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1. RACIONALIDADE PEDAGÓGICA E A CORPORIFICAÇÃO DO CURRICULO NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR

1.1 Currículo: conceito e teorias

1.1.2 Teorias pós-críticas

Nos anos setenta, surge na Inglaterra um movimento que passaria a ser conhecido como a “Nova Sociologia da Educação” (NSE), liderado por Michael Young, que publica, em 1971, um livro intitulado de “Knowledge and Control: New Directions in the Sociology of Education”.

Este movimento, ao questionar igualmente a natureza do conhecimento veiculado pela escola, põe em causa a abordagem sociológica que procurava encontrar as razões do insucesso escolar, como a cultura, a linguagem e o ambiente familiar. Ao invés disso, a NSE vira o seu foco de atenção para o próprio Currículo, responsabilizando-o pela produção das desigualdades sociais. M. Young lança as bases de uma sociologia do Currículo, visto a destacar o caráter socialmente construído das formas de conhecimento. Em seu entender, a NSE deveria encarar o conhecimento escolar e o Currículo como:

As invenções sociais, como o resultado de um processo envolvendo conflitos e disputas em torno de que conhecimentos deveriam dele fazer parte. Deveria perguntar como essa disciplina e não outra acabou por entrar no currículo, como esse tópico e não outro, por que razão essa forma de organização e não outra, quais os valores e os interesses sociais envolvidos nesse processo seletivo (Silva, 1999a, p. 69).

Ao tomar conhecimento escolar como não natural e ao considerar que a estratificação do conhecimento leva à estratificação social, a NSE veio trazer mais luz à compreensão do papel político desempenhado pela escolarização na produção e reprodução das desigualdades sociais.

No entanto, a partir dos meados da década de 1980, a teorização crítica da educação concentrada em torno da NSE iria se dissolver em várias perspectivas analíticas e teóricas como o feminismo, estudos sobre gênero, raça e etnia, estudos culturais, pós-modernismo e pós-estruturalismo (Silva,1999a).

Tendo como referências teóricas o pós-modernismo de Lyotard e o pós- estruturalismo de Foucault, Derrida e Barthes, essas perspectivas analíticas consideram que a idéia de libertação do sujeito, por via de um “projecto educacional transformador”, pressupõe uma “grande narrativa” ou meta-narrativa sobre a educação (uma visão ideal de educação). Para a crítica pós-moderna e pós-estruturalista, este tipo de explicação é perigosamente totalizante, dadas as conseqüências desastrosas que daí se podem extrair: no campo político, a legitimação de regimes totalitários, e no campo educacional, a exclusão das diferenças culturais.

As perspectivas pós modernas e pós-estruturalistas rejeitam igualmente as “grandes narrativas” dos discursos científicos e filosóficos, pressupostamente legitimadoras de um saber considerado “o melhor saber”. Não há distinção entre “alta cultura” e cultura cotidiana, não há explicações universais e nem plenas, tampouco há preocupação com comprovações, revelações e descobertas. No entanto, trabalham na perspectiva da criação, do artefato, da produção (Corazza, 2001). Colocam em questão a autonomia do sujeito, pois esse é visto como um efeito de linguagem de, textos, de discursos, da história e dos processos de subjetivação (Silva, 1999b) com identidade híbrida, fluida e multifacetada.

A partir da década de 1990, as teorias críticas americanas e a Nova Sociologia da Educação (NSE) estão sendo conectadas ao campo dos estudos culturais que começam a traçar um novo mapa de análise entre currículo e cultura (Silva, 1999a). Os estudos culturais chamam atenção para outras categorias de análise do currículo como: linguagem, gênero, raça, sexo, poder e outras mais. A inserção destas categorias sugere novos olhares sobre o currículo que vão além do olhar das teorias críticas.

Conforme indica a teoria crítica, o currículo é um espaço de poder, na medida em que reproduz as estruturas sociais, é ideológico e também reflete os interesses de classe de uma sociedade capitalista; o currículo, pois é um território político. Ele distribui, opera, hierarquiza e classifica os saberes. Mais que colocar uma ordem epistemológica, ele atribui valores a estes saberes; logo é produzido como uma relação social e, portanto, não pode ser entendido fora das relações de poder (Silva, 1999a) e Veiga-Neto (2002).

