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Capítulo III: Corpo e dor no remanejamento pulsional da adolescência

3.5 Dor e gozo

A dor é tratada por Lacan (1972-73) como uma forma de gozo. O campo do gozo é próprio das articulações de Lacan, porém Freud (1920) define esse campo quando escreve sobre o Além do princípio do prazer como um regulador do

funcionamento psíquico. A pulsão de morte que engendra a compulsão à repetição e o prazer na dor colocam as peças para a pulsação de gozo (Valas, 2001).

A pulsão de morte faz um enigma ao princípio do prazer, pois mostra a tendência a repetir fenômenos que geram dor e prazer. Freud (1920) percebe esse movimento na jubilação mórbida em seu neto durante uma brincadeira com o carretel no jogo do fort-da, realizado para superar um momento de dificuldade: a ausência materna momentânea. Com o carretel a criança fazia um movimento de aparecimento e

77 desaparecimento que é interpretado como um caminho para elaborar a ausência

materna. Esse prazer na dor é o terreno para compor a virada freudiana de 1920: satisfação mórbida em uma tendência à repetição que deixa um enigma a ser decifrado. É nessa trilha que Freud (1924a) propõe o masoquismo primário e evoca a criança que busca ser tratada como malcriada, por isso merece ser punida de forma austera,

inclusive com humilhações. Assim, repetição e prazer parecem fazer parte de dimensões diferentes e a pulsão de morte torna-se o ponto de partida para Lacan constituir o campo do gozo. A repetição se inscreve em uma dialética do gozo, na medida em que é aquilo que se dirige contra a vida e obriga Freud a articular a pulsão de morte (Costa, 2015)

No Seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan (1959-60), faz uma disjunção entre prazer e gozo, afirmando que o segundo é a busca pela Coisa perdida, que é impossível e completamente fora do campo do significado. Constitui-se como uma tentativa perene de ultrapassar os limites do prazer, prazer possível dado pelas coordenadas da realidade. Posteriormente, Lacan (1966) afirma que o prazer é uma barreira diante do gozo, funcionando como um dique que segura a correnteza desenfreada da pulsão de morte. O gozo é correlato à Coisa, por isso:

ele se encontra como que soterrado num campo central, com aspectos de

inacessibilidade, de obscuridade e de opacidade, num campo cingido por uma barreira que torna seu acesso mais do que difícil ao sujeito, inacessível, talvez uma vez que o gozo se apresenta não pura e simplesmente como a satisfação de uma necessidade (besoin) mas como a satisfação de uma pulsão, no sentido de que esse termo necessita da elaboração complexa que tento articular para vocês. (Lacan, 1959-60, p.251).

A pulsão que é satisfeita é a de morte, na qual está o intransponível da Coisa devido à inscrição significante. Esse soterramento de gozo é trabalhado por Lacan (1959-60) por meio do registro da lei do incesto tal qual aparece em Totem e Tabu

78 (Freud, 1913). Para que a lei consiga ser veiculada é necessário trilhar os caminhos desenhados pelo assassinato do pai da horda primitiva. Lembremos que o pai temido e onipotente é morto por seus filhos que estavam cansados de sempre estarem

completamente afastados de qualquer possibilidade de gozo, tendo em vista que somente o pai tinha acesso às mulheres. Após o assassinato, uma lei que proíbe o incesto é instaurada, e o que acontece é que mesmo assim uma camada do gozo permanece interdita. A interdição em verdade é reforçada (os filhos não podem ter acesso a todas as mulheres). Há um gozo total experienciado pelo pai mítico, que, após a Lei, deixa apenas uma parcela de gozo que pode ser vivida pelos filhos.

O pai da horda impede a circulação de gozo, assim, ele possui o gozo absoluto de todas as mulheres. Depois do assassinato, é usado um princípio de distribuição resultado da proibição do incesto: ninguém pode ter todas as mulheres, cada um pode ter acesso a algumas. O gozo absoluto é substituído por um princípio de um ordenador social e de um organizador pulsional (Costa, 2015). O mito da horda primitiva revela a necessidade de sacrificar, privar no corpo e renunciar a realização das pulsões.

A lei de interdição ao incesto é o que permite o acesso ao desejo e proíbe o gozo ao sujeito da linguagem. Assim, o gozo só tem sua importância a partir do momento em que é interdito. O significante causa o gozo e permite a emergência de diversas

modalidades: gozo do Outro, gozo fálico, mais-gozar e gozo feminino.

