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O Par aíso Ter r estr e por Cr istóvão Colombo 45 

Com  o  passar  dos  séculos  foram  muitas  as  interpretações  que  a  humanidade  fez  do  mito do Paraíso Terrestre. Para a maior parte dos autores, a palavra “paraíso” designa o jardim  das delícias, onde viveram Adão e Eva. De acordo com Delumeau (1992, p. 9), “durante cerca  de três milênios os judeus e depois os cristãos não tiveram dúvidas sobre o caráter histórico da  narrativa  do  Genesis  relativo  ao  jardim  que  Deus  tinha  feito  surgir  no  Éden”.  Conforme  o  Livro do Gênesis a descrição do Paraíso Terrestre assim se faz: 

O Deus Eterno plantou um jardim na região do Éden, no Leste 42 , e ali pôs o homem  que  ele  havia  formado.  O  Deus  eterno  fez  que  ali  crescessem  árvores  lindas  de  todos  os  tipos,  que  davam  frutas  boas  de  se  comer.  No  meio  do  jardim  ficava  a  árvore que dá a vida e também a árvore que dá o conhecimento do bem e do mal. 

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No Éden nascia um rio que regava o jardim e que saindo dali, se dividia, formando  quatro rios. O primeiro é o Pison 43 ; que rodeia a região de Havilá, onde há ouro. O  ouro  dessa  região  é  puro,  e  ali  também  há  um  perfume  raro  e  pedras  preciosas,  o  bdélio 44 e a pedra de ônix. O segundo rio se chama Gion 45 ; ele dá a volta por toda a  região de Cuxe. O terceiro rio é o Heidequel 46 , que passa pelo leste da Assíria. E o  quarto rio é o Eufrates (Gn. 2, 8­14). 

O homem e a mulher viviam ali uma existência imortal. Depois da queda do homem, o  Deus Eterno disse: “Agora o homem se tornou como um de nós, pois conhece o bem e o mal.  E ele não deve comer a fruta da árvore da vida e viver para sempre” e escondeu o Paraíso dos  olhos  humanos  “no  lado  leste  pôs  os  querubins  e  uma  espada  de  fogo  que  dava  voltas  em  todas as direções. Deus fez isso para que ninguém chegasse perto da árvore da vida” (Gn. 3,  22­24). De  acordo com Eliade  (1993, p. 106­107), o “mito do Paraíso mostra­nos a  imagem  de uma humanidade ideal, gozando de uma beatitude e plenitude espirituais inalcançáveis na  condição do homem pecador”. Os mitos de vários povos aludem a uma época longínqua, em  que  os  homens  não  conheciam  nem  a  morte,  nem  o  trabalho,  nem  o  sofrimento,  e  tinham  todos as graças ao seu alcance. 

Para além da história, in illo tempore, os deuses desciam à Terra e misturavam­se com  os  homens.  Delumeau  (1992,  p.  12)  e  Eliade  (1993,  p.  107)  apontam  que  nesse  tempo  os  homens se comunicavam com o mundo divino e que um pecado ritual interrompeu a ligação.  Por  isso,  segundo  Delumeau,  existe  uma  profunda  nostalgia  na  consciência  coletiva  –  a  do  paraíso  perdido  mas  não  esquecido –  e  o  poderoso desejo  de  o  reencontrar.  A  nostalgia  do  Paraíso, segundo Eliade (1986), se deixa entrever nos atos mais banais do homem. Para esse  autor, a espiritualidade arcaica sobrevive, a seu modo, não como ato, não como possibilidade  de  concretização  real  para  o  homem,  mas  como nostalgia.  O  mito  da  felicidade das origens  encontrou  lugar  tanto  nas  civilizações  que  concebiam  o  tempo  como  um  ciclo  como  nas  civilizações que a compreendiam como um vetor que unia um paraíso a outro. 

