Com o passar dos séculos foram muitas as interpretações que a humanidade fez do mito do Paraíso Terrestre. Para a maior parte dos autores, a palavra “paraíso” designa o jardim das delícias, onde viveram Adão e Eva. De acordo com Delumeau (1992, p. 9), “durante cerca de três milênios os judeus e depois os cristãos não tiveram dúvidas sobre o caráter histórico da narrativa do Genesis relativo ao jardim que Deus tinha feito surgir no Éden”. Conforme o Livro do Gênesis a descrição do Paraíso Terrestre assim se faz:
O Deus Eterno plantou um jardim na região do Éden, no Leste 42 , e ali pôs o homem que ele havia formado. O Deus eterno fez que ali crescessem árvores lindas de todos os tipos, que davam frutas boas de se comer. No meio do jardim ficava a árvore que dá a vida e também a árvore que dá o conhecimento do bem e do mal.
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No Éden nascia um rio que regava o jardim e que saindo dali, se dividia, formando quatro rios. O primeiro é o Pison 43 ; que rodeia a região de Havilá, onde há ouro. O ouro dessa região é puro, e ali também há um perfume raro e pedras preciosas, o bdélio 44 e a pedra de ônix. O segundo rio se chama Gion 45 ; ele dá a volta por toda a região de Cuxe. O terceiro rio é o Heidequel 46 , que passa pelo leste da Assíria. E o quarto rio é o Eufrates (Gn. 2, 814).
O homem e a mulher viviam ali uma existência imortal. Depois da queda do homem, o Deus Eterno disse: “Agora o homem se tornou como um de nós, pois conhece o bem e o mal. E ele não deve comer a fruta da árvore da vida e viver para sempre” e escondeu o Paraíso dos olhos humanos “no lado leste pôs os querubins e uma espada de fogo que dava voltas em todas as direções. Deus fez isso para que ninguém chegasse perto da árvore da vida” (Gn. 3, 2224). De acordo com Eliade (1993, p. 106107), o “mito do Paraíso mostranos a imagem de uma humanidade ideal, gozando de uma beatitude e plenitude espirituais inalcançáveis na condição do homem pecador”. Os mitos de vários povos aludem a uma época longínqua, em que os homens não conheciam nem a morte, nem o trabalho, nem o sofrimento, e tinham todos as graças ao seu alcance.
Para além da história, in illo tempore, os deuses desciam à Terra e misturavamse com os homens. Delumeau (1992, p. 12) e Eliade (1993, p. 107) apontam que nesse tempo os homens se comunicavam com o mundo divino e que um pecado ritual interrompeu a ligação. Por isso, segundo Delumeau, existe uma profunda nostalgia na consciência coletiva – a do paraíso perdido mas não esquecido – e o poderoso desejo de o reencontrar. A nostalgia do Paraíso, segundo Eliade (1986), se deixa entrever nos atos mais banais do homem. Para esse autor, a espiritualidade arcaica sobrevive, a seu modo, não como ato, não como possibilidade de concretização real para o homem, mas como nostalgia. O mito da felicidade das origens encontrou lugar tanto nas civilizações que concebiam o tempo como um ciclo como nas civilizações que a compreendiam como um vetor que unia um paraíso a outro.
A preocupação com o Paraíso Terrestre como morada intermediária dos justos, lugar de espera da ressurreição – o lugar inicial da história e o resultado final desta –, foi suplantada no imaginário cristão no decorrer da Idade Média, pela crença na sua existência terrena, mas ainda assim um lugar abençoado e interdito às investigações humanas. A par dessa, uma outra crença incentivou às navegações: “se o paraíso terrestre se achava doravante interdito, subsistiam, mais ou menos próximos dele, ou algures ao longe, regiões ditosas e maravilhosas 43 Identificado com o Ganges. 44 Goma extraída de uma palmeira. 45 Identificado com o Nilo. 46 Identificado com o Tigre.
