A concepção do mundo na cartografia da Idade Média se constituiu em relação à produção e concepção desses lugares míticos a par de lugares reais. Santo Agostinho (354 – 430) e Isidoro de Sevilha (560 – 636) elaboraram explicações a cerca de conhecimentos geográficos de acordo com os preceitos religiosos da época. Obras leigas, como os relatos de viagem de Marco Polo, de Jeham de Madenville e o do cardeal Pierre d’Ailly também tiveram forte influência sobre a geografia da Idade Média. Conhecer as idéias dominantes desse momento histórico e a tradição de sentidos nos permite entender porque depois dos Descobrimentos os viajantes procuravam lugares míticos que se acreditavam reais. O mito movia os homens.
Na Antiguidade, o ponto de partida dos gregos platônicos e pitagóricos para afirmarem a esfericidade da Terra foi estético – a circunferência era a figura perfeita. Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), através da Matemática e da Astronomia realizou a comprovação dessa esfericidade. Estrabão (63 a.C.? – 24 d.C.?), também grego, autor da obra Geographia, dividiu essa superfície em “climatas”, linhas paralelas definidas astronomicamente, de acordo com a duração do dia. A localização dos lugares estabelecida por um padrão cartográfico de paralelos e meridianos, independente dos novos lugares a serem descobertos foi estabelecida pelo astrônomo grego Hiparco de Nicéia (190 a. C. – 120 a.C.). Mais tarde, outro grego, Ptolomeu (83 – 161) aproveitou os conhecimentos dos antecessores e contribuiu para o conhecimento geográfico como a localização do Norte ao cimo do mapa. No entanto, Cosmografhia de Ptolomeu, somente foi traduzida em latim no começo do século XV, sendo impressa a partir de 1470. 38
Na Idade Média europeia, o traçado do mundo se fazia então na esfera ideológico religiosa com a contribuição de antigos mitos. Do mesmo modo o relato de viajantes mesclava as descrições de terras e de povos reais com imaginários. Os navegadores detinham o conhecimento prático da bacia mediterrânea e o comércio contribuiu para que o espaço geográfico continuasse sendo percorrido, não só por povos europeus. Nessa seção do presente capítulo, estudamos a concepção geográfica e cartográfica cristã. Para essas as representações
38 No início do século XV, Cosmografhia, de Ptolomeu, se torna disponível, traduzido por Jacopo Angeli de Scarpia, entre 1406 e 1410. O texto fora transmitido sem os mapas, que os geógrafos voltaram a desenhar baseandose nas indicações de Ptolomeu. A edição da versão latina de Angeli da Geografia (Cosmographia), publicada em Bolonha em 1477 (mas com data de 1462), é preparada por uma verdadeira equipe de “cientistas”. Cf. Eugenio Garin. O Homem Renascentista. Dir. Eugenio Garin. Trad. Maria Joice Vilar. Lisboa: Presença, 1991, p. 132.
do mundo seguiam o modelo Orbis Terrarum Tripartite ou mapas “T/O”, que mantinha a forma de circunferência. As terras emersas em um mar circundante eram divididas por três rios que formavam um T, representando o corpo de Cristo, compreendendo a ecúmena, ou seja, as terras habitadas. Esses primeiros mapas da era cristã eram “mapas ecumênicos” e a divisão da terra em três partes representava a divisão do mundo por Noé entre seus três filhos. O mundo é assim representado em Etimologias de Sto. Isidoro, divulgada e reeditada após a invenção da imprensa (Fig. 1).
Episódios e lugares mencionados nas Sagradas Escrituras tinham sua localização no traçado que representava o espaço real. Nesse sentido, a cartografia medieval – mapasmundi, planisférios e cartas geográficas – durante longos anos, garantiu espaço ao Paraíso Terrestre nas suas representações do mundo. As oficinas monásticas concebiamnas com base na ciência geográfica de santos homens, como Sto. Agostinho, Sto Ambrósio ou Sto. Isidoro. A história sagrada da criação e escatologia do mundo e do homem comandava as suas concepções. Nesse sentido, o Paraíso Terrestre representando o início da história humana era situado no cimo da representação; por isso localizavam o Oriente também ao alto. Jerusalém, o umbigo do mundo, ocupava a parte central, para onde deveriam convergir os olhares dos cristãos. Nesse sistema cartográfico, o mundo era figurado como representando o corpo de Cristo, confome dissemos. Os braços estendidos apontam um para o Norte outro para o Sul, já que o Oriente ficava ao cimo. O Paraíso Terrestre, como era comum a todas as configurações utópicas, era rodeado de um muro circular com apenas uma porta fortificada e fechada. O acesso a esse jardim abençoado era interdito ao homem, quer fosse ele carnal ou espiritual. Não obstante, o sítio da Criação continuaria a existir na face da terra e nos mapas medievais.
