Embora a precisão descritiva fosse fundamental, o mundo ainda se constituia nos relatos de viagem e se constituirá mesmo depois dos Descobrimentos como um acervo de monstros, prodígios, mitos e maravilhas. Para Catroga, (2003, p. 49) este imaginário se arquitetou, conforme referido antes, como uma espécie de “utopia geográfica”, como resposta aos desequilíbrios e aos males das sociedades concretas. Para Godinho (1990, p. 92), em relatos da “geografia anacrônica que transporta o ocaso da Idade Média a situação existente muitos séculos atrás”. Holanda (2004, p. 14) chama de “geografia fantástica”, as versões de viajantes que, apoiadas nos juízos dos teólogos, situavam o Paraíso nos confins da Ásia. Nessa seção do presente capítulo, tratamos do mundo mítico que permanecia bem presente na cultura quinhentista, “avivado pelas supostas viagens, que gozam do favor do público e mantém desperta a sua curiosidade” 41 , como em O Livro das Maravilhas, de Marco Polo, século XIII; Voyage d’Outremer de Jehan de Madeville, século XIV; Ymago Mundi do cardeal Pierre d’Ailly, século XV.
Polo (12541323) era membro de uma família de mercadores venezianos e seu manuscrito datado de 1290 tivera muitas publicações antes mesmo da invenção da tipografia, embora faça referência a paraísos particulares de reinos fabulosos, como o reino do Velho da Montanha, que fazia crer aos seus súditos que aquele era o paraíso descrito por Maomé.
39 Cf. Jean Delumeau. Uma História do Paraíso O Jardim das Delícias. Trad. Tereza Peres. Lisboa: Terramar, 1992, p. 85. 40 Vitorino Magalhães Godinho. Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIIIXVIII. Lisboa: Difel, 1990, p. 229. 41
Tzvetan Todorov. Viajantes e Indígenas. In: O Homem Renascentista. Dir. Eugenio Garin. Trad. Maria Joice Vilar. Lisboa: Presença, 1991, p. 231.
Segundo Polo (1999, p. 74), o Velho construiu “em um belo vale fechado, entre dois montes altíssimos o mais belo jardim que jamais se viu […] No centro do jardim havia uma fonte, com muitas bicas, de onde jorravam o vinho, o leite, o mel e ainda a àgua. Havia nesse jadim as donzelas mais belas do mundo; que tocavam todos os instrumentos e cantavam como anjos”. Embora, no relato de suas viagens pelo Oriente, não avistasse o Paraíso Terrestre, o locus da Criação, descreveu cidades com a tentativa de localização de regiões míticas, como o reino de Preste João. Polo representou um ponto de transformação no relato de lugares ao descrever cidades asiáticas e não somente lugares imaginários. Apesar desta mudança, as suas descrições foram transformadas séculos depois em lugares míticos, como o Eldorado.
Mandeville, nascido por volta de 1300, de nacionalidade francesaborgonhesa ou inglesa (Jean d’Outremeuse ou de Brourgogne), escreveu em francês seu relato sobre uma viagem fantástica ao Levante, à Índia e à China. De acordo com Delumeau (1993, p. 65) e Godinho (1990, p. 547), tratase de uma compilação, redigida em primeira pessoa, que reúne os mitos e conhecimentos geográficos possuídos no século XIV. Em relação ao Paraíso Terestre relata o que ouviu falar, pois não sendo digno da lá entrar não o viu pessoalmente: “dizse que é a terra mais alta do mundo, e fica no Oriente no começo da terra. E é tão alta que aflora de perto o círculo da lua”. Mandeville adverte que “não há homem mortal que possa aproximarse, não sendo por especial graça de Deus”. Delumeau (1992, p. 64) observa que Voyagesde Mandeville teve um enorme êxito, difundido em cento e oitenta edições numa dezena de línguas. Segundo Delemeau, os melhores geógrafos da renascença fazem de Madeville o Ulisses dos tempos modernos.
Uma outra obra que fez a compilação dos conhecimentos livrescos, míticos e reais, dos inícios dos Descobrimentos é a Ymago Mundi do cardeal Pierre d’Ailly, 1410, que circulou manuscrita, sendo editada em Lovaina em 1483. O cardeal d’Ailly reforça a idéia da elevada altura do Paraíso Terrestre, de sua existência terrestre e de sua função de fonte dos quatro maiores rios da terra habitada. As suas descrições geográficas serviram para corrigir antigos mapas medievais e sua obra fazia parte da biblioteca de Colombo. De acordo com Delumeau (1992, p. 64) “um dos livros favoritos de Colombo, a avaliar pelas centenas de anotações à margem que ele fez sobre o exemplar que possuía”.
