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Esta seção traz alguns conceitos relacionados a família e às uniões, bem como algumas características da família brasileira, permeadas pelos aspectos históricos de sua formação.

2.1.1 Definindo a família

A família pode ser definida como um grupo de pessoas que se relacionam entre si, seja pelo sangue, casamento, adoção ou algum tipo de aliança e que vivem juntas num mesmo local (Dias, 2005; Mendras, 2004; Sabóia e Cobo, 2005). No entanto, as recentes modificações pelas quais as famílias tem passado, como a redução das taxas de casamento e recasamento, aumento da idade ao casar, aumento das taxas de divórcio e aumento das taxas de atividade sexual e gravidez entre solteiros e adolescentes, têm atuado como um elemento questionador para a definição já difundida da família. Os laços de casamento, as relações consanguíneas, o morar junto, a independência

econômica entre os parceiros, todos esses fatores tem servido como pano de fundo para o debate do conceito de família, fazendo com que a discussão sobre a família esteja constantemente aberta (Thornton el al., 2007).

Na cultura brasileira, o estereótipo da família é constituído pelo marido, esposa e filhos, sendo que em outras culturas há variações para as estruturas familiares (Dias, 2005). No entanto, tanto no Brasil como em outros países em que há predomínio da família nuclear, há famílias mais complexas.

A família extendida ou composta, por exemplo, como definida por Arriagada (1997), permite a configuração de um casal cujos filhos se uniram a outras pessoas, formando novas famílias, mas morando no mesmo domicílio, estabelecendo assim uma família “prolongada”. Esse conceito é bastante difundido, porém, há outra definição de família, dada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), muito utilizada nos estudos demográficos e que será adotada neste trabalho.

Para o IBGE, o conceito de família é mais restrito e considera

“a pessoa que morava sozinha; o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco ou de dependência doméstica; e as pessoas ligadas por normas de convivência. Foram definidas como conviventes as famílias com, no mínimo, duas pessoas cada uma, que conviviam no mesmo domicílio particular permanente na data de referência.” (IBGE, 2002).

Dessa forma, um domicílio pode ter várias famílias, mesmo que interligadas entre si por outros laços de parentesco. Além disso, a formação de uma família pode se dar tanto via parentalidade quanto via conjugalidade. No entanto, a conjugalidade é forma mais comum na família brasileira, como já apontado no início deste capítulo.

Ainda assim, mesmo o casamento (ou a união) sendo o mais frequente para formação da família, há várias formas que ele pode assumir na sociedade. No Brasil, o casamento é monogâmico e pode ser tanto exogâmico, ou seja, realizado entre pessoas de grupos distintos, quanto endogâmico, que é o tipo de casamento entre pessoas do mesmo grupo. Um exemplo são as sociedades em que impera a endogamia racial, ou seja, os indivíduos só podem se casar

com pessoas da mesma raça/cor7. Também são bastante comuns os casamentos endogâmicos entre grupos religiosos, pois há uma resistência maior às uniões entre indivíduos de religiões diferentes, principalmente devido às diferenças de valores que podem ser um motivo de conflito tanto no casamento quanto na educação dos filhos (Dias, 2005).

No Brasil, a única obrigatoriedade é que os casamentos sejam exogâmicos para parentes próximos (e.g., irmãos não podem se casar). Para os demais grupos, não há restrições, podendo haver casamentos endo ou exogâmicos do ponto de vista racial, da religião, das classes sociais, dos grupos de idade, dentre outras características. Por isso, analisar os diferenciais dessas características sociodemográficas entre as uniões permite compreender os mecanismos que operam nas escolhas dos parceiros, ou seja, quais os efeitos dessas características para as uniões endo e exogâmicas do ponto de vista racial, aqui também denominadas uniões intra e inter-raciais.

Para entender as uniões intra e inter-raciais é preciso primeiramente conhecer alguns aspectos da constituição da família brasileira. Sua composição racial pode ser melhor analisada quando se considera seu surgimento, que revela de alguma forma como se deu a miscigenação da população brasileira.

2.1.2 Surgimento da família brasileira

Ao se analisar as transformações pelas quais as famílias brasileiras passaram, deve-se considerar as relações sociais implícitas nesse processo. Ao longo do tempo, família hierarquizada, aquela na qual o poder é patriarcal8, perdeu espaço para a família cada vez mais igualitária, em que os valores tradicionais

7 Na África do Sul, durante muito tempo os casamentos deveriam seguir os preceitos da endogamia racial, ou seja, brancos só poderiam se casar com brancos e negros com negros (Dias, 2005).

8 O poder patriarcal consiste na figura central masculina, ou seja, o pai como o principal responsável pela família. “O patriarcado é um sistema que institui a dominação dos homens sobre as mulheres em todos os níveis de organização social: controle de recursos, organização familiar, sistema político, religião, etc.” (Hertrich e Locoh, 2004:104, grifo da autora)

e patriarcais foram sendo substituídos por valores mais subjetivos e privados. Ademais, a estrutura familiar também se alterou, passando por um processo de reorganização e diversificação, surgindo novas formas e tamanhos de família, assim como novos significados (Cioffi, 1998; Goldani, 2005).

