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A Companhia de J esus – a d majorem Dei gloriam 122 

No contexto do Renascimento, da Reforma Protestante e da debilidade ético moral da  Igreja, foi criada a Companhia de Jesus, ordem religiosa de caráter reformista e militante, cuja  ética baseava­se no “salvar a alma” através da militância religiosa e da obrigação de “viver no  mundo”. A Companhia de Jesus emerge num período de crise da unidade europeia fundada na  cristandade,  de  ampliação  de  espaços  geográficos,  decorrente  do  Descobrimento,  dos  interesses  da  nova  ordem  burguesa.  Nesse  ambiente  se  enquadra  o  papel  da  Companhia  de  Jesus, Sebe (1982) a define como: 

ordem atrelada aos princípios da burguesia expansionista, pois comprometida com a  colonização e  missionarismo [...]. Os jesuítas prestaram  grandes serviços à  Igreja  e  aos  Estados  Ibéricos,  na  Modernidade.  Afinados  com  os  propósitos  religiosos  reformados,  os  padres  da  Companhia  participaram  do  processo  de  colonização  (SEBE, 1982, p. 8). 

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Cf.  Marilda  Oliveira  de  Oliveira.  Identidade  e  Interculturalidade  História  e  Arte  Guarani.  Santa  Maria:  Editora UFSM, 2004, p. 30.

O surgimento dos povoados missioneiros na primeira metade do século XVI, em terras  pertencentes  à  Coroa  espanhola,  na  Bacia  do  Prata,  desencadeou  um  processo  civilizatório  junto  aos  guaranis,  promovendo  a  formação  de  uma  organização  social  de  caráter  comunitário, católico e político. As reduções prestavam serviços militares, pagavam impostos  sobre  a  produção  agropecuária  e  a  exportação,  promoviam  a  produção  artística,  artesanal  e  técnica,  segundo  o  imaginário  europeu.  Processo  que  se  realizou  em  um  espaço  utópico  concreto, que durou mais de cento e cinquenta anos. 

Quem eram os jesuítas? O  surgimento dos jesuítas deve ser  entendido como resposta  da  Igreja  Católica  aos  desafios  surgidos  naquele  tempo  e  ao  imaginário  religioso  medieval  renascentista.  Iniciamos,  pois,  com  Inácio  de  Loyola  (1491­1556)  o  autor  dos  Exercícios  Espirituais, e fundador da Companhia de Jesus, cujo lema era: Tudo para a maior glória de  Deus.  Em 1553,  em  Roma,  junto  à  Igreja  de  Nossa  Senhora  da  Estrada,  vivia  um  grupo de  sacerdotes  que  fazia  apostolado  e  tinha  obras  sociais para  enfermos,  menores  abandonados,  jovens estudantes e prostitutas arrependidas. Muita gente ia consultá­los e a correspondência  era abundante. Tratava­se da Companhia de Jesus, ordem religiosa aprovada pelo Papa Paulo  III.  Com  apenas  treze  anos  de  existência,  a  Companhia  já  se  estendia  por  toda  a  Europa  e  possuía missões na África, na Ásia e  na América e o Colégio Germânico, 141 onde formava e  forjava os jesuítas e para onde afluiam os filhos da nobreza europeia. Nessa época acreditava­  se  que  os  membros  da  Companhia  passavam  de  mil  e  seu  fundador,  um  homem  de  baixa  estatura, coxo e sujeito a cólicas estomacais, era um padre bondoso e enérgico, que trabalhava  duramente. 