As diferentes caracterizações de geografia “anacrônica” por Godinho e “fantástica” por Holanda e a caraterização da utopia como “geográfica” por Catroga, como vimos, articulamse com a noção de compensação que o maravilhoso literário suscita? A compensação da trivialidade do cotidiano, o desejo de um mundo melhor representado por uma viagem para um espaço que seria belo, harmonioso e justo. O maravilhoso como herança
assume várias funções, mas a compensação é sua função original. É importante ressaltar que não tinha função de fuga, e sim de realização.
O maravilhoso está na essência do imaginário medieval, segundo Le Goff (1994, p. 25). Para este mesmo autor (2002, p. 16), seu sentido pode ser situado entre o miraculoso e o mágico, o sobrenatural. O sobrenatural medieval era dividido em três domínios: mirabilis que se aproxima do maravilhoso que estudamos; magicus que é o sobrenatural malévolo, satânico; e miraculosus que é o que podemos chamar de maravilhoso cristão, conforme Le Goff (1994, p. 49). O que entendemos por maravilhoso refere a um universo de objetos e coisas aptas a suscitarem admiração e estupefação: mirabilia de fato. Como elementos da cultura o maravilhoso faz parte da herança de cada sociedade que inventa um maravilhoso específico, este se alimenta sempre de um maravilhoso anterior, como qual não pode evitar o confronto.
E a maravilha se desencadearia pelo “ingresso, em um contexto habitual, de uma estranheza mais ou menos acentuada, que reconduz a lugares longínquos, aos quais atribuise o valor nostálgico de um bem perdido que deve ser recuperado”, segundo Lanciani, (1991, p. 21). Daí o desejo, de amalgamar ao próprio sistema esse “outro lugar”, esse elemento diverso, esse reencontro. Para a autora citada, as viagens abrem passagem à estranheza. A viagem se delineia como conquista do espaço da alteridade, como recuperação da mirabilia perdida.
Em torno a esse tema articulase uma sucessão de representações, como os relatos de viagens maravilhosas que terminarão por sugerir elementos característicos tanto de lugares quiméricos como de regiões desconhecidas. A imaginação, alimentada por todos os motivos maravilhosos herdados da tradição, constituíramse no eixo suporte dos itinirários fictícios, como em Voyages d’Outremer de Jeham de Madeville, e infiltramse nos relatos de viagem reais, como nos diários de Cristóvão Colombo.
Os elementos do maravilhoso, contudo, se articulam em sistema diverso daquele do mito, a partir do qual são obtidos, estruturandose de modo tal a dar coerência à lógica da narrativa, e, ainda, agindo como suporte de outras maravilhas redutíveis ao verossímil. Entendemos que os elementos do maravilhoso e os do mito têm em comum o fato de serem uma narrativa da novidade. Nesse sentido, Marin (1973), ao escrever sobre as características essenciais do mito assim se expressa:
le mythe est d’abord, et dans sa réception immédiate, un récit, une histoire, un ensemble linguistique combinant des unités élementaires d’après les catégories temporelles de l’avant et de l’après. Selon l’histoire ou le récit, le mythe est le lieu narratif de la contingence et de l’événement: tout peut arriver dans un mythe, les actes les plus extraordinaires, les aventures les plus exceptionenlles, les situations les plus imprévues. Il faut lier, pensounsnous, cette surprise, ce jaillissement de
l’événement, se suspens de l’attention à l’irrédutible nouveauté; il faut les lier à la forme du récit dans son aspect le plus superficiel (MARIN, 1973, p. 53). (grifos nossos).
Os acontecimentos maravilhosos encontrados na narrativa mítica e no relato de viagens são paradoxalmente imprevistos e esperados. Tanto que, aos poucos, conforme a geografia se torna familiar, o imaginário mítico rechaça o símbolo do maravilhoso para lugares sempre mais remotos e inacessíveis, onde ele possa continuar a manifestarse. Será a descoberta de novos mundos que fornecerá o terreno no qual os símbolos do maravilhoso adquirirão novo vigor. Cristóvão Colombo, leitor de autores antigos e medievais, transfere para esses lugares “novamente encontrados” elementos do repertório que estavam perdendo a força nos finais do século XV, de acordo com Lanciani (1991,p. 23). Colombo sobrepõe elementos do próprio imaginário a uma realidade apta a fazer funcionar de novo os mecanismos alimentadores da cultura do maravilhoso. O Paraíso Terrestre não difere do paraíso terrestre que os mapas medievais situavam nos confins da terra e nem mesmo daqueles das representações dos séculos anteriores, locus delegado do triunfo do maravilhoso. Entendemos que o relato de viagem constituiuse como uma escritura caracterizada por elementos míticos e maravilhosos, capazes de sucitar a “mirabilia de fato”, que possibilita as diferentes leituras que articulam as geografias fantástica, anacrônica e a utopia geográfica.