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1. RACIONALIDADE PEDAGÓGICA E A CORPORIFICAÇÃO DO CURRICULO NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR

1.2 Discurso pedagógico, currículo e subjetivação docente

1.2.2 Saber pedagógico como prática discursiva

Na visão foucaultiana, o saber é um conjunto de elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formados por práticas discursivas. No entanto, Foucault preocupou-se muito mais em descrever o espaço/campo comum de dispersão em que estes elementos aparecem, transformam-se e desaparecem do que propriamente com a identificação do objeto, do sistema conceitual ou da modalidade enunciativa.18

O saber é o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico [...] é também o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso [...] é também o campo de coordenação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso ( Foucault, 2005b, p. 204).

Foucault, em Arqueologia do saber (2005b), preocupou-se em analisar os traços da multiplicidade, historicidade, regularidade e da discursividade na formação dos elementos que constituem o saber. Afirma que este saber é constituído por elementos plurais e variam conforme as condições de históricas em que são produzidos. São elementos formados num complexo de relações entre instituições, técnicas, grupos sociais e discursos... que servem para normatizar/regular esses elementos, portanto “a formação das modalidades enunciativas resulta das relações entre o estatuto daquele que fala, os lugares institucionais de onde ele obtém seu discurso, a sua situação perceptiva e a posição que ele pode ocupar em uma rede de informações” (Costa, 1995, p.38).

18 Em “Arqueologia do saber”, originalmente publicada em 1969, na França, Foucault reformula sua

compreensão sobre “saber”, destacando que é necessário descrever o campo discursivo que institui o objeto e não propriamente o objeto.

A discursividade passa pela compreensão de que os elementos constitutivos do saber são formados pelas e nas práticas discursivas, compreendidas por Foucault como o “lugar onde se forma ou se deforma, onde aparece e se apaga uma pluralidade emaranhada, superposta e lacunar de objetos. [...] e que os discursos são práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (2005a, p.54). Os discursos são práticas discursivas que se referem a "... um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa" (2005a, p. 133).

Os discursos não são apenas estratégias comunicativas, mas também práticas culturais e políticas. Tudo é prática em Foucault, tudo está imerso em relações de poder e saber, ambos implicados, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder, que as supõem e as atualizam. (Fischer, 2001).

A idéia de discurso colocada não se refere ao que pode ser dito, mas quem pode falar, quando e com que autoridade. Os discursos, ao trazerem consigo um significado de certas relações sociais, produzem as subjetividades e as relações de poder. Este significado é criado a partir das práticas institucionais considerando a posição social e institucional de quem as usam.

Os discursos, no contexto de relações de poder específicas, historicamente constituídas e invocando noções particulares de verdade, definem as ações e os eventos que são plausíveis, racionalizados ou justificados num dado tempo (Gore, 1994).

Para Foucault, a análise do discurso vai em busca de regularidades que estão dentro de uma "nuvem de enunciados". Assim, os discursos não se organizam como tratados, mas sim em fragmentos, aforismos, máximas, ensaios (Veiga-Neto, 1996). Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que formam campos constituídos a partir de diferentes configurações discursivas, como bem explicita Popkewitz:

A importância da idéia de campo discursivo (o que Foucault chama de "região") está no fato de que ela nos permite focalizar a forma como os discursos historicamente construídos em locais fisicamente diferentes juntam-se para formar uma plataforma a partir do qual a individualidade é definida. A individualidade parece transcender eventos e ancoragens geográficas sociais particulares. (Popkewitz, 1995, p.203)

Campos discursivos não dizem respeito a um contexto onde os discursos se efetivam e nem ao espaço físico onde eles se produzem. Referem-se, sim, aos discursos que determinam regras, que instituem padrões institucionais, que classificam algo, a partir de um espaço epistemológico particular, onde são formadas subjetividades e onde há desdobramento de poder. Outros discursos se atravessam. Eis as possibilidades, num campo discursivo que "...se ordena, estrutura e transforma historicamente. Neles, as hegemonias são instáveis, contestadas, provisórias. Junto com os discursos, as representações sociais emergem, reinam, mudam, para logo desaparecer” (Palamidessi, 1996, p. 211).

A idéia de poder trabalhada neste texto está respaldada nos princípios foucaultianos de que o poder produz realidade, objetos e rituais de verdade e de que o indivíduo e o conhecimento se originam dessa produção. Para Foucault (2005a), o poder não pode ser localizado em uma instituição ou no Estado e nem deve ser algo que o indivíduo cede como a um soberano, mas sim como uma relação de forças. O poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por relações de poder não pode ser considerada independente destas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, já que constitui verdades, práticas e subjetividades.

