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As cidades abstratas – bases no exter ior 116 

As sucessivas Ordenações – as Leyes de Indias – determinavam, entre tantas outras, a  edificação dos núcleos urbanos, que deviam reger a fundação das cidades, leis elaboradas com  senso  burocrático  das  minúcias.  Segundo  Holanda  (1995),  legislava­se  desde  a  procura  do  lugar que se fosse povoar, assim: 

cumpria,  antes  de  tudo,  verificar  com  cuidado  as  regiões  mais  saudáveis,  pela  abundância de homens velhos e moços, de boa compleição, disposição e cor, e sem  enfermidades;  de  animais  sãos  e  de  competente  tamanho,  de  frutos  e  mantimentos  sadios; onde não houvesse coisas peçonhentas e nocivas; de boa e feliz constelação;  o  céu  claro  e  benigno,  o  ar  puro  e  suave.  Se  fosse  na  marinha,  era  preciso  ter  em  consideração o abrigo, a profundidade, e a capacidade de defesa do porto e, quando  possível, que o mar não batesse da parte sul ou do poente. Para as povoações terra a  dentro, não se escolhessem lugares demasiado altos, expostos aos ventos e de acesso  difícil;  nem  muito  baixos,  que  costumam  ser  enfermiços,  mas  sim  os  que  se  achassem a  altura  mediana, descobertos  para os  ventos  de  norte e sul. Se  houvesse  serras,  que  fosse  pela  banda  do  levante  e  poente.  Caso  recaísse  a  escolha  sobre  localidade à beira de um rio, ficasse ela de modo que, ao sair o sol, desse primeiro  na povoação e só depois nas águas (HOLANDA, 1995, p. 96­97). 

Também a  rede  urbana  estabelecida  no espaço espanhol,  no que  se refere à  forma, à  localização,  à  função  e  direção  do  crescimento  constituía­se  de  elementos  básicos  que  se  apresentava  também  na  estrutura  dos  povoados  missioneiros.  Nas  palavras  de  Holanda  (1995): 

A  construção  da  cidade  começaria  sempre  pela  chamada  praça  maior.  Quando  em  costa de mar, essa praça ficaria no lugar de desembarque do porto; quando em zona  mediterrânea, ao centro da  povoação.  A forma da  praça seria a de um quadrilátero,  cuja largura  correspondesse  pelo menos dois terços do comprimento, de modo que,  em dias de festa, nelas pudessem correr cavalos. Em tamanho seria proporcional ao  número  de  vizinhos  e,  tendo­se  em  conta  que  as  povoações  podem  aumentar,  não  mediria menos de duzentos pés de largura por trezentos de comprimento, nem mais  de oitocentos pés de comprido por 532 de largo; a mediana e boa proporção seria  a  de seiscentos pés de comprido por quatrocentos de largo. A praça servia de base para  o traçado das ruas: as quatro  principais sairiam do centro da cada face da praça. De  cada  ângulo  sairiam  mais  duas,  havendo  o  cuidado  de  que  os  quatro  ângulos  olhassem  para  os  quatro  ventos.  Nos  lugares  frios,  as  ruas  deveriam  ser  largas;  estreitas nos lugares quentes. No entanto, onde houvesse cavalos, o melhor seria que  fossem largas (HOLANDA, 1995, p. 97).

A colonização espanhola intervinha arbitraraiamente na natureza, no curso das coisas e  da  história,  que  “não  somente  acontece,  mas  também  pode  ser  dirigida  e  até  fabricada”,  conforme  Holanda  (1995,  p.  97).  Segundo  esse  mesmo  autor,  esse  foi  o  pensamento  que  alcançou  a  sua  melhor  expressão  e  o  seu  apogeu  na  organização  dos  jesuítas  em  suas  reduções. Esses o introduziram na cultura material das missões guaranis, construindo cidades  geométricas,  de  pedra  lavrada  e  adobe,  e  o  estenderam  até  as  instituições.  Segundo  Kern  (1994,  p.  36),  o  plano  urbanístico  das  reduções  levou  em  conta  a  disposição  dos  edifícios  relacionados  com  a  vida  dos  missioneiros,  a  partir  dos  modelos  europeus  já  consagrados  depois de séculos. 