Era Inácio de Loyola, nascido na baixa nobreza da província basca, tinha sido soldado,  cavaleiro, peregrino e mendigo, estudado gramática latina  em Barcelona e Alcalá 142 , mas foi  na  Sorbone  que,  após  tornar­se  Mestre  em  Artes,  cursou  Teologia.  Foi  em  Paris  que  Inácio  recrutou  os  primeiros  soldados,  isto  é,  os  pilares  da  Companhia  de  Jesus:  Pedro  Fabro,  Francisco Xavier, Diogo Laínez, Afonso Salmerón, Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilla. A  todos,  Inácio  aplicou os  Exercícios  Espirituais,  “todos  se  puseram de  acordo  em  obrigar­se  com  certa  solenidade  a  cumprir  três  votos  ou  promessas  ao  Senhor;  voto  de  pobreza,  de  castidade  e  de  peregrinar  a  Jerusalém,  dedicando­se  depois  à  evangelização  e  salvação  do  mundo”,  (García­Villoslada,  1991,  p.  360).  Em  Paris,  Inácio  entrou  em  contato  com  as 

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Inaugurado em 1551, também dava aulas gratuitas a alunos externos. Mais tarde, este colégio se converterá na  célebre Universidade Gregoriana. 

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Iñigo,  antes  de  ser  de  Inácio,  teve,  em  Barcelona,  o  seu  primeiro  contato  com  os  escritos  de  Erasmo  de  Roterdã. Além disso, na Escola de  Mestre Ardévol a  gramática latina  utilizada era  a do humanista Antônio de  Nebrija. Ao mesmo tempo em que Inácio iniciava os seus estudos com o mesmo mestre, João Calvino concluía  os seus.

principais correntes culturais e religiosas de seu tempo. Além disso, os anos em Paris, 1528 a  1535,  foram, para  Inácio, anos importantes “para o amadurecimento de seu ideal apostólico,  dentro  de  uma  atmosfera  de  catolicismo  militante,  constantemente  atacados  por  hereges  procedentes da  Alemanha e  da  Suíça. Para o futuro fundador da  Companhia,  foram anos de  preocupações e profundas reflexões”, segundo García­Villoslada (1991, p. 351). 

A  Companhia  de  Jesus  nasceria  em  Roma  não  em  Paris,  embora  em  Paris  se  lançassem ao solo as suas primeiras sementes. Loyola recebeu a Ordenação Sacerdotal, aos 46  anos e entrando em Roma, em novembro de 1537, se deteve na capela de La Storta, perto da  cidade,  e  ali  teve  a  visão  espiritual que  depois  comunicou  a  seus  companheiros:  sentiu  que  Deus  Pai  “o  colocava  junto de  seu  Filho”  e  que Jesus, que  carregava  a  cruz,  lhes  prometia:  “Eu  estarei  com  vocês  em  Roma”.  Depois  dessa  visão,  confirmou  que  seu  grupo  devia  chamar­se “Companhia de Jesus” 143 . 

Na  proposta  que  apresentaram  ao  papa  pediram  que  os  aceitassem  como  um  corpo  apostólico, não como indivíduos isolados. Além dos três votos religiosos – castidade, pobreza  e obediência – fizeram um voto especial de obediência ao papa, para que ele os enviasse, onde  julgasse melhor em qualquer parte do mundo. A vida comunitária deveria ser simples e estaria  orientada  ao  trabalho  apostólico:  por  isso  não  poderiam  gastar  as  horas  no  canto  do  Ofício  divino, nem ter penitências exteriores. Por isso, também, o Geral deveria ser vitalício. Com a  ajuda dos demais, Loyola compôs a Fórmula do Instituto, que o Papa Paulo III aprovou a 27  de Setembro de 1540, com aBula Regimini Militantis Ecclesiae. 

A Companhia de Jesus passou, assim, a existir como Ordem Religiosa. A obediência  foi a  decisão fundamental  na  formação da  Companhia de Jesus, a  principal característica da  Ordem,  que  foi  estruturada  de  forma  militar,  para  defender  a  milícia  eclesiástica.  Assim,  a  autoridade de Deus, exercida pelo papa, era delegada ao superior geral e, através dele, para os  superiores  nacionais,  regionais  e  locais.  A  obediência  incondicional  foi  um  dos  primeiros  preceitos para o funcionamento da Ordem. A Companhia não alcançaria seus propósitos, se os  seus membros não estivessem unidos entre si e com a cabeça que os governa. 

