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2.3 A questão racial

2.3.1 Desigualdades raciais

As desigualdades raciais no Brasil remontam a tempos distantes. Tendo o Brasil sido um país escravocrata, após a abolição da escravatura, em 1888, a situação do negro no país não se tornou igualitária à dos brancos. Houve um forte componente discriminatório na sociedade, sendo o negro (população de cor preta) o mais atingido pelo desprezo social, inclusive por parte dos mulatos, termo também usado para designar os pardos12, e dos brancos pobres. A discriminação e ridicularização do negro (preto) ocorreram tanto relativamente a seus aspectos físicos (cor, tipo de cabelo, traços da fisionomia) como por sua cultura africana, que não foi assimilada por mestiços (mulatos ou pardos) e brancos. No entanto, a situação do mulato mais escuro era mais próxima à do negro (preto), tendo o mulato de pele mais clara sofrido menor discriminação (Freyre, 2003).

Apesar de sua obra ter sido escrita originalmente em 1936, Freyre destaca em Sobrados e Mucambos, por meio da afirmação de Roquette-Pinto, que não havia mais negros puros naquela época no Brasil, ou seja, mesmo com características muito semelhantes às dos negros africanos, o negro no Brasil seria mulato, devido às tantas miscigenações ocorridas no país. Ainda assim, as mudanças ocorridas depois desta época não foram suficientes para acabar com as diferenças que separam negros e brancos no país.

Na década de 1950, especificamente, um projeto desenvolvido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) tinha a preocupação de investigar as relações raciais no Brasil e patrocinou uma série de pesquisas cujo objetivo era investigar as relações raciais que, até então, eram tidas como bem sucedidas – a tese da “democracia racial” de Gilberto Freyre. No entanto, é partir desses estudos, tendo Florestan Fernandes como um dos seus grandes expoentes, que a questão do preconceito racial tornou-se mais evidente. Esse projeto pode ser considerado um marco dos estudos da

12 Freire (2003) usa constantemente os termos negro e mulato para se referir à população de cor preta e parda, respectivamente.

situação racial brasileira, deixando clara a posição da inexistência da democracia racial no país (Maio, 1999).

Ainda assim, pode-se citar algum avanço, como o fato de a discriminação racial ter se tornado crime inafiançável e imprescritível no país com a Constituição de 198813 (Brasil, 1988) e o Código Penal ter especificado a pena para os casos de preconceito racial14 (Brasil, 1997). Contudo, isso não foi suficiente para acabar ou reduzir de forma considerável as desigualdades marcantes quando se comparam negros (pretos e pardos) aos brancos, principalmente em aspectos ligados às áreas da saúde e socioeconômica.

Há um volume considerável de estudos que revelam a situação de desvantagem dos negros em relação aos brancos no Brasil. Há desigualdades quando se analisam variáveis demográficas tais como esperança de vida ou mortalidade infantil. Uma comparação entre os censos de 1980, 1991 e 2000 indica que esperança de vida dos homens negros em 2000 (63,3 anos) era semelhante ao nível das mulheres brancas em 1980 (63,4 anos), revelando 20 anos de defasagem entre esses dois grupos. Em 2000, a esperança de vida das mulheres brancas já alcançava 73,8 anos (Miranda-Ribeiro e Oliveira, 2006). Apesar dessa diferença, o hiato nas esperanças de vida entre brancos e negros tem se reduzido, revelando um movimento de diminuição nessa desigualdade (Paixão e Carvano, 2008).

