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Uma função suplementar é necessária: da identificação imaginária à simbólica

Capítulo IX: Dor e fantasia: da ineficácia da imagem à função suplementar

9.2 Uma função suplementar é necessária: da identificação imaginária à simbólica

A fantasia emerge no caso clínico especialmente em sua vertente imaginária. Sabemos que a fantasia se sustenta nos três registros (real, simbólico e imaginário), sendo impossível pinçar um e acreditar que os outros estão de fora. Abordar pelo viés de suas construções imaginárias é um caminho para nos aproximarmos do que ocorreu no caso clínico, dado que a paciente revela uma grande produção de ficções que colocavam guião e imagem em sua fantasia e faziam frente ao real.

A concepção de devaneio apresentada por Freud (1907[1906]; 1908[1907]) se encaixa no que propomos. Trata-se da construção de histórias permeada por uma produção imagética como consequência de um pensamento criativo frente à realidade psíquica e sustentado pela fantasia inconsciente. Para a análise do caso, vamos trazer três cenas apresentadas, revisitadas e reescritas em contexto de tratamento. Essas cenas cumprem um duplo objetivo nesse trabalho: (1) as sequências de produções revelam a

5 Nessa sentença compreendemos por real aquilo que escapa a alienação à imagem sancionada pelo Outro

198 sustentação que o ato de se cortar oferta para o tempo adolescente; (2) mostram uma direção do tratamento para que a adolescente entre em análise.

A primeira cena, a de frente com o felino, ocorre em uma visita da escola a um zoológico. Débora, que estava com nove anos, andava distraída perto da jaula dos leões e em um segundo ela escorrega na areia e é impedida de avançar por uma grade.

Acocorada no chão, ela agarra as barras de ferro e, quando olha para frente, está de cara com um leão que possui um olhar penetrante e garras afiadas. O medo toma conta dela, pois o leão pode atravessar a pata através da grade e matá-la.

A segunda cena não possui uma referência à construção de uma situação infantil. Em sessão ela relata que não sabe se foi um sonho ou somente uma sensação, um como se, de que estaria jogada em uma floresta, na qual um felino não a perdia de vista e iria matá-la inevitavelmente. Uma sensação que parecia um solavanco e enchia seu sangue

de medo.

A terceira cena se divide em dois enredos e ocorre na infância em dias de brincar na piscina com o pai. O primeiro enredo se refere à certeza que ela possuía agora na adolescência de que quando o pai brincava de dar caldos nela na piscina em verdade ele tentava matar ela. Pequena como era, seria facilmente afogada pelas mãos do pai. O que ela não entendia era porque a mãe, que rondava a piscina, nada fazia. A figura imagética da mãe não aparece, mas Débora sabia que ela estava sempre olhando. Então, porque

minha mãe me deixava ali para ser morta? É em relação ao papel da mãe que o enredo

surge modificado em sua segunda versão: minha mãe não fazia nada porque ela era a

mandante do crime, ela estava lá para olhar se meu pai fazia o que ela mandava. Me matar de um jeito que não deixasse rastros. Na primeira versão aparece um enigma

sobre a distração materna que não age ou não percebe seu assassinato. Na segunda versão a posição da mãe é desvelada como mandante do crime.

199 Em todas as cenas Débora está no lugar de objeto que está em iminência de morte. As cenas em que está de frente com o leão e em que o felino vai matá-la

mostram um olhar que não vai perdê-la de vista, como um felino prestes ao ataque que corre atrás de sua presa, avançando os obstáculos, mas sem nunca desprender o olhar. Não importa para onde ela vai correr, pois há um felino sedento pela morte à sua espreita.

A terceira cena guarda sua importância devido a duas retranscrições: uma ocorrida pela puberdade e outra em análise. Na infância, a cena na piscina era

experienciada como qualquer outro dia de lazer – é a passagem pela adolescência que leva à primeira versão da cena explorada. Quando ocupava o lugar desejado pelo Outro – fazer jazz, usar rosa e ser magra – Débora tinha a percepção de que tudo ia bem, bastava se esforçar que ela se encaixaria mais ou menos no Eu ideal.

Freud (1896a) aponta que as retraduções “representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida” (p.283). A puberdade é um tempo privilegiado para os rearranjos por fazer um empuxo ao sujeito de desejo e modificar a posição parental. A adolescência força uma ruptura que a afasta da posição anterior e Débora se vê como objeto de gozo, em que a carga mortífera e excessiva do encontro com o Outro é percebida quando ela diz é como se meu pai tentasse me afogar. A transcrição atual inibe o arranjo infantil e organiza a vida psíquica de Débora. O que na infância era uma brincadeira perigosa ou radical na piscina é transformado na adolescência em uma cena criminosa. Assim, não resta como impressão de sua história de vida, mas insiste, faz pressão e auxilia no aparelhamento de sua realidade psíquica.

A segunda retranscrição, da primeira para a segunda versão da cena na piscina, ocorre em análise separada por um tempo em que a crueldade materna ganha um contorno no discurso de Débora. Então, ela pode dizer: agora eu entendo o que o olhar

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da minha mãe fazia lá, ele comandava e fiscalizava. Nesse tempo que separa as duas

versões a jovem passa a escrever em um caderno que o chamava de paranoia. Antes esta era representada pelo alto fluxo de pensamento em frente ao espelho. Porém, agora aparece em suas escritas frequentes, usualmente em inglês, como se fosse uma segunda personalidade a escrever. Poucas vezes ela levou o caderno e o leu, mas quando o fez, mostrou que a paranoia retratava uma pessoa que não sabia como ser no mundo: não tinha pernas para dançar, não tinha braços para escrever e não tinha cérebro para pensar. Todo o movimento é desprovido de autenticidade, tanto que a paranoia escolhe ficar parada para não saber de suas limitações.

Débora intui que para ver o brilho no olhar do Outro que ilumina o Eu ideal é preciso estar parada em um lugar muito específico. Como articulamos no Capítulo V, para o sujeito não se ver despedaçado no campo imaginário especular é preciso articular vaso e flor de um modo característico para fazer surgir i’(a). A paranoia escrita retrata isso: para ocupar um lugar no mundo é preciso estar paralisada ou o sujeito perde de vista o vaso e a flor alinhados. Na medida em que se movimenta reconhece sua não inscrição no Eu ideal.

Percebemos um descolamento importante da paranoia que dá indícios de um trabalho psíquico realizado por Débora. Incialmente a paranoia aparece como um alto fluxo de pensamento em frente ao espelho, que questiona sua existência e sua

apropriação corporal. Em sua versão escrita, a paranoia não eleva tanto a angústia e também não acarreta os episódios de escarificação. O pensamento que era invasivo passa a ser trabalhado pela palavra e faz surgir uma outra dimensão: a imagem no espelho pode ser paralisante.

Vamos tomar de empréstimo a proposta de Freud (1919), que, ao se deparar com três etapas de uma fantasia, propõe uma estrutura básica de Batem numa criança.