A  preocupação com o Paraíso Terrestre como morada intermediária  dos justos, lugar  de espera da ressurreição – o lugar inicial da história e o resultado final desta –, foi suplantada  no imaginário cristão no decorrer da Idade Média, pela crença na sua existência terrena, mas  ainda assim um lugar abençoado e interdito às investigações humanas. A par dessa, uma outra  crença  incentivou  às  navegações:  “se  o  paraíso  terrestre  se  achava  doravante  interdito,  subsistiam, mais ou menos próximos dele, ou algures ao longe, regiões ditosas e maravilhosas  43  Identificado com o Ganges.  44  Goma extraída de uma palmeira.  45  Identificado com o Nilo.  46  Identificado com o Tigre.

que podiam  ser  alcançadas  pelo  homem  audacioso  e  que  lhes  trariam  riquezas  fabulosas” 47 ,  tais  como  o  ouro,  as  pedras  preciosas  e  as  especiarias.  A  existência  material  do  Paraíso  Terrestre no planeta data de 167 a. C., referida no Livro dos Jubilados, quando Noé partilhou  o  mundo  por  sorteio  entre  seus  filhos,  Sem,  Cão  e  Jafeth.  Sem  ficou  com  a  melhor  parte,  limitada ao norte pelo Don e ao sul pelo Nilo, dela fazia parte o Jardim do Éden, a oriente, o  monte Sião, ao centro da ecúmena, o umbigo do mundo, e o Sinai, ao sul, todos esses lugares  eram santos.  No início da era cristã, os judeus afirmaram que os principais rios do mundo – o Nilo,  o Danúbio, o Tigre e o Eufrates – corriam da nascente do paraíso. Esses rios foram absorvidos  no contorno do Paraíso, desceram para o meio do mar como por um aqueduto e a terra os fez  brotar  cada  um  no  seu  lugar,  mas  não  era  aí  a  sua  nascente  original.  Embora  os  judeus  concebessem  o  Paraíso  como  um  templo  cósmico,  cuja  imagem  visível  seria  Jerusalém,  contribuíram para  incluir  o  Paraíso  numa  “geografia  sagrada”,  segundo  Delumeau (1992, p.  52).  Segundo  a  qual  o  Paraíso  localizava­se  em  uma  montanha  tão  alta  que  as  águas  do  Dilúvio não chegaram a seu pé, aproximavam­no ao halo de luz que rodeia a lua ou à coroa de  ouro de que Moisés tinha cercado o altar. O Paraíso seria um cinturão que rodeava o mundo e  a  terra  e  o  mar  estavam  compreendidos  nele;  localizavam­no,  pois,  fora  do  alcance  dos  homens,  seja  porque  ficava  alcandorado  num  cume  inacessível,  seja  porque  estava  situado  além de um oceano intransponível. 

Os cristãos, como Isidoro (560 – 636), bispo de Sevilha, distinguiam dois paraísos: um  terrestre, onde foram colocados nossos primeiros pais; outro celeste, onde as almas dos justos  aguardavam  a  ressurreição.  Em  relação  ao  primeiro,  Isidoro  escreveu  quando  tratou  da  geografia da  Ásia, que  esta compreendia  numerosas províncias e regiões, as quais enumera,  situa  e  nomeia,  começando  pelo  paraíso.  O  paraíso  localizava­se  no  Oriente,  seu  nome  traduzido do grego significa em  latim hortus. Em hebreu chama­se Éden, em latim significa  deliciae.  A  junção  das  duas  palavras  deu  hortus  deliciarum.  No  Paraíso  existiam  todas  as  espécies de árvores, em especial as frutíferas, e a árvore da vida. Ali o frio e a canícula eram  desconhecidos e o ar era sempre temperado. No meio dele havia uma nascente que o irrigava  inteiramente  e  que,  ao  dividir­se,  daria  origem  a  quatro  rios.  Depois  do  pecado,  o  acesso  a  esse lugar foi proibido ao homem. Estava rodeado de todos os lados por uma parede de fogo,  cujas labaredas se elevariam ao céu. 