Foi em “História da sexualidade I” que Foucault convidou a uma reflexão sobre a relação do poder-saber e afirma que análise de um certo tipo de saber sobre o sexo envolve necessariamente termos de poder. Nesta reflexão, o conceito de poder é explicitado:

Dizendo poder, não quero significar 'o poder', como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores do sujeição dos cidadãos em um estado determinado. Também não entendo poder como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos

efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (FOUCAULT, 2005a, p.88-89).

Para analisar o poder, Foucault recorre à genealogia que parte dos acontecimentos para explicar como se inventaram os pontos de apoio que produzem esses acontecimentos. Para Veiga-Neto (2004, p. 71), a genealogia de Foucault “não se propõe a fazer uma outra interpretação mas, sim, uma descrição da história das muitas interpretações que nos são contadas e que nos tem sido impostas. Com isso ela consegue desnaturalizar, descentralizar enunciados que são repetidos como se tivessem sidos descobertos e não invenções”. É um estudo histórico que não busca uma origem única e causal, mas que se baseia no estudo das multiplicidades e das lutas.

O interesse de Foucault é onde se manifesta o poder, ou seja, é o micropoder que se exerce e que se distribui de forma capilar. Importa realçar a positividade do poder, entendida como propriedade de produzir alguma coisa. Buscando elucidar como se deve entender a resistência na perspectiva foucaultiana, Veiga-Neto (2004) sustenta que o poder se dispõe em uma rede, na qual há pontos de resistência, minúsculos, transitórios e móveis. "A resistência ao poder não é a antítese do poder, não é o outro

do poder, mas é o outro numa relação de poder - e não de uma relação de poder"

(Veiga-Neto, 2004, p. 151-152).

Neste sentido as relações são sempre arriscadas, pois o poder não tem uma face visível, identificável, colocada de forma a ser possível localizá-lo e combatê-lo; isso revela um desconforto constante, uma posição insustentável. Questiona-se qual o sentido que se está dando ao poder, uma vez que para Foucault ele não se constitui em

algo que distorce, reprime e mistifica, mas sim que "produz e cria identidades e subjetividades".

Para Foucault, poder e saber não são idênticos19. Pensar que saber é poder

implica entender o poder como algo negativo, cujos males a verdade ou saber poderiam contra-atacar. A diferença colocada por Foucault reside na visão do poder não necessariamente repressivo, uma vez em que incita, induz, seduz, torna mais fácil ou mais difícil, amplia ou limita, torna mais provável ou menos provável (Foucault, 2005a). Não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, não existe saber que não pressuponha e não constitua relações de poder. Foucault, em vez de considerar que só há saber na ausência de relações de poder, considera que o poder produz saber.

Para Foucault, os saberes engendram-se e se organizam de modo que se atenda a uma "vontade de poder". A relação entre poder e saber se insere no que Foucault denomina de “natureza social da verdade”. Para Foucault (2005), o saber está diretamente relacionado com poder. Este não estaria cristalizado em um lugar, mas implicado nas microrrelações de dominação e resistência.

O poder e a verdade estão ligados de forma circular, a verdade existe numa relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade. Todos os discursos são regimes de verdade, assim o poder não apenas produz conhecimento como produz uma versão particular da verdade.

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e

nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1995, p.12 )

19 Veiga-Neto (2004) salienta que Foucault não discorda totalmente da tese que mais saberes conferem

maiores poderes, mas mostra que os saberes se constituem com base em uma vontade de poder e acabam funcionando como correias transmissoras do próprio poder a que servem.

Foucault chama de “política de verdade” o conhecimento que é produzido e transformado em “regime de verdade” através das relações de poder. Na nossa sociedade, a verdade está centrada na forma do discurso científico, incluindo o educacional, e nas instituições que produzem e normatizam este conhecimento como as universidades que formam professores nesses regimes de verdade.

O poder e saber estão diretamente implicados, uma vez que as relações de poder supõem e constituem um campo correlato de saber, o inverso também se dá, pois o saber supõe e constitui relações de poder.

Sendo assim, o saber pedagógico enquanto prática discursiva que envolve as relações de "poder-saber" precisa ser analisado considerando o sujeito (o que conhece), os objetos (os conhecidos) e a forma de conhecer (própria modalidade de conhecimento) não como situados em um campo livre do sistema de poder, mas com efeitos dessa relação e de suas transformações históricas.

1.2.3 Discurso pedagógico como prática recontextualizadora de discursos e de