Loyola foi eleito o Geral da Companhia por ele fundada, dos 50 aos 65 anos, até sua  morte, em 1556. Além dos Exercícios Espirituais,  deixou a Constituições da nova Ordem e  cerca  de  sete  mil  cartas,  enviadas  à  sua  milícia  dispersa.  A  obediência  foi  essencial  para  o  funcionamento da Companhia de Jesus, a maneira encontrada pelos primeiros jesuítas para se  dispersarem  pelo  mundo,  propagando  o  evangelho,  sem,  contudo,  perderem  sua  união.  A 

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Horácio Botero, SJ. Inácio de Loyola Fundador de la Compañía de Jesús. Trad. Pe. Benno Brod, SJ. Bogotá,  Colômbia: Arte Publicaciones, s/d, p.12.

importância  da  obediência  cega  foi  ressaltada  como  meio  fundamental  para  manter  a  Companhia unida e bem estruturada; isto lhe garantia o progresso para a maior glória divina.  Nesse  sentido  a  correspondência  epistolar  tinha  um  papel  muito  importante.  Era  imprescindível a  comunicação entre os membros da  Ordem; assim,  os subalternos deveriam  dar  conta  aos  seus  superiores  do  trabalho  realizado,  em  terras  longínquas,  segundo  Loyola  (1975): 

Concorrerá  também  de  maneira  muito  especial  para  esta  união  a  correspondência  epistolar  entre  súditos  e  superiores,  com  o  intercâmbio  freqüente  de  informações  entre  uns  e  outros,  e  o  conhecimento  das  notícias  e  comunicações  vindas  das  diversas partes. Este encargo  pertence  aos Superiores,  em particular ao  Geral e aos  Provinciais. Eles providenciarão para que em cada lugar se possa saber o que se faz  nas  outras  partes,  para  a  consolação  e  edificação  mútuas  em  Nosso  Senhor  (LOYOLA 1975, cap 1, § 673). 

Nos Exercícios Espirituais, na Constituições e nas cartas de Loyola estariam as bases  da  definição  de  um  método  de  missionação  para  a  redução  do  gentio  a  fé  católica.  Até  a  expulsão da Companhia de Jesus dos territórios pertencentes aos países ibéricos – Portugal e  Espanha – superiores, padres e irmãos não deixaram de escrever cartas 144 , informes, relatórios  e crônicas em que narraram as facilidades e dificuldades da conversão do gentio e o cotidiano  da Companhia de Jesus no Novo Mundo. 

Foi Lisboa, capital de uma vasta rede marítimo mercantil, então numa fase de apogeu  da  sua  expansão  no  Oriente  e  no  Ocidente,  a  primeira  “grande  rampa  de  lançamento”  dos  missionários da Companhia de Jesus 145 . O rei D. João III abriu aos Jesuítas a porta do mundo.  Nesse sentido, os padres da Companhia e a sua fulgurante afirmação e expansão muito devem  à  Coroa  Portuguesa  que  acolheu  os  primeiros  discípulos  de  Loyola  no  mesmo  ano  da  aprovação oficial da nova ordem pela Santa Sé. Nas terras lusitanas e nos seus potentados do  ultramar, a Companhia de Jesus usufruiu de um dos acolhimentos mais confiantes, gozou de  uma  protecção  mais  duradoura  e  teve  um  dos  crescimentos  mais  rápidos  e  uma  das  estruturações mais consistentes. 

Francisco Xavier e Simão Rodrigues foram os jesuítas enviados a Portugal. Francisco  Xavier foi o primeiro a se dirigir para terras longínquas, partiu para a Índia em 15 de março de  1540.  Simão  Rodrigues  permaneceu  no  Reino,  lançando  as  bases  da  Companhia  fora  de 

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As cartas jesuíticas, além de instrumentos de comunicação entre os missionários dispersos em diversas terras,  eram  imediatamente  transcritas,  copiadas,  impressas  e  difundidas,  não  só  entre  os  próprios  membros  da  Companhia  de  Jesus,  mas  também  no  meio  sociocultural  alfabetizado  da  Europa  da  época,  como  incentivo  à  missionação. 

