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DOMINIOS ESTÁVEIS: MODELOS COGNITIVOS IDEALIZADOS

CAPÍTULO 1 UM COMPROMISSO SÓCIO-COGNITIVISTA

1.4. DOMÍNIOS COGNITIVOS NA CONSTRUÇÃO DE CATEGORIAS

1.4.1. DOMINIOS ESTÁVEIS: MODELOS COGNITIVOS IDEALIZADOS

Lakoff & Johnson (1980) defendem que o nosso sistema de conceptualização se assenta na utilização das nossas experiências enquanto organismos dotados de uma certa configuração biológica. Esta projeção do corpo na mente é denominada embodiement

hypothesis, ou hipótese da corporificação (Cf. JOHNSON & LAKOFF 1980; LAKOFF,

1987). Uma noção central a esta teoria é a de "image schema", modelo (ou matriz) cognitivo determinado de forma genérica, recorrente na nossa experiência sensorial e motora, que é projetado noutros domínios da experiência, determinando a sua configuração.

Segundo Lakoff (1987, p. 13) a idéia de um modelo cognitivo é a noção que une as teorias sobre a categorização, presentes no modelo das semelhanças de famílias , de Wittgenstein; de estruturas prototípicas e de categorização de nível básico de Rosch; além do modelo de corporificação conceptual, no realismo experiencialista de Lakoff (1980, 1987). Os modelos cognitivos estruturam o pensamento e são usados na formação de categorias e raciocínio. Os conceitos caracterizados pelos modelos cognitivos são compreendidos via a corporificação destes modelos.

As categorias são formadas a partir de um pequeno grupo de modelos cognitivos idealizados: "as categorias conceptuais humanas têm propriedades que são, pelo menos em parte, determinadas pela natureza corporal das pessoas que as categorizam" (LAKOFF, 1987, p. 371). A noção proposta pelo autor, na lingüística cognitiva, relativa aos modelos cognitivos idealizados (MCI), reflete a maneira como organizamos o nosso conhecimento através de estruturas de categorias e efeitos prototípicos que são produtos resultantes da disposição dos MCI.

A noção de modelos cognitivos é tributária de quatro fontes no âmbito da lingüística: a semântica dos frames de Fillmore (1982), a teoria de metáforas e metonímias como organizações cognitivas de Lakoff e Johnson (1980), a gramática cognitiva de Langacker

(1986) e a teoria dos espaços mentais de Fauconnier (1985, 1994). Estas teorias, em especial a semântica dos frames, mantêm similaridades com as noções de esquemas como estruturas de expectativas e conhecimento. Para Lakoff (1987, p. 68), o MCI é um todo complexamente estruturado, uma gestalt, que utiliza quatro princípios de estruturação: as estruturas proposicionais, as estruturas esquemáticas de imagem, os mapeamentos metafóricos e os metonímicos. Cada MCI também estrutura um espaço mental.

Para melhor entender o alcance dos MCI é preciso voltar à noção de enquadre (frame) de Fillmore. Lakoff (p. 68-69) parte da observação de uma categoria cotidiana como terça- feira . Para o autor, terça-feira só pode ser definida relativamente a um modelo idealizado que inclui o ciclo natural definido pelo movimento do sol, a maneira padrão de caracterizar o fim de um dia e o começo do outro, e um calendário cíclico mais amplo de sete dias a semana. No modelo idealizado, a semana é um todo dividido em sete partes, numa seqüência linear. Cada parte é chamada de dia, e a terceira parte é a terça-feira. Similarmente, o conceito de fim de semana requer a noção de uma semana composta por cinco dias úteis, seguidos de uma pausa de dois dias, superposta no calendário de sete dias. Nosso modelo de semana é, desta forma, idealizado. Semanas de sete dias não existem objetivamente na natureza, mas são criações dos seres humanos nem todas as culturas têm o mesmo tipo de semana.

Nós usamos modelos cognitivos idealizados para tentarmos compreender o mundo. Em geral, qualquer elemento de um modelo cognitivo pode corresponder a uma categoria conceptual. Um MCI pode se adequar à compreensão que uma pessoa tem do mundo de forma perfeita ou imperfeita. Quanto menos perfeita é a adequação entre as condições prévias do MCI e nosso conhecimento, menos apropriada para nós é a aplicação de um conceito.

Lakoff (p. 70-71) ilustra este caso ao utilizar a categoria solteirão , já discutida por Fillmore (1982). Esta categoria é definida relativamente ao MCI de uma sociedade humana que possui a instituição do casamento monogâmico e que prevê uma idade típica em que as

pessoas contraem o matrimônio. Este MCI não prevê a existência de sacerdotes celibatários, união conjugal não formalizada, homossexualidade, ou poliginia, como é o caso de certas culturas em que a um homem é permitido desposar várias mulheres. Com respeito a este MCI,

solteirão é apenas um homem adulto não casado.

