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2.3 A questão racial

2.3.2 A classificação subjetiva de raça/cor

A informação de raça/cor que subsidia os estudos sobre diferenças raciais no Brasil é uma auto-declaração, ou seja, capta a percepção de cada um em relação à sua cor ou raça. No entanto, deve-se ressaltar que esta auto- declaração também pode estar associada à maneira como o indivíduo vê o outro ou até mesmo de como ele imagina ser visto pela sociedade. Além disso, a família representa um papel importante nesse processo, pois grande parte das declarações coletadas nas pesquisas é dada por outros membros da família e não pela própria pessoa (Telles, 2003; Longo e Campos, 2006).

A declaração de raça/cor tem sido coletada desde os primeiros recenseamentos realizados no Brasil. Segundo Petruccelli (2000), já no primeiro Censo Demográfico, realizado no país em 1872, existia a informação sobre brancos, pretos, pardos e caboclos. No Censo de 1890, o termo pardo foi substituído por mestiço. Na verdade, nesta declaração há dois critérios

utilizados, cor e ascendência. Os Censos de 1900 e 1920 não investigaram raça/cor. Em 1940, volta a investigação com as categorias branco, pardo, preto e amarelo. Mais uma vez, no Censo de 1970, foi retirado o quesito raça/cor. Em 1980 este quesito foi novamente incluído e, em 1991, acrescentou-se a categoria indígena, sendo que a investigação desse quesito foi mantida no Censo subsequente, em 2000, bem como em 2010. Em 2010, o quesito sobre raça/cor foi contemplado no questionário básico, sendo respondido por toda a população recenseada.

A discussão das categorias de raça/cor não consegue chegar a um consenso. Silva (1999), por exemplo, discute as categorias de cor e afirma que “moreno é a cor do Brasil”, com base nos dados da pesquisa realizada pelo Datafolha, em 1995. Apesar de, nas categorias censitárias de classificação para raça/cor, o termo pardo ser o utilizado, o autor afirma que há uma rejeição por este termo e preferência para o termo “moreno”. No entanto, para o termo moreno, há várias nuances que podem indicar desde uma categoria mais próxima de “branco” quanto outra mais próxima de “preto”. Além disso, é preciso ressaltar que há variações no uso do termo “moreno” nas regiões geográficas do país. Mesmo sendo um termo rejeitado, “pardo” consegue captar declarações de raça/cor nas pesquisas domiciliares, ou seja, mesmo havendo rejeição a esse termo, ainda assim, as pessoas o escolhem como definidor de sua raça/cor quando ele é umas das opções disponíveis. Um estudo feito com dados da PNAD de 1976, comparando a resposta dada espontaneamente a uma questão de classificação de raça/cor aberta e a resposta dada à questão fechada padrão com quatro categorias (branco, preto, pardo e amarelo), apontou que cerca de 95% das respostas sobre raça/cor dadas espontaneamente são consistentes com os termos utilizados nas categorias censitárias (Wood, 1991). As discussões acerca do uso do termo “moreno” vão além e mostram que, embora este termo possa abranger a categoria parda, não é um substituto para a categoria. Silva (1999) coloca que, apesar do termo moreno ser bastante popular, sua inclusão como categoria censitária não seria oportuna, uma vez que estaríamos investigando a questão da identidade de cor, em detrimento de um atributo físico. Isso levaria ao deslocamento do objetivo de investigação de características sócio-demográficas para o campo das identidades coletivas.

Osório (2003), por sua vez, discute que a categoria parda sugere certa ambiguidade, pois os demais termos (branco, preto, amarelo e indígena) não geram problemas de identificação. Essa ambiguidade viria, principalmente, da fronteira entre o branco e o pardo.

Num estudo dos saldos migratórios (incluindo saldos migratórios internacionais), verificou-se um crescimento da população que se auto- declarava parda muito acima do crescimento vegetativo desta população na década de 80. No entanto, este movimento parece ter cessado na década de 1990 (Carvalho et al., 2003). Uma análise feita com os dados do Censo 2000 mostra que houve uma redução do percentual de pessoas que se auto- declararam pardas e um aumento nos percentuais de pessoas que se declararam em outras categoria de raça/cor, principalmente na categoria “preta” 17. Essa comparação foi feita analisando os sobreviventes de um Censo anterior e comparando as declarações de raça/cor (Petrucelli, 2002).

A estabilidade da classificação de raça/cor ao longo dos anos é ainda questionada (Carvalho et al., 2003). A análise das declarações de raça/cor gera uma série de discussões que são difíceis de se chegar a um ponto comum: há uma percepção maior sobre as diferenças raciais? Ou há ainda alguma rejeição em relação a alguns termos, como o pardo? Ou a maior miscigenação das raças tem feito aumentar a categoria parda em detrimento da categoria branca?