No caso da mortalidade infantil, um estudo recente para Belo Horizonte em 2000 mostrou que a taxa de mortalidade infantil para crianças filhas de mulheres negras era de 32 óbitos por mil nascidos vivos, comparada a 12,1 óbitos por mil nascidos vivos para crianças filhas de mulheres brancas, revelando uma enorme desigualdade racial. Como ambos os níveis são muito elevados, caso fosse estabelecida a meta de 6,7 óbitos para cada mil nascidos vivos, as crianças brancas atingiriam esse nível entre 2013 e 2014, enquanto as negras demorariam até 2029, prolongando a desigualdade em Belo Horizonte (Carvalho et al., 2008). Para o Brasil, embora essa distância esteja

13 Artigo 5º - inc. XLII – tendo sido regulamentado pela Lei 7716/89 (Brasil, 1989), que foi posteriormente alterada pela Lei 9459/97 (Brasil, 1997).

se reduzindo, também se verifica uma forte desigualdade, pois a taxa de mortalidade infantil era de 24,4 óbitos por mil nascidos vivos da população preta e parda e 19,1 óbitos por mil nascidos vivos da população branca em 2005 (Paixão e Carvano, 2008).

As desigualdades raciais aparecem, também, na educação. Embora tenha havido ganhos educacionais nos últimos anos para a população de uma maneira geral, os brancos experimentaram uma melhora mais que proporcional à dos negros até a década de 1990, ocasionando assim, uma perpetuação das diferenças raciais em termos educacionais (Lima, 1999). Dados mais recentes mostram pouca mudança nesse quadro, pois os ganhos em anos de estudos para a população negra têm apresentado um aumento muito pequeno em relação aos ganhos da população branca. Paixão e Carvano (2008) destacam que, nesse ritmo de redução da desigualdade educacional, as diferenças ainda demorariam quase vinte anos para se anular.

Na análise da alfabetização, que mede o princípio da escolaridade de um indivíduo, as diferenças raciais se tornam explícitas. Entre pardos e pretos, no entanto, não há diferenças significativas, o que significa dizer que ambos os grupos sofrem na mesma intensidade os efeitos da discriminação racial. Tanto para os homens quanto para as mulheres há uma “hierarquização racial” nas taxas de alfabetização: amarelos, brancos, pardos, pretos e indígenas15. Além dessa hierarquização, brancos e amarelos se alfabetizam bem mais cedo do que a população negra (pretos e pardos) (Beltrão e Novellino, 2002). A análise dos dados do Censo 2000 mostrou que, nos estados do Sul do país, as taxas de analfabetismo dos negros são cerca de duas vezes a dos brancos16. Para o total do país, em 2006, o analfabetismo dos negros era 124,6% superior ao dos brancos (Paixão e Carvano, 2008).

Além da educação, trabalho e renda são componentes importantes para a discussão sobre as desigualdades raciais. A existência de um julgamento de

15 A ordem dessa sequência é das maiores para as menores taxas de alfabetização 16 Cálculos próprios da variação percentual nos indicadores de analfabetismo para negros e brancos. Para [(taxa de analfabetismo de negros)/(taxa de analfabetismo dos brancos)]*100 encontra-se: 112,94% para Paraná, 153,17% para Santa Catarina e 130,22% para Rio Grande do Sul.

mérito por critério racial acaba gerando uma alocação diferenciada dos indivíduos no mercado de trabalho, baseada na cor da pele em várias etapas da vida, causando uma série de desvantagens dos negros em relação aos brancos. Essas desvantagens acabam se acumulando e sendo transmitidas de geração em geração (Lima, 1999), perpetuando, assim, as diferenças socioeconômicas entre brancos e negros e, consequentemente, afetando a formação das uniões inter-raciais.

Com relação à renda, Silva (1999) mostra que os brancos recebem mais que o dobro dos rendimentos dos pretos. Já os pardos estão numa situação mais próxima à dos pretos do que dos brancos. Esses dados são de um estudo realizado pelo IBGE em 1976, por intermédio de um suplemento da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Dados mais recentes mostram que não houve alterações nesse quadro de desigualdade, pois o rendimento médio mensal de todos os trabalhos dos brancos é duas vezes o rendimento dos pretos e pardos (IBGE, 2005).