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Jean  Delumeau.  Uma  História  do  Paraíso  ­  O  Jardim  das  Delícias.  Trad.  Tereza  Peres.  Lisboa:  Terramar,  1992, p. 51.

No  século  XII,  Joinville 48 ,  historiador  e  acompanhante  do  rei  sant  Lluís  em  suas  diversas aventuras, escreveu sobre o Nilo e nomeou às especiarias – gengibre, ruibarbo, aloés  e  canela  –  que  oriundas do  Paraíso Terrestre  vinham dar às  margens  do  rio que  atravessa  o  Egito vindo do paraíso terrestre, segundo esse historiador: 

No local onde o Nilo penetra no Egito as gentes acostumadas a esta tarefa lançam à  tarde  suas  redes  desdobradas  ao  rio;  e,  quando  a  manhã  chega,  ali  encontram  os  gêneros  preciosos  que  se  empregam  na  região,  gengibre,  ruibarbo,  aloés  e  canela.  Diz­se que as especiarias vêm do paraíso terrestre, caindo sob o vento das árvores  do paraíso, como a madeira seca que o  vento abate da floresta (JOINVILLE, 1987,  p. 38). (grifos nossos). 

As ricas especiarias,  o ouro e  as pedras preciosas associadas ao Paraíso Terrestre, do  século XIII ao século XIV, tornariam a questão da sua localização um elemento essencial das  viagens maravilhosas. Jehan de Mandeville, que reuniu as noções geográficas aceites no seu  tempo,  garantiu  que  entre  o  reino  de  Preste  João  e  o  Paraíso  Terrestre  não  se  encontravam  senão montanhas e grandes rochedos e a região tenebrosa, onde não se podia ver nada nem de  dia  nem  de  noite,  tal  como  testemunharam  os  habitantes  do  país.  Mandeville  relatou  o  que  dele  ouviu  falar,  localizando­o  na  extrema  Ásia,  sendo  a  terra  mais  alta  do  mundo,  rodeada  por um  muro de  fogo  e pela  violência  dos  rios, dos quais  corriam  as  águas  doces  do  nosso  planeta.  Pierre d’Ailly,  em Imago Mundi, foi prudente  quanto à  altitude do paraíso terrestre,  mas  não  pôs  em  dúvida  nem  sua  existência,  nem  a  sua  situação  elevada,  nem  a  função  de  fonte dos quatro maiores rios da terra. 

Colombo, por sua vez, acreditava na existência e proximidade do Paraíso Terrestre não  como  uma  sugestão  metafórica  ou  passageira,  mas  como  uma  espécie  de  idéia  fixa,  que  enraizada  em  seus  predecessores,  acompanhou  ou  precedeu  as  suas  atividades  e  a  dos  navegadores. Holanda (2004, p. 14), como vimos, chama de “geografia fantástica”, as versões  de  viajantes que,  apoiadas nos  juízos dos teólogos, situavam o Paraíso nos confins da  Ásia.  Versões  nas  quais  se  encontravam  os  dados  nos  quais  se  deixava  “embalar  o  navegante  Colombo”,  correntes  durante  toda  a  Idade  Média.  Para  Colombo  o  golfo  do  Paria  e  o  rio  Orenoco  se  situavam  na  orla  do  Paraíso Terreal.  Segundo  Holanda  “a  tópica  das ‘visões do  paraíso’ impregna todas as suas descrições daqueles sítios de magia e lenda”. Para ele, a visão  do Haiti, a formosura única da terra, da ilha coberta de árvores de mil maneiras, tão altas que  pareciam  tocar  o  céu,  que  jamais  perdiam  a  folha  eram  traços  inseparável  da  paisagem 

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Jean  de  Joinville.  Vida  de  Sant  Lluís,  rei  da  França.  Barcelona:  Publicacions  de  l’Abadia  de  Monteserrat,  1987, p. 247­248; esse historiador foi citado por DELUMEAU. Uma história do Paraíso. O Jardim das Delícias.  Lisboa: Terramar, 1992, p. 62.