que podiam ser alcançadas pelo homem audacioso e que lhes trariam riquezas fabulosas” 47 , tais como o ouro, as pedras preciosas e as especiarias. A existência material do Paraíso Terrestre no planeta data de 167 a. C., referida no Livro dos Jubilados, quando Noé partilhou o mundo por sorteio entre seus filhos, Sem, Cão e Jafeth. Sem ficou com a melhor parte, limitada ao norte pelo Don e ao sul pelo Nilo, dela fazia parte o Jardim do Éden, a oriente, o monte Sião, ao centro da ecúmena, o umbigo do mundo, e o Sinai, ao sul, todos esses lugares eram santos. No início da era cristã, os judeus afirmaram que os principais rios do mundo – o Nilo, o Danúbio, o Tigre e o Eufrates – corriam da nascente do paraíso. Esses rios foram absorvidos no contorno do Paraíso, desceram para o meio do mar como por um aqueduto e a terra os fez brotar cada um no seu lugar, mas não era aí a sua nascente original. Embora os judeus concebessem o Paraíso como um templo cósmico, cuja imagem visível seria Jerusalém, contribuíram para incluir o Paraíso numa “geografia sagrada”, segundo Delumeau (1992, p. 52). Segundo a qual o Paraíso localizavase em uma montanha tão alta que as águas do Dilúvio não chegaram a seu pé, aproximavamno ao halo de luz que rodeia a lua ou à coroa de ouro de que Moisés tinha cercado o altar. O Paraíso seria um cinturão que rodeava o mundo e a terra e o mar estavam compreendidos nele; localizavamno, pois, fora do alcance dos homens, seja porque ficava alcandorado num cume inacessível, seja porque estava situado além de um oceano intransponível.
Os cristãos, como Isidoro (560 – 636), bispo de Sevilha, distinguiam dois paraísos: um terrestre, onde foram colocados nossos primeiros pais; outro celeste, onde as almas dos justos aguardavam a ressurreição. Em relação ao primeiro, Isidoro escreveu quando tratou da geografia da Ásia, que esta compreendia numerosas províncias e regiões, as quais enumera, situa e nomeia, começando pelo paraíso. O paraíso localizavase no Oriente, seu nome traduzido do grego significa em latim hortus. Em hebreu chamase Éden, em latim significa deliciae. A junção das duas palavras deu hortus deliciarum. No Paraíso existiam todas as espécies de árvores, em especial as frutíferas, e a árvore da vida. Ali o frio e a canícula eram desconhecidos e o ar era sempre temperado. No meio dele havia uma nascente que o irrigava inteiramente e que, ao dividirse, daria origem a quatro rios. Depois do pecado, o acesso a esse lugar foi proibido ao homem. Estava rodeado de todos os lados por uma parede de fogo, cujas labaredas se elevariam ao céu.
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Jean Delumeau. Uma História do Paraíso O Jardim das Delícias. Trad. Tereza Peres. Lisboa: Terramar, 1992, p. 51.
No século XII, Joinville 48 , historiador e acompanhante do rei sant Lluís em suas diversas aventuras, escreveu sobre o Nilo e nomeou às especiarias – gengibre, ruibarbo, aloés e canela – que oriundas do Paraíso Terrestre vinham dar às margens do rio que atravessa o Egito vindo do paraíso terrestre, segundo esse historiador:
No local onde o Nilo penetra no Egito as gentes acostumadas a esta tarefa lançam à tarde suas redes desdobradas ao rio; e, quando a manhã chega, ali encontram os gêneros preciosos que se empregam na região, gengibre, ruibarbo, aloés e canela. Dizse que as especiarias vêm do paraíso terrestre, caindo sob o vento das árvores do paraíso, como a madeira seca que o vento abate da floresta (JOINVILLE, 1987, p. 38). (grifos nossos).
As ricas especiarias, o ouro e as pedras preciosas associadas ao Paraíso Terrestre, do século XIII ao século XIV, tornariam a questão da sua localização um elemento essencial das viagens maravilhosas. Jehan de Mandeville, que reuniu as noções geográficas aceites no seu tempo, garantiu que entre o reino de Preste João e o Paraíso Terrestre não se encontravam senão montanhas e grandes rochedos e a região tenebrosa, onde não se podia ver nada nem de dia nem de noite, tal como testemunharam os habitantes do país. Mandeville relatou o que dele ouviu falar, localizandoo na extrema Ásia, sendo a terra mais alta do mundo, rodeada por um muro de fogo e pela violência dos rios, dos quais corriam as águas doces do nosso planeta. Pierre d’Ailly, em Imago Mundi, foi prudente quanto à altitude do paraíso terrestre, mas não pôs em dúvida nem sua existência, nem a sua situação elevada, nem a função de fonte dos quatro maiores rios da terra.
