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AS DIMENSÕES DO SOFRIMENTO E A RECORDAÇÃO DO HUMANO

Conclusão em travessias

12. AS DIMENSÕES DO SOFRIMENTO E A RECORDAÇÃO DO HUMANO

Beatriz Helena Paranhos Cardella A árvore cai com grande ruído, mas não se escuta a floresta que cresce

Provérbio do Zaire

Resumo

Neste capítulo abordo diferentes dimensões do sofrimento e a força de vida presente na experiência de sofrer, ou seja, o paradoxo que é o ser humano. Assinalo também a importância do acolhimento e do reconheci- mento da sabedoria sobre o viver revelada pelo sofrimento, para o resgate do processo de crescimento na Psicoterapia; enfatizo o trabalho clínico como possibilidade de recordação dos fundamentos do Humano, especialmente em tempos de Pandemia.

Abstract

In this chapter I approach different dimensions of suffering and the force (power) of life present in the suffering experience, that is, the human being paradox. I also emphasize the importance of hospitality and the acknow- ledgement of the wisdom of living revealed by the suffering, for the rescue of the growth process in the Psychotherapy. I stress the clinical work as a possibility of remembrance of the Human fundamentals, particularly in times of the Pandemic.

Resumen

En este capítulo trato diferentes dimensiones del sufrimiento y la fuerza de vida presente en la experiencia del sufrir, o sea, lo paradojo que es el ser humano. Marcando tambien la importancia del recebimiento y del recono- cimiento de la sabeduria sobre el vivir revelada por el sufrimiento para el rescate del processo de crescimiento en la Psicoterapia. Enfatizo el trabajo clinico como possibilidad de recuerdos de los fundamentos del Humano, especialmente en tiempos de Pandemia.

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Acolher o sofrimento humano e a força de vida presente na experiência de sofrer é vocação do Psicoterapeuta.

Dedicamos nossas vidas a compreender, sustentar e ajudar a pessoa a atravessar o sofrimento, criando uma vida que valha a pena ser vivida, a despeito e diante do sofrimento, que possui muitos rostos e que transcende nossa compreensão.

Este trabalho tem por objetivo refletir a respeito de algumas dimen- sões do sofrimento, facetas que nos ajudam a nos recordar os vínculos com nossa humanidade.

Vivemos um tempo de tragédias, perdas, lutos, incertezas e apreensão. A realidade da Pandemia que assola o planeta, o risco de morte, as experiências da quarentena, do isolamento social, as notícias atordoantes, a impossibilidade de vislumbrarmos o retorno a um cotidiano estável, se configuram num campo de ameaça à sobrevivência física e psíquica, o que gera e agrava o sofrimento pessoal e compartilhado.

Numa época de tantas tensões e desafios, revelamos também, uma imensa força, a força da vida, da dignidade da luta humana expressa em cada semblante.

Para tratar do ser humano e de seu sofrimento, necessitamos da lingua- gem do Paradoxo, a linguagem poética, metafórica, que revela e abriga o Mistério ao mesmo tempo, que transcende as teorizações, as nomeações e as conceituações.

A perspectiva do Paradoxo é fundamental na Contemporaneidade, carac- terizada pelo esquecimento do humano, e será através desta perspectiva que, a seguir, abordarei as dimensões do sofrimento.

Diz o teólogo Leloup (2003), que viver é encontrar o absurdo no coração da graça e a graça no coração do absurdo. O escritor Rubem Alves (2008) afirma que ostra feliz não faz pérola. O poeta Manoel de Barros (2013) reve- lou que tem mais presença nele o que lhe falta. E Jesus de Nazaré, na Carta de Paulo aos Coríntios (2, 12:9) afirmou que é na fragilidade que se revela toda sua força.

Observamos nessas passagens a revelação de uma verdade ontológica: há uma força no sofrer, quando o ser humano é capaz de sustentar, suportar e atravessar as provações da existência.

Todos nós revelamos essa força, por exemplo, na paciência de lutar por nos- sas vidas há seis meses em quarentena e distanciamento social. A vida expressa aqui sua própria força, resistindo a si mesma e é preciso, corajosamente suportá-la.

O filósofo Vergely (2001, p. 35) pergunta “Não é preciso ter muito amor pela vida para chorar o que a mortifica?”

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VOZES EM LETRAS:

Olhares da Gestalt – terapia para a situação de pandemia 177

O autor sugere que há uma potência na fragilidade, na consciência de nossa precariedade, no amor à vida, no sofrimento de ser humano. Vale lem- brar que essa afirmação nada tem a ver com apologia do sofrimento, maso- quismo, ou com se comprazer em sofrer.