Soares (2000) mostrou ainda que os diferenciais de salários são distintos para homens e mulheres, principalmente se raça/cor for considerada. O diferencial salarial para as mulheres brancas é explicado exclusivamente por um diferencial de salário puro. Já os homens negros apresentaram um diferencial de salários em relação aos homens brancos devido principalmente às diferenças de qualificação, mas também sofrem uma discriminação salarial pura e de inserção no mercado de trabalho. As mulheres negras, por sua vez, acabam absorvendo esses dois efeitos da discriminação salarial: o efeito da discriminação salarial pura das mulheres brancas, além do efeito da discriminação salarial pura dos negros e dos diferenciais devidos à inserção e à qualificação.

A população negra está submetida a uma forte desigualdade de oportunidades. Considerando não só a distribuição etária, mas também a distribuição regional e a estrutura de sexo, é possível identificar claramente a sobre-representação dos negros na pobreza e na indigência. Em 2006, o percentual de pretos e partos abaixo da Linha de Pobreza era mais do que o dobro do percentual de brancos. Embora a situação de brancos e negros tenha melhorado nos últimos

anos, ainda assim essa melhora favoreceu os brancos (Henriques, 2001; Paixão e Carvano, 2008).

O rompimento dessa situação, por meio de melhores oportunidades no mercado de trabalho, torna-se uma meta mais difícil de ser alcançada, pois a evolução das taxas de desocupação está favorecendo os brancos. De 1995 a 2006 houve um aumento mais que proporcional dessas taxas para pretos e pardos (Paixão e Carvano, 2008), perpetuando a dificuldade de acesso igualitário a esse mercado.

Oliveira e Miranda-Ribeiro (1998) indicam que, no final da década de 1990, havia uma segregação ocupacional por raça/cor no Brasil. Brancos e negros (pardos e pretos) estavam concentrados em diferentes tipos de ocupações, sendo que os negros se concentravam em ocupações menos favorecidas, como as categorias ocupacionais de nível manual. Entre os empregados domésticos, categoria ocupacional historicamente desfavorecida e com menor amparo em termos de direitos trabalhistas, a maior parcela é de mulheres, pretas e pardas (Paixão e Carvano, 2008).

Desta forma, os diferenciais entre brancos e negros se encontram tanto nas características socioeconômicas quanto demográficas. Embora não haja uma separação social explícita em relação à raça/cor do indivíduo, ainda hoje há diferenças discrepantes com relação a características socioeconômicas importantes, como educação e renda, quando se analisam brancos e negros. Isso mostra que a cor ainda é um critério de classificação dentro da sociedade. Haveria barreiras invisíveis que impediriam a entrada dos negros na classe média, evidenciando que o racismo no Brasil parece ser um fato e particularmente mais intenso para os membros mais escuros da população negra (Silva, 1991 e Telles, 2003).

Além disso, a transposição das barreiras de classe social é mais difícil para negros do que para brancos. A escolarização é um dos fatores que mais favorecem a mobilidade social. Contudo, mesmo considerando aqueles que já conquistaram alguma posição na sociedade, ou que já têm um nível educacional mais alto, ainda assim a mobilidade social desfavorece os negros.

Brancos com mais de 12 anos de escolaridade têm três vezes a chance de ascenderem socialmente do que não-brancos na mesma situação. Isso revela que a desigualdade racial está presente também no topo da hierarquia de classes (Ribeiro, 2006).

Os diferenciais raciais estão presentes em muitas características individuais. No entanto, nas diferenças educacionais, eles se mostram bem nítidos, pois os não-brancos têm oportunidades educacionais mais limitadas que os brancos e, consequentemente, estas se refletem nos ganhos ocupacionais e de renda (Hasenbalg, 2005). Essas características, por sua vez, são importantes quando se analisa o mercado de casamentos, pois as escolhas dos parceiros podem ser pautadas pelo status do indivíduo na sociedade e também pela forma como ele é visto ou aceito.

No entanto, a se utilizar as características relacionadas à raça/cor dos indivíduos, são necessárias algumas considerações sobre sua forma de declaração, pois nosso sistema de classificação por raça/cor pode ter um papel importante quando se trata das desigualdades raciais.