Colombo, por sua vez, acreditava na existência e proximidade do Paraíso Terrestre não como uma sugestão metafórica ou passageira, mas como uma espécie de idéia fixa, que enraizada em seus predecessores, acompanhou ou precedeu as suas atividades e a dos navegadores. Holanda (2004, p. 14), como vimos, chama de “geografia fantástica”, as versões de viajantes que, apoiadas nos juízos dos teólogos, situavam o Paraíso nos confins da Ásia. Versões nas quais se encontravam os dados nos quais se deixava “embalar o navegante Colombo”, correntes durante toda a Idade Média. Para Colombo o golfo do Paria e o rio Orenoco se situavam na orla do Paraíso Terreal. Segundo Holanda “a tópica das ‘visões do paraíso’ impregna todas as suas descrições daqueles sítios de magia e lenda”. Para ele, a visão do Haiti, a formosura única da terra, da ilha coberta de árvores de mil maneiras, tão altas que pareciam tocar o céu, que jamais perdiam a folha eram traços inseparável da paisagem
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Jean de Joinville. Vida de Sant Lluís, rei da França. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Monteserrat, 1987, p. 247248; esse historiador foi citado por DELUMEAU. Uma história do Paraíso. O Jardim das Delícias. Lisboa: Terramar, 1992, p. 62.
edênica. Holanda (2004, p. 6) aponta que para se configurar o Paraíso segundo o Gênesis havia a necessária presença de:
rios, pois manava do Paraíso Terreal um rio para regálo e dali se tornava em quatro ramos: o Fison, o Gion, o Heidequel e o Eufrates; árvores que nunca perdem as folhas, verdes e viçosas é um traço inseparável da paisagem edênica; infinidade de pássaros que cantam de mil maneiras diferentes; primavera constante; fonte da Juventa aparece quase obrigatoriamente nas descrições do Paraíso Terreal (HOLANDA, 2004, p. 6).
Acrescentamos que Milhou (1983, p. 455), do mesmo modo que Delumeau, nomeia “geografia sagrada” à prática medieval da exegese geográfica. No imaginário de Colombo somamse seis das teorias medievais sobre a localização do Paraíso Terrestre, a saber: en la parte más alta del mundo; en una isla o un lugar apartado del océano; en el fin de Oriente; en la zona equinocial; en las terras australes; en una isla ocidental, teoria presente en las leyendas célticas, esclarece Milhou (1983, p. 456). A valoração das terras descobertas como se constituíssem a proximidade com o Paraíso Terrestre apareceu desde o primeiro diário, mas, como sabemos, o tema emergiu com maior relevo no diário da terceira viagem. As terras descobertas, além dos elementos apontados por Holanda que atestam a proximidade ou a presença do Paraíso Terrestre, estariam localizadas na parte mais alta do mundo, de onde corria a enorme quantidade de água doce que derramava o Orenoco no “golfo de la Ballena”. Nas palavras de Colombo:
[o mundo] não é redondo do jeito que dizem, mas do feitio de uma pêra que fosse toda redonda, menos na parte do pedículo, que ali é mais alto e que essa parte do pedículo seja mais elevada e mais próximo do céu, e se localize abaixo da linha equinocial neste mar Oceano, no confins do Oriente […] o ponto onde acaba toda a terra e ilhas […], ao passar dali ao Poente, já vão os navios erguendose suavemente para o céu, e então se goza de temperatura mais branda e se muda a bússula de navegação […] não creio que a essa altura extrema seja navegável nem que haja água, nem que se possa subir até lá, mas porque creio que ali é o Paraíso Terrestre, aonde ninguém consegue chegar, a não ser pela vontade divina. […] Volto ao meu assunto da terra de Gracia, do rio e do lago que ali encontrei, […] e eu afirmo que esse rio emana do Paraíso Terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícias, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso Terrestre (COLOMBO, [1493], 1998, p. 186, 189 e 191), (grifos nossos).
O relato de Colombo sobre as cercanias do Paraíso Terrestre, localizandoo nos confins da terra, fez emergir também o mito da Idade de Ouro. Entendemos que o movimento para além do mundo habitual recupera as imagens ignotas com os olhos da familiaridade. A função do mito era tornar dizívil aquilo que não tinha nome, procurando evitar a “vertigem da perda de referência no oceano do diverso”, segundo Lanciani (1991, p. 24). E, de outro modo,
evitar a “vertigem do espaço”, segundo Godinho (1990, p. 58). O espaço, cuja escala excedia as expectativas, numa imensidão que começava a ser rasgada, colocando o Paraíso Terrestre ao alcance dos homens.