O Renascimento provocou uma retomada do antigo projeto grego de cidade planejada,  seguindo um padrão: ruas perpendiculares cortando­se em ângulos retos, como se formassem  uma  grade,  demarcando  quadras  de  oitenta  metros  quadrados  nas  quais  se  instalavam  quarteirões de casas. Esse mesmo plano foi adotado pelos colonos espanhóis para a formação  das suas novas cidades, nas quais o quarteirão é um espaço quadrado de terreno, com casa ou  sem elas, mas sempre circundado por ruas, nos seus quatro lados. Nas reduções, entretanto, as  ruas  não  separavam  quarteirões  mas  sim  casas  isoladas,  concessão  feita  aos  padrões  da  habitação  indígena.  As  ruas,  que  se  organizavam,  segundo  o  plano  em  grade  do  Renascimento, separavam grandes casas indígenas e não quarteirões como nos povoados dos  espanhóis. De acordo com Kern (1994) a descrição do povoado de São João Batista (Fig. 2),  fundado por Sepp, mostra essa tríplice origem histórica do projeto urbano: 

A  praça  central  ocupa  o  centro  da  composição.  No  seu  lado  sul,  encontra­se  o  conjunto das edificações relacionadas às atividades religiosas e artesanais. A igreja é  ladeada à direita pelo cemitério, e à esquerda pelo claustro. Ambos os espaços estão  fechados  por  um  muro  e  um  alpendre.  O  acesso  aos  dois  recintos  se  dá  por  portas  que  se  destacam  dos  muros  e  compõem  com  a  fachada  da  igreja  um  cenário  extraordinário.  Dentro  do  claustro,  junto  à  igreja,  uma  torre  hexagonal  mostra  os  sinos. Ao  fundo do  claustro,  a  residência  dos  padres se  estende  de leste  a  oeste.  A  esquerda  do  claustro,  vê­se  o  pátio  dos  artífices,  com  as  edificações  onde  se  encontravam  as  oficinas  artesanais.  Ao  fundo,  a  tradicional  quinta  onde  pomares  fornecem  frutas,  plantam­se  ervas  medicinais  e  espécies  europeias  e  nativas  são  cultivadas. Quatro depósitos e um curral completam o desenho na sua parte superior.  A oeste da praça se vê um edifício retangular, com pequeno pátio interno, no qual se  acolhem as viúvas e os órfãos: é o Cotiguaçu. Ao norte da praça, duas longas casas  terminam em forma de edificações altas, junto à entrada principal do povoado. São  duas  capelas,  que  formam  com  a  fachada  da  igreja,  ao  fundo,  uma  perspectiva  de  rara simplicidade e beleza. A edificação da esquerda é onde se reúne o cabildo. Em  volta da  praça distribuem­se as casas longas  e separadas por espaços de circulação,  nas quais moram as famílias indígenas, cada família nuclear ocupando um aposento  do  conjunto.  Diversas  dessas  casas  são  lideradas  por  seu  cacique.  Em  volta  do  conjunto  do  povoado,  podem  ser  observadas  algumas  vertentes  de  água  transformadas em fontes (KERN, 1994, p. 37).

Esse conjunto foi o resultado de décadas de trabalho guarani, e pode ser tomado como  definitivo  nas  Missões  do  século  XVII  de  acordo  com  Kern  (1994,  p.  38).  Esse  plano  urbanístico não coincide com o de nenhuma das utopias estudadas, “porque é característico da  imaginação  utópica  a  busca  de  soluções  ideais,  que  não  podem  ser  evidentemente  as  já­  existentes, profundamente impregnadas pelas culturas das sociedades que as engendram”, de  acordo  com  Kern  (1994,  p.  38).  Nesse  sentido,  o  discurso  da  utopia  no  relato  de  Sepp  –  o  relato  da  conversão,  se  constituiu  conforme  a  abordagem  do  espaço  pelo  sujeito  para  a  constituição da utopia, no discurso e na  história. As Missões foram um experimento utópico  que, neste caso, se realizou em São João Batista a missão fundada pelo padre Sepp.