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Cf. Nuno da Silva Gonçalves. Jesuítas. In.: Dicionário de História Religiosa de Portugal. Dir. Carlos Moreira  Azevedo. Lisboa: Mem Martins, 2000, p. 21­31.

Roma, a primeira de toda a Ordem. Nove anos mais tarde, em 29 de março de 1549, Manuel  da Nóbrega chega ao Brasil na armada do primeiro governador geral, Tomé de Souza. Menos  de quinze dias depois o superior da pequena missão que se iniciava  escreveu a  seu superior,  contando  como  tinham  sido  recebidos,  como  estavam  alojados,  o  estado  de  pecado  e  abandono em que se encontravam os portugueses, os primeiros contatos com os indígenas e o  interesse que mostravam em abraçar a fé, os avanços da comunicação com esses e os planos  da catequese. Nóbrega ([1557], 1995) escreve também a D. João III: 

Certamente não creio eu que em todo o mundo há terra tão disposta para tanto fruto  como  esta  […]  Cá  poucas  letras  bastam,  porque  é  tudo  papel  em  branco  e  não  há  mais  que  escrever  à  vontade;  mas  é  muito  necessária  a  virtude  e  zelo  de  que  estas  criaturas  conheçam  ao  seu  Criador  e  a  Jesus  Cristo  seu  Redentor  (NÓBREGA  [1557], 1955, p. 54). 

A  religião  foi  progressivamente  dirigida,  durante  o  decorrer do  século  XVII,  para  o  terreno  da  prática.  Entre  os  jesuítas,  a  religião  pretendia  introduzir  o  cristão  nas  leis  da  moralidade pública. Segundo De Certeau (1982, p. 350), “o lugar decisivo, doravante são os  costumes  mais  do  que  a  fé”.  Assim,  de  acordo  com  o  autor,  a  missionação  visava  especialmente as “regiões” geográficas, sociais, culturais, deixadas sem cultivo até então. Para  De Certeau (1982, p. 135­136), uma “unidade nacional é então promovida e delimitada pela  aquisição, inicialmente catequética, do conhecimento. O ‘resto’ será rejeitado para o folklore  ou eliminado”. Outro era o funcionamento da escrita e da palavra. Tornava­se o instrumento  de um duplo trabalho que  se referia, por um lado,  à  relação com o homem “selvagem”, por  outro, à relação com a tradição religiosa. Segundo De Certeau (1982): “Serve para classificar  os problemas que o sol nascente do ‘Novo Mundo’ e o crepúsculo da cristandade ‘medieval’  abrem àintelligentsia”. Para o autor: 

O selvagem se torna a palavra insensata que encanta o discurso ocidental, mas que,  por causa disto mesmo, faz escrever indefinidamente a ciência produtora de sentido  e  de  objetos.  O  lugar  do  outro  que  ele  representa  é,  pois,  duplamente  “fábula”:  a  título  de  um  corte  metafórico  (o  ato  de  falar  que  não  tem  sujeito  nomeável),  e  a  título  de  um  objeto  a  compreender  (a  ficção  a  traduzir  em  termos  de  saber)  (DE  CERTEAU, 1982, p. 235­ 236). (grifos e parenteses do autor). 

Nesse sentido, como compreender com nossas noções e nossos conceitos de hoje o que  era  fundamentalmente  o  diferente,  o  que  era  fundamentalmente  o  outro?  Uma  questão  era  elucidar  se  os  indígenas  tinham  capacidade  para  serem  autônomos  ou  eram  naturalmente  incapacitados  e deveriam  ser  tutelados,  para  seu bem, por  gente  mais  civilizada,  a  saber,  os

países  ibéricos  –  Portugal  e  Espanha.  Outra  era  determinar  se  esses  tinham  o  direito  de  colonizar os novos territórios conquistando­os e extraindo suas riquezas.