edênica.  Holanda  (2004,  p.  6)  aponta  que  para  se  configurar  o  Paraíso  segundo  o  Gênesis  havia a necessária presença de: 

rios, pois manava do Paraíso Terreal um rio para regá­lo e dali se tornava em quatro  ramos:  o  Fison,  o  Gion,  o  Heidequel  e  o  Eufrates;  árvores  que  nunca  perdem  as  folhas,  verdes  e  viçosas é  um  traço inseparável da  paisagem  edênica; infinidade de  pássaros  que  cantam  de  mil  maneiras  diferentes;  primavera  constante;  fonte  da  Juventa  aparece  quase  obrigatoriamente  nas  descrições  do  Paraíso  Terreal  (HOLANDA, 2004, p. 6). 

Acrescentamos  que  Milhou  (1983,  p.  455), do  mesmo  modo que  Delumeau,  nomeia  “geografia  sagrada”  à  prática  medieval  da  exegese  geográfica.  No  imaginário  de  Colombo  somam­se seis das teorias medievais sobre a  localização do Paraíso Terrestre, a  saber: en la  parte más alta del mundo; en una isla o un lugar apartado del océano; en el fin de Oriente;  en  la  zona  equinocial;  en  las terras  australes;  en una  isla ocidental, teoria presente  en  las  leyendas célticas, esclarece Milhou (1983, p. 456). A valoração das terras descobertas como  se  constituíssem  a  proximidade  com  o  Paraíso  Terrestre  apareceu  desde  o  primeiro  diário,  mas, como sabemos, o tema emergiu com maior relevo no diário da terceira viagem. As terras  descobertas,  além  dos  elementos  apontados  por  Holanda  que  atestam  a  proximidade  ou  a  presença  do  Paraíso  Terrestre,  estariam  localizadas  na  parte  mais  alta  do  mundo,  de  onde  corria a enorme quantidade de água doce que derramava o Orenoco no “golfo de la Ballena”.  Nas palavras de Colombo: 

[o  mundo] não  é  redondo  do jeito que  dizem,  mas do feitio  de uma  pêra que  fosse  toda  redonda,  menos  na  parte  do  pedículo,  que  ali  é  mais  alto  e  que  essa  parte  do  pedículo  seja  mais  elevada  e  mais  próximo  do  céu,  e  se  localize  abaixo  da  linha  equinocial neste mar Oceano, no confins do Oriente […] o ponto onde acaba toda a  terra e ilhas […], ao passar dali ao Poente, já vão os navios erguendo­se suavemente  para  o  céu,  e  então  se  goza  de  temperatura  mais  branda  e  se  muda  a  bússula  de  navegação  […]  não  creio  que  a  essa  altura  extrema  seja  navegável  nem  que  haja  água, nem que se possa subir até lá, mas porque creio que ali é o Paraíso Terrestre,  aonde ninguém  consegue chegar, a não  ser pela  vontade divina. […] Volto ao  meu  assunto da terra  de Gracia, do rio e  do lago que ali encontrei,  […]  e eu afirmo que  esse rio emana do Paraíso Terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não  se teve notícias, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o  Paraíso Terrestre (COLOMBO, [1493], 1998, p. 186, 189 e 191), (grifos nossos). 

O  relato  de  Colombo  sobre  as  cercanias  do  Paraíso  Terrestre,  localizando­o  nos  confins da terra, fez emergir também o mito da Idade de Ouro. Entendemos que o movimento  para além do mundo habitual recupera as imagens ignotas com os olhos da familiaridade. A  função do mito era tornar dizívil aquilo que não tinha nome, procurando evitar a “vertigem da  perda de referência no oceano do diverso”, segundo Lanciani (1991, p. 24). E, de outro modo,

evitar a “vertigem do espaço”, segundo Godinho (1990, p. 58). O espaço, cuja escala excedia  as expectativas,  numa imensidão que começava a ser rasgada, colocando o Paraíso Terrestre  ao alcance dos homens.