Essa apropriação abre um campo de possibilidades de ressignificação, de restauração do processo de crescimento e de resgate da fluidez do processo de singularização e humanização. Nessa perspectiva, é fundamental que ajude- mos nossos pacientes a se apropriarem do paradoxo que é o seu sofrimento. Para tanto o terapeuta precisa alcançar a compreensão ontológica do paciente, recordá-lo como ser humano, ajudando-o a sustentar-se na condição humana, restaurando o vir-a-ser, como nos lembra Refheld (2009). Restaurar o vir-a-ser é abrir a esperança, ajudando o paciente a alcançar a serenidade.

A compreensão ontológica implica reconhecer o ser humano como Paradoxo:

-Habita fronteiras: eu-outro, finito-infinito, luz-sombra, Céu-Terra. -É um peregrino que se enraíza.

-É singularidade que se revela em comunidade. -É um eu que se constitui em presença de um outro. -É potencialidade que se realiza.

-É história e porvir que se atualizam. -É verticalidade que se horizontaliza. -É mistério que se encarna.

-Recebe a vida como oferta e precisa criá-la. -Está condenado à liberdade.

-É ser mortal que anseia a eternidade. -É ser precário capaz de amar. -É órfão disposto a cuidar. -É exilado que se faz lar. -É solidão que carrega multidão. -É silêncio habitado por vozes. -É sofrimento que porta sabedoria. -É lágrima que se faz poesia.

-É memória do futuro que presentifica ancestrais. -É vazio que abriga a plenitude.

Mas infelizmente, o ser humano pode tornar-se também desumano.

Além disso, vivemos um tempo no qual muitas pessoas sofrem pela perda da memória do humano, como assinala Safra (2006), que precisa ser urgentemente recuperada.

Vivemos a Tirania da Felicidade, a impossibilidade de sofrer, envelhecer, adoecer e morrer. É característica da contemporaneidade a negação da dimen- são trágica da existência, revelada agora por esta Pandemia. Muitos estão esquecidos do que é ser gente. Inclusive alguns pacientes buscam a terapia

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para alcançarem a possibilidade de sofrer, de humanizar-se. Precisamos voltar para casa e nos recordar que somos humanos (Cardella, 2017).

Ao longo de mais de trinta anos de trabalho clínico percebi que cada pes- soa pode nos ensinar sobre a condição humana, graças ao que viveu e graças ao que sofreu. Nossos pacientes são grandes mestres sobre o viver e o sofrer.

Se tudo corre bem, criam onde foram feridos. Transformam machucados em preciosidades. Ultrapassam a questão da sobrevivência e criam um sentido para suas vidas, revelando sua capacidade criativa e a Esperança.

A falta sofrida em sua biografia possibilita a busca, os horizontes; a ausência que os visita os move em direção ao que lhes é fundamental. No seu vazio guardam o pressentimento de si mesmos e a dor de sua origem se transforma no anseio do fim: seu sonho último.

A Gestalt aberta busca fechamento. Tornam seu percurso existencial uma criação, uma resposta à questão que encarnaram ao adentrarem ao mundo humano.

O ser humano, como assinala Safra (2006) é questão e a vida uma res- posta singular a ela. Cada pessoa é a singularização da história da Humani- dade; é realização da Liberdade, da Criatividade e da Responsabilidade.

Como afirmam Perls, Hefferline e Goodman (1997), o ser humano é o artista da vida, e a existência é a obra de ser si mesmo, que sempre se cons- titui em presença do outro.

Por isso a relação terapêutica precisa se configurar morada humana, hospitalidade ao Mistério que é o ser humano, reconhecendo seu sofrimento sem reduzi-lo a ele.

O terapeuta precisa então, reconhecer as dimensões singulares e uni- versais da pessoa, tornando-se comunidade de destino, o nós existencial, ao aprender não apenas sobre ela, mas com ela. E os pacientes precisam saber o que ensinam a seus terapeutas.

Como eles os transformam, como imprimem uma marca em sua interioridade. Lembremos que quando há rosto humano diante do sofrimento, ele pode ser sustentado ou atravessado. Diante do outro o sofrimento é diálogo e pode ter um fim; torna-se passagem, é vir-a-ser.

Importante também lembrar que sofrimento é diferente de dor. Segundo Birman (2012), o sofrimento é dialógico, é apelo ao outro, anseio do Encontro. Sofrer implica destinar o vivido e colocá-lo sob domínio da criatividade. A dor é monológica, possui qualidades agônicas e revela o fechamento da pessoa sobre si mesma; é solidão absoluta, sem rosto humano, infinito infernal, mal sem fim.

Na Clínica trabalhamos, muitas vezes, para transformar a dor em sofrimento. Ao longo do processo, o terapeuta trabalha as questões psíquicas relacio- nadas ao sofrimento, sua dimensão ôntica: a biografia e a situação concreta da vida da pessoa.