No entanto, as teorias pós-críticas14 ampliam e modificam estas questões. Destacam o poder como algo descentrado. O poder pode se transformar, mas nunca desaparece. “Em contraste com as teorias críticas, as teorias pós-críticas não limitam a análise do poder ao campo das relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade” (Silva, 1999a, p.149). O conhecimento não se opõe, não é exterior ao poder, mas inerente a ele.

A preocupação com a conexão entre saber-poder-identidade se complexifica nas teorias pós-críticas porque, para essas, o currículo é uma questão de poder como “território contestado” e não somente de reprodução ou resistência das relações sociais de produção. No currículo sempre há contestação cultural, disputa de subjetividades, produção de identidade e resignificação de discursos.

Na perspectiva pós-crítica, a “teoria” não se limitaria a descobrir, descrever, explicar a realidade mas em analisar as condições de produção dessa realidade. A teoria passa ser um reflexo, uma representação, uma imagem, um signo de uma determinada realidade. Então não seria teoria, mas textos/discursos.

14 Silva (2002) afirma que todos esses rótulos: pós-estruturalismo, pós-moderno, pós-crítico são bastante

problemáticos, principalmente quando se propõe abranger as diferentes teorias e perspectivas. Porém admite que a classificação tem uma utilidade didática e cognitiva, mas também desvantagens e limitações. Não ignorando as perspectivas teóricas de currículo do pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo, teoria “queer”, estudos culturais entre outros, optamos, nesse trabalho, por centrar nossa discussão sobre o conceito de currículo como poder, saber e identidade comum nessas teorias consideradas “pós-criticas” e, portanto, utilizaremos essa denominação.

Para as teorias pós-criticas, o currículo não se detém somente nos fatos e conteúdos que o fazem, mas o modo de pensar, ver, sentir e o mundo e o “eu”. O currículo passa a ser entendido como campo discursivo que envolve o poder que disputa e gera saber e identidade. É um terreno de produção, luta e política cultural: produz identidades sociais e individuais.

As práticas discursivas que produzem esse campo são de diferentes agentes curriculares (professores, alunos, gestores, pais, políticos, acadêmicos...), pois a produção do currículo está diretamente relacionada com os interesses e com a condição de poder desses agentes. E essas relações de produção do currículo podem levar a formular projetos educacionais reforçadores ou transformadores das desigualdades sociais.

As teorias críticas enfatizam e acreditam no poder da auto-reflexão e da conscientização do sujeito para investida de um projeto de educação emancipadora. No entanto, para as teorias pós-críticas, a “subjetividade é sempre social” (Silva, 1999a), já que rejeitam a consciência unitária, centrada e coerente do sujeito.

As teorias pós-críticas estão sempre exercitando um olhar questionador sobre o poder de libertação, emancipação, autonomia e alienação do sujeito. Para Silva (2002), questionar a noção essencialista do sujeito e vê-lo como uma construção histórica, social e cultural significa ampliar a sua ação política e não estreitá-lo.

[...]descentrar o sujeito não significa afastar qualquer possibilidade de fazer política, mas apenas daquele tipo de política que tem como pressuposto justamente tal noção de sujeito. A política não se faz no terreno do dado, do fixo, do absoluto, do transcendental, mas justamente no terreno do questionável, do variável, do ordinário, imanente.” (Silva, 2002, p.11)

As contribuições trazidas pelas teorias críticas e pós-críticas nos levam a concluir que o currículo é um espaço de conflito de poder que disputa produção de subjetividades. Também nos apoiamos, aqui, no conceito ampliado de poder trazido pelas teorias pós-críticas para construir nosso referencial de análise dessa

investigação, por acharmos que ele responde aos questionamentos de pesquisa apresentados.

Passaremos agora, a discutir o conceito de discurso pedagógico como produtor de subjetividades docentes a partir da compreensão pós-crítica de currículo.