Alguns trabalhos tratam das diferenças que ocorrem quando se confrontam as declarações de raça/cor do informante e do entrevistador (Telles e Lim, 1998; Miranda-Ribeiro e Caetano, 2006). Por exemplo, quando se analisa a desigualdade de renda baseada na auto-declaração, ela é mais baixa do que quando é baseada na alter-declaração18. Por exemplo, quando se utiliza os dados de raça/cor auto-declarados, os brancos ganham 17% mais do que os

17 Essa migração para a categoria preta pode ser atribuída a uma maior conscientização racial.

18 Enquanto a auto-declaração é a informação dada pela própria pessoa, a alter- declaração ocorre quando a informação é dada por outra pessoa.

pardos, ao passo que, quando os dados são provenientes da classificação do entrevistador, essa diferença é de 26%. Nesse caso, quando se almeja medir a discriminação racial, é mais apropriado utilizar a alter-declaração, pois essa análise dependerá de como o indivíduo é visto na sociedade e não como ele se auto-classifica (Telles e Lim, 1998). No entanto, as estatísticas oficiais apenas captam a auto-declaração, ou deveriam captá-la. Se não o fazem, é porque o informante responde por outro morador do domicílio, ou por fraude do entrevistador. A primeira situação é plausível, dado que a entrevista é realizada com um morador respondendo pelos demais moradores, sendo esta situação a ocorrida na maioria dos casos. Longo e Campos (2006) mostram que a declaração de informação, tida como auto-declaração, na realidade é uma alter-declaração. Mais de 70% das declarações de raça/cor são dadas por terceiros, ou seja, outras pessoas moradoras do domicílio pesquisado. Esse resultado mostra que, embora tenhamos várias linhas de pesquisa considerando as declarações de raça/cor como auto-declarações, ou seja, declarações de como a pessoa se vê, na verdade estamos tratando, na maioria das vezes, de como o outro vê a pessoa19. A segunda situação é impossível de ser verificada nos dados, porém esse é um fato que pode, eventualmente, ser identificado e corrigido pela supervisão de campo da pesquisa.

Diferentemente dos Estados Unidos, cuja classificação racial se baseia na origem ou ancestralidade, no Brasil a classificação racial é feita com base na aparência do indivíduo. Nesse caso, o foco é dado ao fenótipo, excluindo-se a ancestralidade cultural e histórica nessa classificação (Bailey, 2009).

Em função desse tipo de classificação, alguns estudos sugerem que pode haver uma ambiguidade na classificação racial no Brasil. Além disso, a fidelidade da classificação tem forte relação com o pertencimento ou não a determinados grupos. Por exemplo, o sentimento de identificação com algum grupo racial pode ser um critério importante que leva o indivíduo a se declarar de determinada raça/cor como uma forma de fortalecer sua identidade. Algumas pesquisas de opinião, como a realizada pela Datafolha em 1995 e a

19 Deve ser ressaltado, no entanto, que esse “outro” pertence à mesma família ou ao mesmo domicílio da pessoa que está prestando a informação.

PESB (Pesquisa Social Brasileira) de 2002, possuem dados que permitem a expansão da classificação racial. Ao analisar esses dados, Bailey (2009:52-53) mostra que muitos migram de classificação quando há outras opções diferentes da classificação das cinco categorias censitárias, sendo que a categoria que mais perde indivíduos é a preta, pois mais de 75% dos indivíduos que se declararam pretos no censo migram de categoria de raça/cor quando há mais opções. Esse percentual é de 57% para os pardos e 31% para os brancos. No entanto, apesar dos indivíduos preferirem outros termos, eles se referem às mesmas populações.

Um estudo da inconsistência das declarações de raça/cor para as mulheres, ou seja, respostas diferentes entre entrevistados e entrevistadores, mostra que, em Recife, as mulheres que “se escurecem” têm escolaridade alta e as que “se embranquecem” são de escolaridade mais baixa (Miranda-Ribeiro e Caetano, 2006). No entanto, até mesmo a classificação dos entrevistadores é enviesada, pois a tendência é de embranquecimento do entrevistado, quando este possui uma escolaridade mais alta (Telles, 2003). Esses resultados corroboram análises que mostram que raça/cor e status socioeconômico têm um alto grau de associação (Silva, 1987), ou seja, até mesmo a forma de classificação é afetada pelo status socioeconômico dos indivíduos, tanto na auto quanto na alter-classificação.

No caso específico dos estudos das uniões, a informação dada por uma outra pessoa no domicílio pode ter um peso importante. Como a declaração de um dos cônjuges tem grandes chances de ter sido dada por outra pessoa, principalmente por seu esposo(a) ou companheiro(a), essa declaração, tanto para uniões intrarraciais quanto para uniões inter-raciais, pode sofrer um viés decorrente da pessoa entrevistada ser um respondente próximo. As quantidade e proporção de uniões intrarraciais podem estar sobrestimadas caso os parceiros sejam de raça/cor “próximas”, mas se vejam na mesma categoria – por exemplo, brancos e pardos ou pardos e pretos. As uniões inter-raciais, pelos mesmos motivos, podem ser subestimadas.

A seção seguinte traz algumas considerações gerais sobre as uniões inter- raciais. Serão destacados os aspectos internacionais e nacionais, com o

objetivo de contextualizar as uniões inter-raciais no Brasil e algumas regiões do mundo.