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CAPÍTULO 1 UM COMPROMISSO SÓCIO-COGNITIVISTA

1.1. POR UMA TEORIA DA COGNIÇÃO SOCIAL

1.1.2. A COGNIÇÃO SOCIAL INTERACIONALMENTE SITUADA

Uma vez que consideramos que operações mentais básicas operam sobre contextos culturais de conhecimento, de forma dramaticamente diferente de uma cultura para outra, argumentamos em favor de uma concepção de cognição social que não seja infensa ao modo como a situação contextual influencia as atividades cognitivas individuais. As repercussões de uma tal concepção se estendem às noções de interação social; ao embate entre as abordagens interna e externa da cognição; às atividades de compreensão; à atividade lingüístico-

discursiva conjunta; e aos processos de categorização.

No campo da própria psicologia cognitiva se começa a indagar acerca da dimensão social dos processos cognitivos. O projeto de uma antropologia social da cognição a vê como um fenômeno social, não no sentido de uma correspondência entre operações cognitivas e processos sociais, mas segundo o qual os processos cognitivos são organizados socialmente.

A cognição, desta forma, não pode ser vista apenas como um conjunto de operações que ocorrem ora externamente à mente dos indivíduos, ora internamente. Não se trata de determinar onde acontecem as operações cognitivas, mas de explicar como interno e externo interagem e quão complexa é esta interação. Koch e Cunha-Lima (2004, p. 280) argumentam que a explicação de comportamentos inteligentes e estratégias de construção do conhecimento a partir da investigação das operações mentais internas ao indivíduo pode levar a equívocos tão graves como a criação do conceito de mente primitiva.

Neste sentido, Lave (1988) demonstra como o emprego de práticas sociais e integradas em atividades matemáticas, quer seja em mercados ou nas tarefas da cozinha, têm pouca relação com as atividades matemáticas praticadas no meio escolar. Tal incongruência questiona o papel da escola não somente quanto a sua (in)adequação, mas também quanto a sua relação com as ciências cognitivas e psicológicas que consideram que o pensamento científico é um remédio contra o senso comum cotidiano e que, de certa forma, impõem estruturas escolares baseadas na idéia da transferência assegurada dos conhecimentos adquiridos na escola para a vida cotidiana.

No mesmo domínio, Koch e Cunha-Lima questionam a concepção de cognição mentalista ao explicarem a diferença de desempenho de uma criança que trabalha vendendo balas na rua e que consegue, com muita velocidade, realizar cálculos matemáticos relativamente complexos, mas que na escola não é capaz de realizar os mesmos cálculos ou outros ainda mais simples. O que está em jogo, neste caso, é algo mais que o mero raciocínio

matemático abstrato, como bem explicam as autoras (2004, p. 280):

É a natureza essencialmente situada da cognição que pode ajudar a explicar, por exemplo, como os indivíduos podem ter desempenhos profundamente desiguais em tarefas que seriam abstratamente descritas do mesmo modo, mas que se realizam em situações sociais diferentes .

As capacidades cognitivas humanas podem ser explicadas, portanto, a partir da interação entre uma série de mecanismos neurobiológicos responsáveis pelas operações mentais e uma série de contextos sociais, culturais, históricos e intencionais. Somente através desta interação os seres humanos são o que realmente são.

O papel da ação corporificada, pública e intersubjetiva no desenvolvimento de mentes capazes de se engajarem nas atividades situadas tem sido objeto da investigação da cognição distribuída. Esta tem demonstrado que a atividade cognitiva bem sucedida depende de muitos agentes e instrumentos funcionalmente interativos e que nenhum deles individualmente conduz inteiramente as ações. O exemplo clássico desta atividade conjunta e distribuída é aquele apresentado por Hutchins (1995), ao ilustrar a interação entre equipes rotativas de navegadores e outras pessoas, como os membros da tripulação, outros navegadores e até instrumentos de navegação, na tarefa conduzir um porta-aviões com sucesso e coerência de ações a um determinado local. Tal exemplo explora a maneira como as contingências e ambientes físicos influenciam o raciocínio, como os seres humanos organizam os contextos de forma a produzir, estender e alterar seu raciocínio, ou metaforicamente, como dependem dos contextos para efetuar os seus raciocínios (Cf. TURNER, 2001, p. 43).

