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Considerações para continuidades

As experiências clínicas contemporâneas têm apresentado situações emble- máticas para a Gestalt-terapia, sistema psicoterápico que ainda se ancora em des- crições pretensamente universalistas das experiências vivenciais humanas. Uma destas situações são as relações raciais, marcador existencial que estrutura toda a história passada e presente do Brasil como nação e que institucionaliza ideologias que estabelecem desigualdades de vida para pessoas negras e indígenas. Sendo o racismo sinônimo de morte, as formas concretas e simbólicas assumidas pelas relações raciais brasileiras se configuram em práticas de gestão de vida para pessoas brancas e de morte para pessoas negras e indígenas. O silenciamento e a negação da questão racial, tradicionalmente presentes nas teorizações e prá- ticas da Psicologia e da Gestalt-terapia tem sido questionados como forma de epistemicídio, de forma a se criar enfrentamentos cada vez mais consistentes.

As ausências das existências negras e indígenas são mantidas especifi- camente nos tempos-lugares de falta de cuidado e, mais, no desconhecimento – por vezes deliberado – das especificidades de vidas destes grupos popula- cionais, como corpos-existências indesejáveis. O sistema violento não duvida de que aquele corpo, sub-existente, é negro ou indígena, ainda que negue a si próprio neste marcador existencial que é a raça. A manutenção das ausências nas teorizações oficiais possibilita constituições deturpadas de si, uma vez que

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o espelho oferecido é o branco: na estética, na ética, nas formas de crenças, nas organizações de formas de vida, nas teorizações científicas, nas ideologias, nos afetos amorosos e quem pode vivenciá-los. A sociedade brasileira se estrutura a partir destas perspectivas, apresentando um modelo branco como pretensamente universal. Por este motivo,

A população negra está mais ‘ajustada’ nas falácias do racismo à brasileira do que criativamente potencializada para assumir sua vida e protagonismo para ações transformadoras. Assim, o Gestalt-terapeuta será aquele que auxiliará o paciente na identificação e apropriação de seu ajustamento criativo, de se perceber potente e cheio de possibilidades para criar o que lhe for melhor para ser vivenciado (Fonseca, 2020, p. 96).

Fazer recorte racial, como muito se tem dito em diferentes espaços, é insuficiente para combater, modificar ou mesmo transgredir esta norma- tização estrutural das relações sociais. O recorte informa a existência das diferenças, mas não possibilita uma ação efetiva, que envolve a construção da dignidade existencial roubada pelo sistema colonial e assim mantida his- toricamente até hoje. Agir, segundo um movimento ético-político, significa reconhecer possibilidades existenciais diferentes da branca colonial, mas ainda partindo do lugar branco pretensamente universal para apontar os corpos negros e indígenas como existências dissidentes do branco-modelo. É possível indicar as situações de violência do racismo, partindo-se de uma narração histórica que localiza a existência humana a partir da colonização europeia em África e nas Américas. Nesta concepção, os povos colonizados não possuem voz e, portanto, não podem narrar suas histórias fora da ótica colonial sem passar por apagamentos e descrenças quanto a suas narrativas e formas próprias de construção de vida. Suas histórias e possibilidades existenciais continuam sendo contadas a partir do branco como referência, para contrapor-se a ele.

Realizar recorte racial, então, é se manter nos moldes da colonização. E isto está muito longe de cuidado integral de pessoas negras e indígenas, uma vez que esta postura só dá conta de compreender os aspectos do racismo na construção de sofrimentos ou das dificuldades relacionais de pessoas negras e indígenas. A prática psicológica nesta concepção possui dificuldades de ir além da dor, uma vez que é aí que se sustenta o seu fazer. Lhe faltam instru- mentais, metodologias, terias, técnicas que possibilitem um re-centramento criativo – saudável – de pessoas negras e indígenas, visto que os aportes epistemológicos de partida continuam sendo os brancos. É impossível uma mudança efetiva de estrutura, neste sentido.

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VOZES EM LETRAS:

Olhares da Gestalt – terapia para a situação de pandemia 135

Para mudar a chave desta realidade é importante se fazer um trajeto nar- rativo em que as histórias de povos negros e indígenas possam ser contadas a partir das experiências próprias destes povos, sendo repensadas e subver- tidas a partir de cosmosentidos e epistemologias específicos. Isto envolve re-construções de campo existencial centradas em experiências africanas do continente e da diáspora e de povos indígenas de todo o continente americano, o que já vem ocorrendo de forma sistemática, mas ainda negligenciada por quem detém o poder de definir o que é conhecimento científico e o que não é. Para Teixeira (2019), “só o movimento que coloca as normas na instabilidade provoca o alargamento de nossas perspectivas. Apenas no campo da tensão é que conseguimos nos colocar como seres relacionais” (p. 18). E, para produzir estes tensionamentos, é preciso ação ética, política e afetiva engajada em uma realidade que ainda naturaliza a morte de corpos negros e indígenas utilizando técnicas sofisticadas de produção de terror em sub-vida.