Este MCI, entretanto, não se ajusta ao mundo real de forma precisa. Enquanto se adequa a certos segmentos da sociedade em que um adulto não casado pode ser, de fato, considerado um solteirão, deixa de contemplar outros casos como o do Papa João Paulo II, o de homens vivendo em união conjugal estável, ou mesmo o de pessoas que, involuntariamente, vivem sozinhas, como seria o caso de Tarzan. Desta forma, a condição prévia de homem adulto não casado, segundo o MCI descrito, não é suficiente para se apreender a categoria solteirão .

Os MCI têm, portanto, status cognitivo. São usados para a compreensão do mundo e para a criação de teorias sobre o mundo. Assim, os modelos cognitivos nos permitem fazer sentido de uma variedade de fenômenos semânticos. Neste sentido, Miranda (2000, p. 61) pontua que qualquer operação de significação presume invocar, da memória (...), bases de dados que orientam as expectativas dos sujeitos em suas ações individuais ou conjuntas , estas bases de dados são domínios sócio-cognitivos estáveis classificados em MCI. O desenrolar do discurso exige que sejam efetuadas construções cognitivas que incluem conjuntos de conhecimentos organizados e estruturados de acordo como domínios estáveis e locais. Os MCI são domínios estáveis, que ao lado dos enquadres comunicativos e esquemas genéricos estruturam o conhecimento socialmente produzido e localmente disponível.

Assim, de acordo com o modelo de mapeamentos de Fauconnier (1997), as categorias apresentadas e discutidas em aula pelo professor e alunos, estruturadas pelos modelos cognitivos idealizados do discurso cotidiano podem ser projetadas entre si, através do princípio de identificação conceptual da teoria dos Espaços Mentais (EM). Este mapeamento

permite a construção dos significados partindo dos esquemas mais genéricos, de base, para esquemas particulares. O processo de reconceptualização, desta forma, envolve o reconhecimento da integração entre os domínios fonte e alvo para a construção de um domínio mescla (blending) que leva em conta conhecimentos estruturados nos dois níveis anteriores (fonte e alvo).

Exemplo 2 Reconceptualização no Blending 1. P= /.../ vocês sabem o que significa reciclagem? 2.AA= ((silêncio))

3.P 4

que símbolo é este? ((a professora mostra o símbolo de reciclar três setas largas interconectadas em um círculo)

5.A= já sei/ reciclar é colocar o lixo na caixa azul /.../

A reconceptualização feita pelo aluno no exemplo acima (linha 5) só é possível em um contexto em que ambos professor e alunos compartilham um modelo cultural construído possivelmente através de um contrato sócio-didático, em que disponham de um recipiente (uma caixa envolta em papel azul) onde possam ser colocados as sobras de papel e outros materiais re-utilizáveis. Tal caixa, dada sua função de depósito de materiais recicláveis, contém um símbolo internacionalmente reconhecível que indica sua função. Como o evento se trata de uma aula de alfabetização, com alunos na faixa etária de 5-6 anos, a pergunta da professora na linha 1 não contextualiza conhecimentos possuídos pelos alunos. Trata-se, na verdade, de um conceito técnico que engloba uma série de possíveis definições. No entanto, quando o símbolo é apresentado, aciona um conjunto de saberes pressupostos e experienciados pelos alunos no convívio diário da aula, ou de suas atividades em casa. Isto conduz a uma associação entre o símbolo e a categoria introduzida pela professora, o que engatilha uma fusão das duas, sendo reconceptualizadas na assertiva do aluno (linha 5).

Há uma semelhança superficial entre a teoria dos MCI e a teoria dos espaços mentais de Fauconnier. Ambas usam modelos parciais, mas na teoria dos MCI estes são cognitivos e

idealizados. Isto significa que são caracterizados relativamente aos aspectos experienciais da psicologia humana e que não se ajustam necessariamente de forma precisa ao mundo exterior.

Enquanto esta teoria procura explicar as associações estáveis entre domínios conceptuais, a teoria da mesclagem dos EM de Fauconnier (1997, 2002) não só engloba estas relações como permite explicar a inovação conceptual. O modelo EM entende a metáfora e a metonímia, centrais na teoria de Lakoff, como um caso particular de um processo mais geral e constantemente presente na nossa atividade cognitiva, denominado "mesclagem" ou "integração conceptual".