Em termos de constituição subjetiva, existe um gozo chamado de gozo do Outro ou gozo do corpo, que é sempre sentido pelo corpo e permanece indizível, mas pode ser traduzido pelo aparelho linguageiro, transformando-se em gozo fálico. A lei é uma defesa ao gozo, mas é também o que abre acesso a ele. Há um gozo originário que só pode ser proposto em um só depois da ação da linguagem, pois é o significante e a noção de objeto perdido que ofertam a consistência para o gozo. A Coisa fica no lugar

79 do objeto perdido e determina a busca desejante por meio das diretrizes ofertadas pelos traços de memória. Valas (2001) aponta que:

O significante detém o gozo; e se se pode falar de sujeito do desejo que depende de suas representações, em contrapartida, não há sujeito do gozo, porque, no gozo, que só pode ser sentido pelo corpo, só o corpo pode gozar, e que um corpo, aliás, é feito para gozar (p.34-35).

A interdição do incesto incide sobre o gozo, tanto da mãe com relação ao corpo do filho, quanto do filho com relação à mãe. O gozo fica no real do corpo próprio, é sempre sentido pelo corpo e permanece indizível. O gozo vai se tornando acessível pelas bordas, no sentido de provar uma experiência de resposta da demanda/desejo do Outro, ou seja, refugia-se nas zonas erógenas.

O gozo do Outro pode ser tomado pela ótica da devastação tal qual trabalhada no Capítulo I. Tomemos essa frase de Lacan (1972-73):“[o] Gozo do Outro [...], do corpo

do Outro que o simboliza, não é o signo do amor”(p.12). Gozo e amor se contrapõem.

Quem realiza o papel da maternagem decide sobre as necessidades e a existência do

infans. O bebê está em um corpo entregue à sentença do Outro e se transforma em um

objeto “com que gozar e a que fazer gozar” (Soler, 2005, p.93). O bebê é um objeto da opacidade do gozo, por isso é preciso que ele se questione e vislumbre o brilho do desejo pelos caminhos do amor. Gozar do corpo do bebê é também objetificar sem ofertar uma posição de sujeito.

É somente seguindo os caminhos da Lei que o sujeito pode ter acesso a um gozo não nocivo e cifrado no inconsciente: o gozo fálico. Essa cifragem participa da

elaboração de sonhos, chistes e sintomas. É em A subversão do sujeito que Lacan (1960a) irá postular que o gozo forcluído do lugar do Outro será correlato ao falo

80 simbólico que é significante do gozo, conceitualmente elaborado como gozo fálico. A lei do incesto, que faz com que o sujeito renuncie ao gozo fechado da Coisa, oferta a significação fálica ao gozo passível de ser acessado pelo sujeito.

Há um primeiro gozo impossível e um segundo passível de ser lido pelo

aparelho de linguagem, cifrado pelo aparelho psíquico. Lacan afirma que: “De um lado, o gozo é marcado por esse furo que não lhe deixa outra via senão a do gozo fálico. ” (1972-73, p16). Esse furo, proposto pela inscrição do significante que revela a impossibilidade de relação sexual, não deixa outra saída de acesso que não a do gozo fálico. O gozo possui diversas modalidades, gozo do Outro como interdito que está no originário que só ganha seu sentido de forma retroativa por meio da incidência do significante (S1), gozo fálico que é correlato à lei que assume a significância fálica no complexo edípico, e o gozo fora do significante, que é o mais-gozar (Valas, 2001).

Há uma íntima relação entre gozo, dor e corpo. Em contraposição, há uma ética do desejo que propõe o prazer como uma barreira ao gozo. Tendo em vista que o princípio do prazer envolve a busca por um estado mínimo de tensão, a dor

experimentada no corpo, que sempre excede em excitação, é correlata ao gozo. A dor desvela a dimensão do real do corpo:

Porque aquilo que chamo de gozo, no sentido em que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, até mesmo da proeza. Há

incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer a dor e nós sabemos que é somente esse nível da dor que pode se experimentar toda uma dimensão do organismo que de outra forma fica velada. (Lacan, 1966, p.12).

A pulsão de morte de mãos dadas com o gozo engendra um movimento mortífero que se sustenta na submissão do sujeito ao Outro absoluto (Lacan, 1963). O

81 que vai manter a pulsação gozosa é o Supereu, como afirma Lacan (1972-73): “[n]ada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo de gozo – Goza!” (p.11). A dor nas escarificações são da ordem do gozo e ocorrem devido à

impossibilidade do sujeito de escapar do Outro absoluto representado por um Supereu autoritário e severo (Cedaro & Nascimento, 2013). O afeto da dor que está imerso na lógica do luto – fadada ao fracasso – é gozo. Assim, eleva-se o investimento narcísico dada a dificuldade de operar a perda objetal.