• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III: Corpo e dor no remanejamento pulsional da adolescência

3.2 Eu, corpo e narcisismo

Freud alerta, em Introdução ao Narcisismo (1914a), que o Eu não existe desde o início, nem mesmo a noção de corpo próprio. A experiência de satisfação primária e a alucinação participam da erotização das zonas corporais, imergindo o bebê no

funcionamento autoerótico. O autoerotismo é o termo empregado por Freud (1905b) para caracterizar a sexualidade infantil, em que as pulsões se satisfazem no próprio corpo, ou seja, o alvo se encontra em uma zona erógena, excluindo a necessidade de um objeto externo. Assim, fonte e objeto da pulsão coincidem.

Na medida em que o Eu não precisa do mundo exterior e é dominado pela pulsão de auto conservação, não se permite sentir estímulos desprazerosos. Isso acarreta a primeira reunião de divisão do Eu que ocorre em uma aglomeração do que provoca prazer e desprazer, como afirma Freud (1915b), o Eu acolhe “[...] os objetos oferecidos, na medida em que são fontes de prazer, introjeta-os (conforme a expressão de Ferenczi) e por outro lado expele de si o que se torna, em seu próprio interior, motivo de

65 desprazer” (p.74-75). O Eu se polariza entre prazer e realidade que, em movimentos de projeção e introjeção, reúnem, no primeiro, tudo o que traz prazer e aplaca as tensões e, no segundo, tudo o que sente como hostil. A divisão não é realizada entre interno e externo. Ocorre uma fusão com o meio externo sem a noção de um corpo próprio.

Em 1923a, no texto O eu e o id, Freud lança uma enigmática frase que une em um só golpe Eu e corpo: “O ego é antes de tudo um ego corporal” (p. 270). O corpo está associado ao Eu, que é voltado para a realidade e para a percepção externa e interna. Para as excitações oriundas do exterior o Eu forma uma espécie de escudo protetor que reduze o impacto, demarcando a função de paraexcitação. Por outro lado, as excitações provenientes do interior possuem um impacto direto e provocam um grande desprazer, levando, por exemplo, à projeção, numa tentativa de colocar a tensão para fora e a domar, de forma que é tarefa do aparelho psíquico controlar a excitação. Fédida (1977) aponta que:

A “superfície” do corpo deixa aflorar sensações ou recebe excitações de diversas origens, mas o acesso a uma “representação de nosso próprio corpo” em sua totalidade está longe de poder ser adquirida sob a forma de uma imagem. Na verdade, é a dor que nos dá acesso ao “conhecimento de nossos órgãos”, e é ela que permite uma “representação de nosso corpo em geral” (p. 32-33).

Nessa direção, a dor pode ser explorada como um caminho para uma

compreensão metapsicológica do corpo. Freud (1926) propõe a dor como condição para a representação do corpo próprio, na medida em que as dores nos órgãos internos ofertam representações espaciais das partes do corpo que, comumente, não são representadas de forma alguma na atividade consciente. A experiência, ou melhor, o

66 princípio de realidade, mostra que a divisão eu/realidade e eu/prazer não encontra

confirmação, ao mesmo tempo em que as próprias atividades sensoriais e ações musculares possibilitam uma diferenciação. O desvio de excitações desagradáveis de origem interna não pode ser o mesmo daquele de origem externa. Percebe-se como o corpo dá suporte à constituição do Eu por ser a fonte da pulsão e promover sensações que permitem a diferenciação do mundo externo:

O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna. A psicofisiologia examinou plenamente a maneira pela qual o próprio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos no mundo da percepção. Também a dor parece desempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças dolorosas constitui talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à ideia de nosso corpo (Freud, 1923a, p.39).

Na transição do Eu prazer/desprazer para o Eu/não-Eu, a dor da carne exerce uma importante função, pois, a percepção interna da própria motricidade e de sensações afáveis ainda podem se camuflar com o Eu prazer, enquanto que a dor sinaliza que o desprazer está também no Eu.

A noção de um corpo unificado, que caminha junto com a percepção do Eu/não- Eu, é proposta pelo narcisismo, quando o próprio corpo se encontra colocado no lugar do si mesmo (Fernandes, 2011). Afirmamos, anteriormente, que o Eu não existe desde o início e Freud dá continuidade a esse pensamento: “sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao autoerotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o

67 cronológico em que o narcisismo suplanta o autoerotismo, pois o autoerotismo

permanece operando mesmo depois que o aparelho psíquico encontra formas mais organizadas e complexas de funcionamento. O autoerotismo não desaparece sob o golpe de uma “nova ação psíquica”, devendo perpetuar-se como uma operação de fragmento a despeito da síntese narcísica, quebrando a configuração totalizante e identitária.

Essa nova ação psíquica é retratada por Lacan (1949) no Estádio do Espelho. O bebê, imerso em uma imaturidade biológica, faz com que seja necessária a intervenção do ambiente para transformar a unidade global. No processo da construção de uma unidade corporal e uma separação Eu/não-Eu, o Estádio do Espelho é um momento lógico essencial que ocorre entre os seis e os dezoito meses de idade, no qual o bebê, ainda motoramente imaturo, é colocado em posição ereta pelos braços de um adulto. Ele antecipa o domínio sobre sua unidade corporal por meio de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção de sua própria imagem no espelho. Com júbilo, o bebê recebe sua imagem refletida em um espelho e volta-se para o adulto, representante do Outro, na expectativa de uma ratificação de sua imagem total.

São vários processos para que o pequeno pedaço de carne adquira a consciência da unidade corporal. Além da experiência proprioceptiva, é preciso que o corpo seja percebido como inteiro no exterior, no espelho. Apesar de não ser real, a imagem é fundadora de uma forma de identidade. Porém, é preciso dar outro passo: diferenciar a imagem do espelho do real. Amigo (2007) propõe que a única forma de diferenciar o real do imaginário, nesse caso, é passando pelo corpo próprio, pois a única coisa que garante simultaneamente a figurabilidade em uma imagem é a sensação real. A relação entre real e imago só pode ser bem articulada quando o real for advertido como o que falta ao imaginário. O real é o que escapa à alienação na imagem determinada pelo Outro. A relação entre imagem e real parece fornecer um terreno fértil para a discussão

68 sobre as escarificações, por isso a abordaremos de forma mais detalhada no Capítulo IV que trata das identificações. Se o sujeito fica preso nesse tensionamento, o único recurso é o de explorar as sensações corporais para garantir um descolamento da imagem que é alienante. A dor, assim como outras sensações corporais, pode cumprir essa função. Neste momento, gostaríamos de dar um passo adiante e propor a dor psíquica como um afeto e não somente como uma sensação corporal.

Na clínica, escutamos constantemente os sujeitos falarem sobre o afeto da dor, uma dor psíquica, pungente, que não se permite esquecer e exige uma reação. A dor é sempre inescapável e os impele a passar por uma prova decisiva, a prova da separação do objeto que obriga os sujeitos a se reconstruírem. É um afeto que mostra a vivacidade de um sujeito.