• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 UM COMPROMISSO SÓCIO-COGNITIVISTA

1.3. PROCESSOS DISCURSIVOS DE CATEGORIZAÇÃO

Mondada (1997, p. 291) se propõe confrontar as sugestões do enfoque cognitivo das categorias com outros enfoques críticos e complementares. Para isso, leva em conta suas contribuições e suas dificuldades de um ponto de vista particular, o da dimensão discursiva das atividades de categorização.

Ao contrário da psicologia cognitiva de Rosch, a abordagem sócio-cognitiva permite reorientar o enfoque das categorias, levando em conta seu caráter situado, localmente produzido, contextualmente dependente e lingüisticamente organizado. As categorias, neste sentido, são produzidas de forma corporificada, o que não significa que têm uma determinação sensório-motriz, mas que estão imersas em uma prática social secular, mundana. Desta forma, a atividade categorial não se reduz à atribuição de etiquetas prototípicas aos indivíduos e aos objetos, mas se ocupa dos métodos utilizados pelos sujeitos para caracterizar, descrever, justificar, compreender os fenômenos da vida cotidiana.

As categorias tratadas por Mondada não são apenas observáveis discursivamente, mas também estruturadas pelos processos lingüísticos que fazem delas objetos-de-discurso (e não objetos de referência), ou seja, objetos que são construídos para o discurso e não são preexistentes a ele. O corpus lingüístico permite observar como o discurso se constrói progressivamente, não postulando objetos e configurações pré-elaboradas, mas lhes constituindo. Tal enfoque considera as categorias como sendo tratadas lingüisticamente em seu interior, decompostas e recompostas, associadas e contrastadas e constantemente ajustadas ao contexto e à dinâmica comunicacional.

A dinâmica categorial observada é essencialmente discursiva leva a conceber uma semântica discursiva, baseada em operações sobre as fronteiras categoriais e não sobre seus traços fixos. De outro modo, ela é indissociável da prática enunciativa que se apropria do sistema lingüístico para ajustar os objetivos particulares e comunicativamente situados à

dimensão que define a flexibilidade das categorias.

1.3.1. O ENFOQUE SÓCIO-COGNITIVO À CONSTRUÇÃO DE OBJETOS-

DE-DISCURSO

Um dos problemas levantados para estudo dos tópicos e os objetos-de-discurso é o da especificação dos efeitos de estruturação observáveis no discurso que remetem aos processos cognitivos. A escolha e a formulação de um objeto-de-discurso implica em processos de categorização ligados não somente à denominação do objeto, mas mais amplamente à sua forma discursiva.

A problemática da construção dos eventos e dos fenômenos comunicativos corresponde em grande parte a uma questão de conceptualização dos fenômenos para certos fins práticos. Neste quadro, Coulter (1983, p. 123) sublinha o interesse do que Wittgenstein chamou de critérios para a conceptualização prática da vida ordinária. Os critérios são evidências defensáveis e convencionais para a constituição de fenômenos e são indissoluvelmente ligados à distribuição diferencial dos interesses práticos na existência social .

As categorias ordenam a descrição dos acontecimentos em questão; elas são também os processos genéricos de controle social; organizam e regulam a forma como se constrói um novo saber. Os dispositivos de categorização são contextualmente pertinentes, dependem da atividade em curso e de suas finalidade práticas.

O enfoque discursivo das categorias permite superar uma visão reificante ao propor uma abordagem em termos de realizações práticas, localmente situadas, organizadas de forma contingente na/para as atividades em curso. Tal abordagem permite trabalhar com a variabilidade das versões do tópico em desenvolvimento, apresentadas pelos indivíduos no decorrer da conversação, ao invés de propor uma resolução aos impedimentos analíticos que

banalizam as diferenças, vistas do ponto de vista logicista em termos de contradições (Cf. MONDADA, 1994, p. 90).

Exemplo 1 Conceito: Derivação

1.P= /.../ a que/a palavra que dá origem é a que eu chamo de derivada? 2.A= [não!

3.P= com é que eu chamo a que deu origem? 4.A= original

5.P= 6

sim... mas tem outra/vamos procurar o-ri-gi-nar/ vamos procurar no dicionário original/ procura no dicionário a palavra o-ri-gi-nal/o-ri-gi-nal

7.A= que dá origem 8.P= somente isso? 9.A1= achei original

10.P= ainda não é essa que eu quero 11.A= /.../ (substantivo derivado)

12.P= substantivo pode ser derivado... mas para ser derivado ele veio de um 13.A= adjetivo?

14.P= não... adjetivo não 15.A= [ de um verbo tia?] 16.P= o:::lha... pegue a gramática 17.A1= [palavra primitiva ((gritando)) 18.P= procure a gramática]

19.A= professora... humberto achou 20.A1= primitivo] ((aluno grita do fundo))

21.P= pri-mi-ti-vo... que veio primeiro... olha aqui ó... (...)