A cognição situada e distribuída visa, assim, a explicitar os aportes críticos das recentes discussões sobre a cognição e a refletir sobre a maneira como estas podem ser integradas em um terreno analítico próprio da lingüística interacional. A compreensão não é tratada como um processo ou um estado cognitivo puramente interior do sujeito, mas como

uma realização coletiva, publicamente exibida no emprego da seqüencialidade da interação (cf. MONDADA, 2003, p. 10, 16).

Ao tratarmos de cognição situada e distribuída, retomamos a noção de mente em ação de Coulter (1989). Este autor utiliza a análise conversacional para mostrar como os interactantes estão constantemente engajados na realização da compreensão, da inteligibilidade, da reconhecibilidade de suas atividades. O conhecimento partilhado (ou

shared cognition) é constantemente mantido, garantido, transformado pelos interactantes,

tanto a respeito dos procedimentos através dos quais um mundo comum é constituído, quanto em relação a como um mundo é visto em comum.

Esta abordagem, também denominada de praxeológica, considera as propriedades mentais das pessoas como sendo desenvolvidas nas práticas constitutivas, situadas. Os estados mentais ou os processos cognitivos são freqüentemente tematizados no curso das ações situadas onde efetuam um certo trabalho interacional e onde produzem a inteligibilidade da situação. Também procura ver a cognição como uma parte da ação conjunta o tipo de atividade em que nos engajamos diariamente, quando falamos com nossos vizinhos, conversamos ao telefone, assistimos ou ministramos aula, etc. O que acontece internamente em nossa mente é inseparável de sua manifestação exterior e as ações dos indivíduos somente fazem sentido com referência às ações de outros indivíduos. Assim, a cognição se associa à linguagem para dar novo sentido à cognição social e abordar aspectos como o discurso.

Para Mondada (2003a, p. 17-8), a compreensão da cognição situada e distribuída deve passar pelo reconhecimento de que há liames particulares e inextricáveis entre as práticas cognitivas e os tipos de atividade nas quais elas se imbricam; as práticas cognitivas e o coletivo dos atores, não evidenciando as pessoas individuais, mas a distribuição do trabalho e da interação em equipe; os processos cognitivos e seus ambientes espaciais e materiais onde, de um lado, os objetos intervêm na distribuição da cognição entre os atores humanos e não-

humanos e onde, de outro lado, o espaço em si mesmo é suscetível de ser configurado pelas práticas, de sorte a distribuir as informações cognitivas.

Esta concepção colaborativa indica que tanto quanto o trabalho coletivo, o trabalho de concepção é publicamente manifestado e organizado na/para a interação e que a relação entre cognição, corporeidade e linguagem é fundamental para se pensar a dimensão corporificada da cognição. A existência de diferentes níveis em uma atividade de co-concepção não significa, necessariamente, e existência de um acordo entre os participantes, mas, para que a atividade seja possível, as proposições devem ser mutuamente disponíveis, isto é, asseguradas graças a um dispositivo de publicização constituída tanto pela fala, quanto pelos gestos na interação. As categorias estão submetidas às negociações locais, ao curso das quais, suas fronteiras semânticas são ativamente mantidas ou transformadas pelos participantes (Cf. MONDADA, 2003a, p.23).

A relação entre este tipo de cognição social e o discurso não é, neste sentido, metafórica de uma linha de montagem que resulta em um produto final. Ao contrário, toma o discurso como algo inevitavelmente público, construído por muitas mãos, cuja causa não é uma questão de processamento mental dos indivíduos, e cujos efeitos vão além dos indivíduos envolvidos. A cognição social identifica como o discurso é formulado conjuntamente (Cf. CONDOR & ANTAKI, 1997, p. 335).

A tradição interacionista sempre atribuiu à linguagem a primazia e o papel central na construção do mundo social e a ação dentro dele. Isto também pode ser construído de um modo cognitivo em que a linguagem fornece à cognição as categorias construídas na interação e estas fornecem aos interactantes as versões do mundo e, desta forma, não mais se procura na língua a representação interna dos objetos. Em uma abordagem anti-mentalista da cognição social, a crença é na prioridade da língua como parte constitutiva de nossa vida social, na emergência da realidade social através da interação entre os falantes em uma comunidade.

Entendemos, deste modo, que as categorias atuam como nossas versões públicas de pensar o mundo, que se constituem como formas palpáveis que utilizamos para manusear a fluidez da realidade, e como meios de organizar o conhecimento sobre algo.

Assim, o conhecimento publicamente construído no contexto escolar não é mais que uma das muitas versões públicas do mundo, autorizada institucionalmente e aceita pelos membros da sociedade para ser oficial e vigorar como se fosse a única verdade/realidade existente e aceitável.