Ao passar os séculos, as terras percorridas pelos caravaneiros e navegadores precisavam ser descritas e apreendidas de maneira a permitir tanto a ida como a volta aos seus locais de origem. Godinho (1990, p. 225), aponta as traves mestras do que era o cosmos então: a terra é uma ilha, cercada pelo oceano primordial, formando a figura de um círculo ou de uma elipse. Uma cruz, cujo eixo era o Mediterrâneo, da qual um dos braços era o rio Don, o outro era o rio Nilo, dividia o emerso em três grandes continentes: Europa, Ásia, África. Jerusalém, ocupava o centro e o oriente, o cimo. Os quatro pontos cardeais definiam os eixos do sistema. Aos quatro cantos localizavamse os quatro elementos resultantes de pares de virtudes – seco e úmido, quente e frio – que determinavam a composição do todo. A presença humana era marcada no desenho de castelos e palácios, e a toponímia referia ao real e ao mito. A toda volta do círculo ou da elipse do orbe corria o oceano primordial, onde se sucediam as ilhas separadas por barcos, animais marinhos, dragões e serpentes gigantescas.
A partir do século XIII, a passagem da representação do mito para a do real tornase possível com o conhecimento advindo da cultura grega, mas reelaborado e ampliado pelas culturas judaica, islâmica e hindu, conduziu ao sistema cartográfico, por rumos de agulhas e distâncias estimadas. No entanto ainda no século XIV, ao distanciarse do eixo do conhecimento científico e da medida – bacia mediterrânea e costa da África –, as indicações imbricamse com os mitos, como no Atlas Catalão dos Cresques, de 1375. No século XV, os mapas resultariam de dois vetores que divergiam: por um lado, as viagens reais, segundo rotas que formavam uma teia de relações mercantis, eram representadas em carta de marear ou portulano; por outro lado, as viagens imaginárias, segundo o mundo dos símbolos – da ventura à perdição –, expressão de mitos cosmogônicos e de anseios utópicos de encontro ou reencontro.
Segundo os historiadores europeus, para aqueles que ultrapassam a linha do horizonte pela prática e pela experiência o mundo estava mudando. Os mitos também seguiam os seus caminhos. Os centros que detinham a produção do conhecimento sobre a confecção de mapas, as escolas monásticas, as cortes eruditas e os círculos intelectuais e livrescos, debatiamse ainda entre os mitos e as utopias que lhes apontavam direções. Do mesmo modo os mercadores e pilotos, conquistadores e aventureiros encontravamm incentivo nos mitos para a ação e a invenção. A própria evolução cartográfica, se, por um lado, rompia com os mitos tradicionais, de outro, não podia conceberse sem eles. Aos poucos, quando a carta geográfica considera as viagens portuguesas ao longo das costas da África passou a colocar o Norte ao cimo; Jerusalém não mais o centro do mundo, e o Paraíso Terrestre passou a ser omitido.
Delumeau (1992) aponta três grandes fatores que conduziram gradualmente os cartógrafos a modificarem as suas representações do mundo. A redescoberta deCosmografhia de Ptolomeu, impressa a partir de 1470. Nesta obra não se situava o Leste ao alto, nem se fazia referência à história sagrada. Nesse sentido, a terra, cingida pela rede dos meridianos e dos paralelos, deixou em príncipio de ser a construção hierarquizada de lugares que a cartografia medieval mostrava, centrados em Jerusalém ou na bacia do Mediterrâneo. À influência secularizante exercida por Ptolomeu vieram acrescentarse a precisão dos portulanos e os conhecimentos das viagens portuguesas e espanholas anteriores às de Colombo e de Magalhães.
A partir do século XIV, cartas de marear e mapasdomundo foram sendo orientados para o Norte e deixariam de dar a crer que o Paraíso Terrestre existisse ainda na nossa terra,
algures no Oriente 39 . Navegadores e mercadores iam construindo os espaços reais, iamse apropriando deles: “esses espaços traçados por rotas e rumos por onde sabe irse aonde se quer, voltar donde se chegou ao porto de partida, e refazer a viagem sempre que se pretendia” 40 . Não deixariam, porém de se inscrever em mitos e almejar utopias, ambos imbricados nas representações cartográficas de sentido prático e eficazes para a navegação ou para deslocação por caravanas. Segundo pensamos, a tipografia não veio assentar e difundir apenas a novidade, o mercado editorial que iniciava recuperou e divulgou também o conhecimento tradicional dos medievais dandolhes importância renovada.