A tentativa de conceptualização do conceito palavra derivada sofre um impasse quando a consulta ao dicionário não é suficiente para definir o termo tratado na aula. As diversas tentativas dos alunos ao apresentarem significações para o conceito podem ser vistas superficialmente como inadequações e mesmo contradições ao tópico que está em foco na discussão. Numa perspectiva sócio-cognitiva, entretanto, trata-se de construções coletivas da categoria para as finalidades locais da interação. A dinâmica da aula, por sua vez, geralmente rejeita estas tentativas porque elege uma categoria precisa, um item lexical definido de antemão, como é o caso de primitivo .

A análise dos processos de categorização feita do ponto de vista sócio-cognitivo permite mostrar que as categorias são sempre construídas em um contexto interacional, de forma situada e para fins práticos. A questão da adequação referencial não pode ser vista a

não ser como concebida em si mesma, construída localmente e interativamente e não dada por critérios a priori em relação com uma realidade independente (Cf. MARCUSCHI, 2001, KOCH, 2001, MONDADA, 1994, 2001).

A referenciação, assim, concebida, não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social na qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, e avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. Os objetos-de-discurso não são concebidos como expressões referenciais em relação especular com os objetos do mundo ou com sua representação cognitiva, mas como entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes no desenrolar da enunciação. Em outros termos, o objeto-de-discurso não remete à verbalização de um objeto autônomo e externo ao discurso, ele não é um referente que seria codificado lingüisticamente (Cf. MONDADA, 2001a, MARCUSCHI, 2001, KOCH, 2001, 2003).

Se a análise interacional é vital para se argumentar em favor do caráter dinâmico e construído das categorias, ela não resolve o problema das marcas lingüísticas que são observadas nesta construção. Com efeito, torna-se necessário atentar para a forma como a categoria permite progressivamente a inferenciação. (Cf. MONDADA, 1994, p. 98).

A análise dos processos inferenciais permitiria conceber o léxico não como um dado regulador da língua, mas como um material constantemente re-trabalhado durante o discurso. Se assumirmos como pertinente a proposta de Rosch de não reificar os protótipos, mas de considerá-los julgamentos dos sujeitos, então não poderemos abordar a questão categorial, a não ser nas situações em que esses julgamentos são formulados, tematizados, endereçados, intercambiados, etc, levando-se em consideração a forma como são integrados nas atividade cotidianas, como a elaboração de descrições, pedidos de desculpas, acusações, cumprimentos, etc. Isto leva à passagem de uma cognição abstrata a uma cognição prática e situada, e logo, ao abandono de uma visão realista da cognição cartográfica das determinações

físicas do mundo ou mesmo do corpo, por uma concepção construtivista da cognição, não dada, mas formada progressivamente e incessantemente na interação verbal e social (Cf. MONDADA, 1994, p. 98).

A interação produzida através das trocas conversacionais é dotada de algumas propriedades dialógicas que permitem ao analista chegar aos processos de inferência de sentido. Uma destas propriedades é a possibilidade de negociação das interpretações entre falante e ouvinte, cujos julgamentos são confirmados ou mudados segundo as reações que eles produzem no interlocutor. Assim, não é possível que um único enunciado produzido pelo falante seja suficiente para que o ouvinte faça inferência de tal ou qual interpretação. A segunda propriedade é a afirmação de que a conversação contém, em si mesma, evidências internas do que será seu resultado. Gumperz (1982, p.114) dá como exemplo dessa propriedade a possibilidade de os participantes compartilharem ou não das convenções interpretativas, ou de serem bem sucedidos ou não em atingir os fins da teoria comunicativa.

As propriedades do discurso são, assim, estabelecidas pelos participantes, de forma situada e não de forma geral, atenta às contingências da interação. Estas contingências emergem no desenvolvimento seqüencial onde os tópicos são introduzidos e desenvolvidos de forma colaborativa. Pode-se dizer que tanto em caso de acordo como de desacordo na construção colaborativa, os objetos-de-discurso são coletivamente elaborados pelos participantes. Esta co-elaboração é possível graças à forma como os participantes mobilizam os recursos gramaticais na interação face a face.

Mondada (2001a, p. 7) insiste no caráter dinâmico e localmente construído dos objetos-de-discurso na interação social, na análise menos dos seus conteúdos semânticos do que dos processos através dos quais os participantes os elaboram discursivamente. Os objetos- de-discurso são antes de tudo definidos pelos interactantes antes mesmo do que pelo analista da conversação. Os participantes recorrem aos recursos gramaticais que utilizam para os fins

práticos, improvisando-os de forma situada, explorando-lhes as propriedades típicas, mas também fazendo emergir de outros princípios de ordem, de forma local, contingente, e ligada à ação.