• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I: O tempo da adolescência

1.5 A clínica dos extremos

A prática clínica e a leitura das produções psicanalíticas mostram que as

questões ligadas ao corpo, as dificuldades de separação pacífica nas relações sociais e as configurações pautadas no narcisismo são pontos centrais do sofrimento humano na atualidade. A configuração narcísica da sociedade contemporânea é percebida pelos comportamentos individualistas e pautados unicamente pela busca de satisfação pessoal, em que a dimensão do ser visto e do parecer ter se tornam um modelo ideal da vida (Fuks, 2011).

A relação entre cultura e homem foi discutida por Freud especialmente nos textos Totem e Tabu (1913) e Mal-estar na civilização (1930). Ambos mostram que as exigências do coletivo impõem uma domesticação dos impulsos primitivos. Porém, o que a cultura oferece não é suficiente para calar as pulsões, e o sujeito vive uma eterna posição de conflito, representado pelas instâncias do Isso e do Supereu, mediado pelo Eu. As configurações psíquicas respondem as exigências culturais que são apresentadas (Birman, 2005), de modo que a substância do conflito psíquico depende do contexto cultural em que o sujeito está inserido. Por isso, para compreender por que o narcisismo contorna os modelos de manifestação psíquica na atualidade, é preciso abordar de que presente se trata.

38 Silva e Viana (2015) apostam que a contemporaneidade é uma reação ao período moderno. A modernidade foi marcada pela mercantilização, pela demarcação da vida privada, pela valorização da família nuclear, pela supremacia da razão e por uma crença na capacidade da ciência. As exigências culturais sobre o Eu foram alimentadas e provocaram um efeito nos indivíduos de rompimento desses rígidos padrões.

O período pós-moderno vai se firmar no polo oposto ao anterior, caracterizando- se por uma extrema flexibilidade nos padrões e pelo esfacelamento do poder que estava concentrado em instituições sociais rígidas e sólidas (Silva e Viana, 2015). Essa

instabilidade é o caldo que engrossa as configurações narcísicas, tendo em vista o tensionamento nas operações de separação ou individuação do sujeito inserido em uma sociedade tão fluida.

Freud (1914a) lança sua proposta sobre o narcisismo e afirma que é uma etapa normal da constituição humana, posicionada entre o auto erotismo e o amor dirigido ao objeto. O Eu é fundamental, dada a sua capacidade de unir as pulsões em um único objeto, contribuindo para o processo de separação e individuação - este é o narcisismo primário. Freud ainda tipifica um outro narcisismo, o secundário, caracterizado pelo retorno da pulsão, que já estava dirigida ao objeto, ao Eu. Esta pode se tornar patológica, na medida em que embaraça o investimento do sujeito nas relações do mundo externo e na capacidade de diferenciação eu/outro.

A dificuldade em sustentar um investimento libidinal em um objeto externo pode ocorrer devido à incapacidade do objeto em satisfazer o sujeito, ou seja, o objeto está esvaziado de afeto, sendo impossível a ele suavizar as tensões do bebê (Silva & Viana, 2015). A libido retirada do objeto que retorna ao Eu, ao invés de fortalecê-lo, atrapalha o estabelecimento da relação com a realidade. Assim, o enfraquecimento das

39 instituições sociais acarreta um retorno da libido e estabelece a prevalência de uma configuração narcísica no funcionamento humano.

O narcisismo coloca as cartas do jogo das modalidades de subjetivação na atualidade. Tempos de autocentramento e valorização da exterioridade, no sentido de que a subjetividade assume uma “configuração decididamente estetizante” (Birman, 2005, p.23), pois o olhar externo ganha uma posição fundamental e estratégica na economia psíquica. O desejo assume uma direção exibicionista e autocentrada e há um desinvestimento das trocas humanas. Relacionar-se com o outro só ganha sentido quando ele serve como um espelho de valorização. Nessa sociedade do espetáculo o outro perde seu valor de alteridade, de ser reconhecido como diferente e singular, em verdade, torna-se o objeto de usufruto que deve ser manipulado como gozo (Birman, 2005).

O sujeito se constitui e responde a partir do registro especular, ou seja, está somente preocupado com o enriquecimento da própria imagem. Quando o outro não serve a essa função, pode ser facilmente descartado. O especular traz uma configuração específica, emergindo dois pontos: faz surgir a agressividade como ponto central e eleva o corpo como caminho para a elaboração de conflitos.

O narcisismo ao mesmo tempo em que é unificador, também é algo sombrio para o sujeito, pois ele está na mão do Outro. Assim, o olhar que permite ao sujeito se integrar a uma totalidade narcísica – Eu – também é ameaçador pela sua alteridade. A rivalidade e as ações agressivas estão na base da concepção de narcisismo (Lacan, 1949). Vemos, na contemporaneidade, a agressividade ou a violência ser um grande objeto de estudo da Psicanálise, dado que esta disposição aparece de forma corriqueira como um recurso frente à angústia. Afinal, essa é a reposta que um sujeito, imerso em uma modalidade de subjetivação narcísica, encontra para fazer sumir o outro.

40 Percebemos também que há uma disseminação das marcas corporais que

revelam uma tentativa contemporânea de posse do corpo próprio por meio do ato. A convocação ao ato como forma de metabolizar a angústia coloca em cena um corpo que busca por uma fronteira, tendo em vista que no narcisismo os limites entre o Eu e outro estão em construção. Ao passo que retira o véu da fragilização da capacidade simbólica e representativa do sujeito.

Nesse sentido, Estellon (2012), propõe o termo clínica dos extremos para caracterizar os tipos clínicos que buscam na sensação corporal uma confrontação dos limites psíquicos, identitários, sociais e culturais. Assim, sobrecarrega em seu ato a questão da fronteira e da necessidade de se sentir uno e vivo. Roussillon (2012) segue essa concepção de extremo e afirma que o que rege esses sujeitos é a lógica da

sobrevivência. O autor afirma que o sofrimento faz parte da condição humana, mas o que escuta em sua clínica é que o paciente vive uma dor extrema e aguda, melhor dizendo, parece se tratar de uma dor desumana. É uma dor que parece não encontrar representação e nada faz limite a ela, nem mesmo o tempo, nem mesmo o espaço. Remete-os diretamente à questão da morte, assim os atos dos pacientes buscam comprovar a posse do corpo e afastá-los da morte. Por isso, Roussillon diz que estão perpassados por uma lógica da sobrevivência: por mais que encontremos atos agressivos (como as escarificações) na clínica dos extremos, o que existe no horizonte é uma estratégia para sobreviver psiquicamente. Afinal, isso permite uma sensação, mesmo que momentânea, de integração psíquica.

Percebemos a busca por uma sensação corporal pelo registro do corpo e do ato que garanta algo que o simbólico não foi capaz: a sobrevivência. Para nossa pesquisa elegemos uma forma de extremo, a escarificação, que parece estar imersa nessa lógica

41 da sobrevivência, por eleger a dor, uma sensação corporal, como forma primordial de dar notícia da existência do sujeito.