesmas. As coi- sas mesmas, porém, enquanto aquilo com que lidamos, só se mostram concretamente

sob a mediação do diálogo, uma vez que não podem falar por si próprias, ao contrário do que nos promete o “pensamento originário”. Por isso, a experiência hermenêutica deve ser predominantemente negativa, pois se estrutura num jogo infindo de possibili- dades finitas, num diálogo constantemente transformador.

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 105-108)