Para pessoas negras e indígenas, afetividade é corpo, incluindo o corpo violentado, ferido. Reaprender a vivenciá-lo e senti-lo (awareness sensorial), inclusive historicamente (awareness reflexiva) para ressignificar e modificar, com autonomia e agência (autossuporte), as formas possíveis de ser e estar no mundo (awareness deliberada). Este processo explicita que precisamos de novas formas de compreender e possibilitar o sentir, o infletir, o agir, o agir e o estar com. Os modelos de sociedade e civilização que temos não dão mais conta das existências pulverizadas e pulsantes do momento que vivemos, e os saberes pretos ancestrais e indígenas possibilitam as pluriexistências como método de reconstrução de vida, com respeito à existência, capacidades, habi- lidades e competências plurais e diversas.

Para pensar o manejo clínico em perspectiva preta e indígena, é impor- tante considerar algumas características do campo existencial, como: territo- rialidades, experiências corporais e corporificadas, histórias transgeracionais, referências pessoais, ética de vida, sempre embasadas em movimentos, tec- nologias e estratégias próprias que cultivem e aprimorem o legado existencial recebido e que será passado adiante.

Construir autorreferências, com narrativas de existências negro-africanas e indígenas, tem provocado as fragilidades brancas, as quais se manifestam na forma dos tradicionais ataques que procuram manter na invisibilização, negação e invalidação de nossas existências. Em vez de se questionar sobre o seu lugar privilegiado, as pessoas brancas tem tentado nos ocupar – como estratégia antiga e refinada – com defensivas que nos paralisam em explicações retóricas, mantendo-nos em posições iniciais da discussão, que avança a passos largos e cada vez mais profundos entre grupos específicos de pessoas negras e indígenas. Nossos próprios processos de emancipação e autossuporte tem dificuldade de se aprimorar e aprofundar quando embarcamos nesta estratégia

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branca racista. Entretanto, já compreendemos que nossa “cura”, individual e coletiva, só será possível se continuarmos no caminho de autodescobertas, auto inscrições e autodeterminação. Não aceitamos mais nomeações vindas de quem deseja manter-nos em uma lógica colonial. Nós temos agência e nos apropriamos dela. É o que já nos permite construir pequenas e diversas estratégias de autocuidado que possibilitam continuar nossas vidas, com a dignidade que a opressão branca nos nega e tenta destruir.

Isto é uma forma possível de apresentação do que Bento chamou de pacto narcísico da branquitude (2002), e pode ser entendido, grosso modo, como formas habituais de agência racista, formadas e fortalecidas no campo viven- cial mais imediato (inter relacional e intersubjetivo). Trata-se de uma força, histórica e ideologicamente construída e mantida por instituições, por poderes político-econômicos e por indivíduos brancos que incidem concretamente nas relações, enquanto awareness sensorial e deliberada, mas nem sempre reflexiva.

A psicologia nos moldes ocidentais-coloniais quer que nos tornemos um “nós mesmos” caracterizado pela colonização que nos nega existencialmente. Nossa existência envolve tudo o que o ocidente rejeita: corporeidade, espiri- tualidade, coletividade, ancestralidade, ludicidade, oralidade, energia vital. Esta é nossa agência. E esta negação ocorre de formas muito concretas nos espaços técnicos da Psicologia e da própria Gestalt-terapia. Quem fala, pro- voca e produz sobre racismo são sempre pessoas negras, apesar de o racismo ser uma questão social reconhecida, envolvendo as vidas de todas as pessoas. Em diferentes cursos e institutos de formação teórico-técnica-vivencial, não há discussões consistentes sobre relações raciais, muito menos pessoas negras como docentes ou técnicas, o que pode anunciar tanto um descaso real com relação a um marcador estruturante de existências brasileiras, quanto uma novidade tardia na entrada desta discussão de forma consistente no âmbito da Gestalt-terapia. O período atual trouxe como figura estas discussões e a responsabilidade ética e política da Gestalt-terapia que tanto se orgulha de citar – sem se implicar de fato com – seu passado histórico transgressor. Mas responsabilidade política que se pretende, de fato, transgressora, inte- gra ação concreta cotidiana em seus posicionamentos. O tempo presente irá mostrar se, de fato, serão colocadas em prática tantas reflexões, bem denominadas de potentes, que se realizam por meio remoto neste período atípico no século XXI.

Referências

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VOZES EM LETRAS:

Olhares da Gestalt – terapia para a situação de pandemia 137

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10. WU WEI

E AMBIENTALIDADES AFETIVAS: