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Fundamentação teórica

Parte 2: a compressão do tempo

Muitas pessoas relatam como sentem o tempo cronológico invadindo o espaço do tempo vivido, eventualmente, parecendo que o segundo é esmagado pelo primeiro. A relação com o tempo é sempre um critério a ser verificado em relação a como está a saúde psicológica de uma pessoa, conforme nos indica Van Den Berg (1981), em seu bastante prático livro intitulado “O Paciente Psiquiátrico – Esboço de Psicopatologia Fenomenológica”. Considerando isto, talvez muitas pessoas nunca tenham vivido uma situação tão adoecedora como a que estamos vivendo atualmente.

O ritmo acelerado do tempo se mostra presente e, como percebo, é con- cretizado pelas suas consequências através de dois aspectos. Primeiro, pelo seu aspecto ôntico, dos diversos afazeres pessoais acumulados que são negligencia- dos e relegados à segunda instância, uma vez que o trabalho da vida profissional

on-line mostra-se tão absorvente, preenchendo segundos de minutos, que antes

eram preenchidos por minutos de uma hora. O tempo se encurta, e um prazo dado para algo ser realizado, parece ser muito insuficiente, gerando atrasos, cobranças, confrontos e culpas. Segundo, pelo aspecto ontológico, se dá onde as cores da figura de nossa condição humana de “ser-em-direção-à-morte” (Sartre, 1997), mostram-se em sua crueza, contrastando hoje sob um fundo de matizes que intensificam a clareza desta condição. Em nenhum outro momento tivemos tão pouco acesso aos mecanismos de autoalienação, que nos aneste- siavam de nossa real condição humana. Paradoxalmente, como Sartre (2014) apresenta em seu texto “O Existencialismo é um humanismo”, essa queda da alienação que nos faz ver o horizonte real da morte, não mais como alheia, mas como a própria, nunca trouxe tanta reflexão e questionamentos como hoje.

Não é à toa que a primeira cidade chinesa foco da pandemia, Wuhan, teve um número recorde de divórcios após o retorno às condições mais pró- ximas do normal, enquanto que aqui no Brasil, no estado de São Paulo, em uma reportagem datada de vinte e três de julho deste ano, foi relatado que

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VOZES EM LETRAS:

Olhares da Gestalt – terapia para a situação de pandemia 191

a quantidade de divórcios aumentou quase vinte por cento, nos últimos três meses (Santiago & Reis, 2020).

É inevitável pensarmos que diante do isolamento social, que nos compele a incluirmos a reflexão sobre a própria vida de forma mais intensa, somado à – que sempre foi presente, mas agora, mais ainda – inexorabilidade da morte que pode atingir qualquer um (evidentemente, as estatísticas demons- tram que os aspectos sociais e econômicos depauperantes são relevantes para um lamentável aumento no aspecto da letalidade do contágio pelo vírus na população de baixa renda, porém, é importante ressaltar que quem possui melhores condições também não é imune), passemos a avaliar a qualidade da vida restante. Diante da morte, a pessoa se questiona se o que está sendo vivido é realmente o que se desejava viver. A morte nos traz um questiona- mento fundamental: “Estou feliz com o modo de vida que vivo?” E, muito lamentavelmente, muita gente está descobrindo que a resposta é “não”.

Penso que a noção do tempo nos convoca a uma relação direta com as escolhas. Em uma vida humana não há tempo de tudo se escolher, con- sequentemente, cada escolha é uma questão, pois nos traz a relação com o tempo que não teremos para realizar outras escolhas. E a constatação desta condição humana também amplia a procura pelo trabalho da psicoterapia, pois nosso trabalho é um dos que mais diretamente tem recursos para lidar com o sofrimento da alma humana.

Tais argumentos, já muito debatidos, se encontram com a inédita situação do isolamento social e criam um potencial muito variável em relação ao modo de lidar com o tempo. Pois, tanto encontramos pessoas que, em um extremo, estão amando a situação presente, seja pelo tempo que ganharam, pela opor- tunidade de ampliar o convívio com as pessoas que moram, de estudar, de ler etc., como em um extremo oposto, encontramos pessoas que estão “surtando”, vivendo brigas intermináveis com seus conviventes, vivendo privação sexual, não vendo a hora do isolamento social terminar para saírem de casa.

Na prática clínica, também aqui é importante avaliar como o cliente está lidando com o tempo. Essa avaliação pode ser um simples convite, sujeito à aceitação do cliente, de uma checagem, por exemplo, assim: “Como está sendo sua relação com o tempo?”

Igualmente importante é avaliar como eu, terapeuta, estou lidando com o tempo. Não só perceber que é necessário um tempo entre cada atendimento, como alguns minutos entre se despedir e “fechar a tela” e “abrir uma nova” com outro cliente. Porém, mais profundamente, sabendo, pelo paradigma que sustenta a GT, que nos tornamos quem somos em um sentido tempora e, desta forma, como me vejo lidando com o sentido de um tempo encurtado? Como me vejo vivendo uma situação que ameaça minha saúde e que pode findar

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meu tempo de vida e, mesmo assim, encontrar vitalidade para estar junto de outras pessoas que buscam o apoio terapêutico? Enfim, quem eu venho sendo?

Entendo que um questionamento desse tipo pode ser possivelmente pesado, contudo, ele também aponta para a busca de suprir uma necessidade. Entendo que nunca foi tão necessário nos sentirmos ligados a quem amamos. Assim, não é um bom momento para um terapeuta estar só. Buscar os laços afetivos, laços amorosos, de família, de outros colegas profissionais, mesmo que virtualmente, pode ser mais do que um alento, pode ser a manutenção de uma saúde mental. Não seria possível prever como a frase “ninguém larga a mão de ninguém” (movimento surgido em 2018 após o resultado lamentável da eleição presidencial) poderia ser tão profética...

Parte 3: A sintaxe do atendimento e como incluir