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A transcendência como desdobramento da linguagem em mundo

No documento Nos rastros da situação hermenêutica (páginas 30-33)

B. A circularidade enquanto posicionamento na tradição.

6.3. A transcendência como desdobramento da linguagem em mundo

Sob a palavra sýmbolon, Aristóteles entrevê obscuramente, como Heidegger nos assegura (ibid., p. 353), um aspecto fundamental da existência humana que, no século XX, Heidegger denomina transcendência. A génesis de um sýmbolon consiste justa- mente no acontecimento de um ser-mantido-junto ao ente circundante para o qual a e- xistência humana fundamentalmente se mantém aberta. Como constituição essencial, a transcendência não acontece de vez em quando, como se tratasse de um comportamento contingente, de uma veleidade que se desfizesse na turbulência do fluxo vital e cedesse lugar a outro impulso. – A transcendência delineia todo o contorno da existência huma- na, enquanto ultrapassagem em direção a um determinado horizonte: o mundo enquan-

to o ente em totalidade (HEIDEGGER, 1999a, pp. 121ss). Porém, deixe-se bem claro, não se indica pela expressão “em totalidade” a quantidade provavelmente espantosa de entes

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que podem se encontrar no âmbito da influência humana. Indica-se, em vez disso, que a nossa existência lida invariavelmente com algo enquanto algo, uma vez que lhe compe- te transcender a partir de sua própria essência.10

Se por meio da questão acerca da “natureza da linguagem”, de fato, podemos contribuir genuinamente na determinação dos fundamentos da experiência hermenêuti- ca, como nos aconselha Schleiermacher (2000, p. 64), o fenômeno humano da transcen- dência, enquanto a génesis de um sýmbolon, parece nos encaminhar em plena conformi- dade com tal aconselhamento. O discurso, como vimos, consiste propriamente em mos- trar a alguém a unidade das determinações de algo que se dispõe à percepção de quem discursa. A transcendência, portanto, se enseja como o fenômeno motriz do discurso. Somente podemos mostrar algo por meio de palavras, desde que já existamos em refe-

rência a, ou seja, transcendendo rumo a isso que, em totalidade, se revela como tal para a percepção. A transcendência se desdobra como linguagem e, somente assim, difunde um ambiente de compreensibilidade.

Estacionamos provisoriamente na unidade:reunião-separação das determinações a partir de onde algo se mostra como tal e tal para e por meio da percepção de quem discursa. O passo seguinte consiste em mostrar que o desdobramento da transcendência em linguagem não se detém na percepção imediata da coisa, em sua incomensurável singularidade. Até podemos desdizer, num primeiro momento, a possibilidade de nos encerrarmos na particularidade exclusiva de algo por meio de uma interpretação mais atenta da própria estruturação fenomênica em que uma coisa se mostra como tal e tal. Como vimos, a reunião das determinações concernentes à coisa que visamos em parti- cular já nos remete, ao mesmo tempo, para as determinações que, em contraste, dizem respeito às outras coisas em redor. Assim, na estrutura da percepção, vislumbramos um nexo unitário de relações que as coisas mantêm entre si.

Essas considerações, porém, nos servem apenas de prelúdio para adentrarmos nas relações propriamente mundanas entre as coisas. As ocupações diárias, como Hei- degger nos mostra (2002a, pp. 108ss), podem propiciar o reconhecimento expresso de um âmbito pré-temático onde subsiste um complexo de referências a partir de onde cada instrumento se estrutura como tal e tal. Apreendemos uma mesa como mesa, por exem-

10 Mesmo quando nos deixamos divagar, logo podemos notar a presença de algo com que nos deparamos

na divagação, ainda que se trate de uma sucessão de cenários dispersos. E esse algo se dá segundo deter- minações que, naturalmente, se encontram no âmbito das nossas possibilidades de familiarização, ou seja, esse algo se dá enquanto esse algo aí, que apreendemos na circunstância da divagação. Essa lida constan-

te com a presença de algo atravessa toda a nossa existência. Eis o sentido fundamental da expressão “em totalidade”, enquanto momento constitutivo da transcendência.

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plo, a partir da conjuntura em que uma mesa pode estabelecer a sua função propriamen- te instrumental. As sucessivas e mútuas remissões de um instrumento a outro, na con- juntura prévia do manuseio, apenas denunciam que a própria transcendência se irradia

numa tessitura de relações. Por enredar-se previamente nesse nexo de referências, a existência humana implementa mundo; não porque, num sentido ordinário, “planejou” implementá-lo, mas porque mundo se impõe pela existência mesma.

Já em suas preleções de 1919, Heidegger (2005, p. 88) nos diz: munda-se (es

weltet). Não por acaso, esse neologismo relativo ao mundo nasce de um questionamento acerca da primordialidade do significado. Ao se difundir num tal encadeamento de rela- ções mundanas em virtude do qual cada coisa se mostra assim e assim, a transcendência urde, ao mesmo tempo, a estrutura de significação da linguagem: a significância (Be-

deutsamkeit) (HEIDEGGER, 2002a, p. 132). Pois significar consiste em mostrar algo a alguém, experiência que, por sua vez, se traduz em mundo. A estruturação fenomênica para a qual aponta a expressão “como tal” não se esgota, portanto, na apreensão percep- tiva de algo, ainda que essa conduta não se concentre, por sua vez, numa recolha imedi- ata das propriedades meramente “sensórias”. As coisas se estruturam como tais e tais porque já sempre se acomodaram num nexo de relações de mundo, onde encontram, por assim dizer, um “lugar”, ou seja, um significado próprio.

Assim, nos deparamos com uma reciprocidade fundamental entre os momentos que consideramos até agora. Em torno da unidade própria das coisas como tais a exis- tência humana se reúne numa concordância essencial, que, transcendendo em comum, implementa o desdobramento da linguagem numa experiência de mundo. A imbricação desses momentos, desde as indicações de Schleiermacher, chamamos de comum-

unidade. Somente após o desenvolvimento de algumas questões, provenientes das indi- cações de Heidegger acerca da existência humana, se tornou possível apresentar maiores esclarecimentos acerca dessa expressão que nos acompanha desde o princípio e que vem guiando as nossas investigações. Agora que nos encontramos num estágio razoavelmen- te desenvolvido, podemos retomar algumas perguntas, a fim de problematizar o tema próprio das nossas considerações. Em que medida estamos nos aproximando da circula-

ridade que, nesta investigação, se mostrou como o movimento próprio dessa comum- unidade? Não deveríamos entrever ao menos que o cunho essencialmente pré-temático de mundo e de linguagem, após tantos desenvolvimentos, passa a nos envolver nessa circularidade a partir de uma dimensão mais profunda? Essa circularidade não participa- ria da própria apreensão da coisa como tal e tal?

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7. A tensão entre a liberdade fenomenológica dos entes e a liberdade her-

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