Após o descobrimento do Brasil, a colonização portuguesa teve início e a formação social brasileira aconteceu de 1532 em diante. É a partir dessa data que começaram a se estruturar as primeiras famílias, rurais ou semi-rurais, por meio de casais portugueses, ou sendo constituídas pela união de colonos com mulheres caboclas, órfãs ou mesmo as “à-toa”, que vinham de Portugal com o objetivo expresso de se casar. Apesar da existência de relações inter-raciais entre senhores e escravas, que muitas vezes resultavam em filhos ilegítimos, a união/casamento de brancos e negros era rara e esteriotipada no período colonial (Freyre, 1980).

A família brasileira começava a surgir e ganhava novas funções sociais e econômicas. A família colonial era agrícola e se apoiava no trabalho escravo, tendo muitos colonos se tornado grandes latifundiários. A figura masculina se destacava como a grande fonte de poder e responsabilidade, cabendo às mulheres o cuidado dos afazeres domésticos (Freyre, 1980).

Essa família patriarcal rural veio se consolidar no Brasil no período colonial. No entanto, no início do século XVIII, ela começou a entrar em decadência, com a chegada de Dom João VI. A influência social e econômica da chegada da Família Real fez com que a estrutura da colônia se alterasse, principalmente devido ao desenvolvimento das atividades urbanas, como o comércio e as indústrias, criando uma nova classe social: burgueses e negociantes. Nesse sentido, essas modificações começaram a evidenciar o antagonismo entre o desenvolvimento das cidades coloniais e as casas-grandes de fazendas e engenhos (Freyre, 2003).

Muitos filhos de fazendeiros e de donos de engenho começaram a sair do país para estudar e se especializar em carreiras científicas, como o bacharelado e a medicina. Ao retornarem ao país depois de formados, grande parte escolhia a

cidade para morar, configurando um período de transição chamado por Freyre de urbanização do patriarcalismo. Esse período é destacado como

“... um período de diferenciação profunda – menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo proprietário; e mais individualismo da mulher, do menino, do negro...” (Freyre, 2003:126).

Nesse sentido, embora essas mudanças não tenham sido imediatas nem uniformes em todo o território nacional, a família brasileira começava a se transformar. A decadência do patriarcado e o desenvolvimento da estrutura urbana afetaram sobremaneira as famílias. Além disso, a partir da segunda metade do século XIX, com a Abolição da Escravatura, outro componente para a análise das famílias emergiu: as uniões inter-raciais.

Em uma análise histórica sobre a evolução da família e do casamento no Brasil, Durham (1982) destaca que a cor é uma variável fundamental para interpretar os dados sobre uniões. As relações discriminatórias e de dominação acabaram por dificultar a emergência de formas estáveis de família após a abolição da escravatura. A transformação da sociedade e sua dinâmica após o fim da escravidão foram de fundamental importância para o processo de formação das famílias, principalmente famílias constituídas por ex-escravos. As uniões e, consequentemente, as famílias, são resultado dessas novas relações, que emergiram de forma diferenciada nos distintos segmentos da sociedade.

No Brasil colonial e durante todo o século XIX, o casamento, os filhos e a vida religiosa eram as opções na trajetória de vida das mulheres brasileiras. O casamento ocupava papel central e agrupava os indivíduos por origem e posição socioeconômica, sendo, muitas vezes, um importante fator de mobilidade social. No entanto, essas relações se restringiam, basicamente, à população branca e de classes mais altas. Embora existissem algumas relações inter-raciais durante o período escravocrata brasileiro, eram muito raras e mais comuns entre indivíduos de posição social inferior. Em geral, ocorriam em situações de escassez de cônjuges dentro do mesmo grupo racial

ou social. Ainda assim, o número de solteiros e de casais em união consensual era mais alto entre a população negra (escravos e libertos) e estavam relacionados às dificuldades econômicas e raciais pelas quais essa população passava (Samara, 1988; Samara, 1989).

Embora a origem das uniões inter-raciais no Brasil possa ser analisada do ponto de vista histórico, é importante destacar que o conceito de raça é construído social e culturalmente, não tendo qualquer significado biológico (Pena, 2007). Mesmo que o conceito de “raça” seja passível de questionamentos, as diferenças de cor da pele e características físicas continuam sendo importantes para a escolha dos casais.

Esses apontamentos mostram, mais uma vez, a importância de se estudar as uniões inter-raciais. Para ajudar a subsidiar essa análise, é importante entender algumas concepções teóricas sobre a família. O que é considerado pelos parceiros na formação de uma família? Por que indivíduos se organizam em unidades familiares? Qual o papel das características individuais no processo de formação da família (casamentos, uniões)? Essas questões podem ser esclarecidas à luz de algumas referências teóricas.