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A competência como dispositivo de subjetivação do professor-reflexivo

3. O DISCURSO PEDAGÓGICO DA REFORMA EDUCACIONAL PARA FORMAÇÃO DO PROFESSOR NO BRASIL PÓS DÉCADA DE 1990: REIVENTANDO FORMAS DE

3.4 A competência como dispositivo de subjetivação do professor-reflexivo

As estratégias de reformas educacionais repousam em um conjunto de tecnologias de políticas produtoras de novos valores, novas relações e novas subjetividades nas arenas da prática que extrapolam níveis estruturais da educação. Ball (2005)

As tecnologias da política de reforma do setor público não são meros veículos para as mudanças técnica e estrutural das organizações, mas são também mecanismos para reformar os profissionais do setor público, como os professores, ao mudar o significado do que é ser professor, assistente social ou enfermeiro [...] A reforma não muda apenas o que fazemos. Ela também procura mudar aquilo que somos, aquilo que poderíamos vir a ser – nossa “identidade social” [...] Em cada tecnologia da política da reforma estão inseridos e determinados novos valores, novas identidades e novas formas de interação.

Entendemos que os planos discursivos das Diretrizes Curriculares Nacionais, enquanto “tecnologia da política de reforma”, produzem formas e saberes que disputam modelos hegemônicos de subjetivação docente na medida em que o seu discurso pedagógico produz dispositivos de poder e saberes. Este fato normaliza uma certa verdade sobre os professores e sua existência quando estabelece o modelo do “professor-reflexivo” associado ao conceito de competência como dispositivo de formação.

Compreende-se que o discurso das DCN´s apresenta-se, enquanto continuidade de uma prática de regulação da formação docente, na medida em que seus discursos pedagógicos autorizam a participação dos professores no exercício de sua profissão, pelo desenvolvimento de suas competências, pelas soluções dos problemas de aprendizagem na escola, pelos “bons” resultados das avaliações externas, pela sua produtividade dentre outros.

As diretrizes curriculares transformam-se então em um dispositivo pedagógico de subjetivação docente, “uma tecnologia de fabricação de seres humanos de determinados tipos (...)”, pois propõe “um projeto de formação humana: posiciona os alunos e as alunas em certos modos de ser e existir no mundo, atribuindo valores e

legitimidade a estilo de vida particulares e a determinadas formas de saber e de representação do mundo físico e social” (Garcia, 2006, p.103 -104).

O pensamento pedagógico crítico do professor reflexivo pleiteia formas de constituição dos docentes para novas racionalidades, através do enfrentamento dos aspectos coercitivos da estrutura social, reconstituindo um docente crítico, consciente, capaz, além de produzir rupturas com a prática tecnicista. O discurso hegemônico do professor crítico-reflexivo produz um ideário de formação docente, no qual a perspectiva reflexiva associa-se ao saber-pensar e o saber-agir tornando-se essenciais à identidade do professor.

As DCN´s recontextualizam o discurso do professor crítico-reflexivo colocando-o na condição de produtores de resultados, sujeitando-o à avaliação, análises periódicas e a comparações de desempenho por meio de um corpo teórico- prático de conhecimentos e habilidades, atitudes e valores para compor a ação docente competente. Novas formas de disciplina são instituídas pela competição, eficiência e produtividade como um processo contínuo e dinâmico de constituição da identidade do professor. Novos sistemas éticos são introduzidos com base no interesse próprio da instituição, no pragmatismo e no valor performativo (Ball, 2005).

O discurso produzido pelo modelo de formação do professor reflexivo defende o professor como intelectual político, transformador social e emancipado. Contraditoriamente, o discurso pedagógico das DCN´s produz um sentido de docência, cujo mérito da competência está no sucesso do ensino daquilo que a instituição-escola quer ensinar, na apresentação de resultados pré-estabelecidos e na crença de uma identidade docente protagonizadora das relações de poder produzidas pelos interesses das políticas educacionais.

O discurso pedagógico da prática reflexiva apresentado pela DCN´s realoca a função docente para uma condição de autonomia nas resoluções das situações-problema e, ao mesmo tempo, condiciona- o aos resultados esperados destas situações através de uma política de avaliação das competências profissionais do professor.

O texto das DCN´s defende uma separação clara entre pesquisa prática e pesquisa acadêmica: “a investigação que se desenvolve no âmbito do trabalho do professor não pode ser confundida com a pesquisa acadêmica. Refere-se, antes de mais nada, a uma atitude cotidiana de busca de

compreensão dos processos de aprendizagem [...] e dos conhecimentos que constituem o seu objeto de ensino”(Parecer, 2001, p.45). O caráter regulatório desse discurso não está no princípio

epistemológico da pesquisa-ação na formação do professor, mas na estruturação de um discurso pedagógico que direciona o olhar docente para o imediatismo da prática e condiciona a autonomia docente às necessidades institucionais.

Portanto, não é o conteúdo ou a metodologia pedagógica que está em questão, mas a “visibilidade ou invisibilidade do poder” (Diaz, 1998) que a apropriação pedagógica da pesquisa-ação poderá gerar, quando novos papéis e subjetividades são produzidos aos professores colocando-os na condição de gerenciadores de problemas escolares.

O discurso oficial das DCN´s define a função epistemológica da formação docente quando defende que essa formação deva passar pelo desenvolvimento de competências através de uma prática reflexiva; no entanto é necessário desvendar os efeitos de poder desse discurso para que ele não passe a ser mais uma continuidade das formas de regulação sobre a ação docente.

É admissível que o modelo de formação de professores apresentado pelas DCN´s, pautado no desenvolvimento de competência pela prática reflexiva, produziu alterações no modo de conceber, organizar e desenvolver o currículo dos cursos de formação docente. A revisão radical dos cursos de licenciatura, tanto no âmbito das instituições isoladas como da universidade, constitui-se numa necessidade histórica, que parte do reconhecimento do papel estratégico da formação do professor para todo o sistema educacional do país.

No entanto, esse modelo defendido pelo discurso oficial apresenta-se num patamar de regulação e ambiguidade, à medida que é produzido por um discurso pedagógico que excita o professor a ser ver como um profissional desqualificado para a sociedade contemporânea e o coloca na berlinda para responder aos problemas de aprendizagem escolares, à sua própria desvalorização profissional e à sua incapacidade de mudança. Ao mesmo tempo, a qualidade do ensino passa a depender muito do professor e a sua autonomia profissional é governada pelas formas dever e ser docente externas a sua condição.

As DCN´s cumprem uma função de produzir docentes regulados pela ordem do seu discurso, à medida em que estipula formas de como o docente deva ser e ver o mundo. Mesmo se utilizando do discurso do professor-reflexivo, apresenta-se como

mais uma forma perversa de aprisionamento do professor e não de sua libertação. No entanto, espera-se a emergência de um contra-discurso docente no contexto das práticas institucionais no qual o discurso oficial será recontextualizado.

Acreditamos que o processo de recontextualização deva proporcionar visibilidades a outras falas curriculares, de maneira que mobilize a comunidade docente a formular alternativas discursivas provocadoras de mudança, e não somente de reformas. A reforma curricular é um trabalho pedagógico que envolve o conhecimento e o currículo como processos discursivos, marcados por relações de poder desiguais, que implicam projetar conteúdos como verdades pré-estabelecidas, portanto é uma prática de formação de identidades.

4. ANALISANDO O PROCESSO DE REFORMA CURRICULAR NOS CURSOS DE