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VOZES EM LETRAS:

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Trabalhamos as situações inacabadas, as cristalizações, as defesas, as disfunções de contato, os ajustamentos criativos funcionais e disfuncionais. Trabalhamos a ampliação da awareness, o resgate do fluxo do processo de crescimento, as polaridades alienadas, os conflitos. Acolhemos os vazios esté- reis e também as potencialidades, os recursos, os vazios férteis.

Para ofertar rosto humano ao sofrimento é necessário também que o terapeuta ajude seu paciente a reconhecer quatro dimensões fundamentais, facetas ontológicas do sofrimento, que apresentarei a seguir: a Sabedoria, o Apelo ao outro, a Vocação e a Esperança.

Ao reconhecer estas dimensões o terapeuta auxiliará seu paciente a recor- dar-se de si mesmo como ser humano.

A Sabedoria difere de erudição ou do conhecimento. Refere-se a colheita de um saber que decorre das experiências vividas e sofridas por uma pessoa. Nessa perspectiva o sofrimento comparece como uma revelação, como ver- dade sobre a condição humana.

O sofrimento se refere às necessidades fundamentais da dignidade, portanto uma forma especial de sensibilidade para a verdade do viver (Refheld, 2009), e não apenas uma interpretação negativa da vida.

Há pacientes que nos ensinam sobre a solidão, a justiça, a perda, a fini- tude, a fé, a coragem, a solidariedade etc. Cada pessoa conhece facetas da condição humana graças ao que sofreu e este saber é uma potência. A força revelada pela fragilidade.

Quando o paciente se apropria de sua Sabedoria a experiência pode ser

ressignificada. A ostra reconhece a pérola. A pessoa amplia e aprofunda o sentido

de si e destina o sofrimento, ou seja, dá a ele um sentido, restaurando o vir-a-ser. Diz a poeta Adélia Prado: “Te explico onde arranjei essa Beleza toda. Foi no deserto” (2013, p. 9).

Adélia se refere a vocação de poeta, nascida de sua aridez, de seu sofri- mento. Nesse sentido o sofrimento é o chamado da existência, uma convo- cação para determinadas questões. É preciso lembrar que a vocação não tem necessariamente relação com profissão.

Isso significa que a presença de uma ausência na vida de uma pessoa, a falta que experimentou em sua biografia, se faz busca, se torna vocação. É a dor

e a delícia de ser o que se é, como canta Caetano Veloso. Como por exemplo:

O abandono pode vocacionar alguém para o cuidado: a exclusão para o pertencimento; a solidão para a comunhão; o exílio para a hospitalidade etc.

O próprio Perls (1979), foi um desenraizado que se tornou raiz. Dizia que era um cigano solitário lamentando não pertencer. Caminhou pelo mundo em busca de um lar espiritual. Seu sonho último era criar uma comunidade capaz de produzir gente real. E assim foi. Aqui estamos nós, décadas depois de sua morte. Somos seus herdeiros. Graças a força presente em seu sofrimento pessoal

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de exclusão, exílio, solidão, desenraizamento, criou esta comunidade atualizada, que atravessou o espaço e o tempo. Sua obra transcendeu sua biografia, tamanha força de sua vocação para tornar-se raiz, para ser comunidade e hospitalidade. Sua vocação nasceu de seu sofrimento; transformou vazio estéril em vazio fértil.

Nessa perspectiva precisamos trabalhar não apenas com o que nosso paciente quer da vida, mas com que a vida quer desta pessoa. Qual a convoca- ção que a existência lhe faz, para que ela é chamada. A vida é uma co-criação. Escolhemos e somos escolhidos.

O sofrimento é também, um Apelo ao outro, é dialógico.

A Gestalt-terapia é uma abordagem relacional, o que significa que o sofrimento é fenômeno do campo, brota em relação a alteridade e é, parado- xalmente, pela alteridade que pode ser sustentado ou atravessado.

Para Francessetti (2018), o sofrimento acontece como ausência do outro na fronteira de contato e se atualiza na relação terapêutica.

O terapeuta precisa então se fazer uma presença diante da ausência, reconhecendo em si a falta experimentada por seu paciente, respondendo o apelo revelado por seu sofrimento. O autor nos recorda que a presença diante da ausência não é mais uma ausência.

Assim, o sofrimento se revela anseio do Encontro e se o terapeuta se coloca disponível na relação, oferece companhia, oferece rosto humano ao sofrimento. Se há outro, o sofrimento pode ter um fim. É Esperança.

Diz Perls (1979, p. 11): “Já basta de caos e de sujeira. Em vez da confusão sentida, Que se forme uma Gestalt inteira Na conclusão da minha vida.”

Nessa passagem de sua autobiografia, Perls revela a Esperança.

Sempre me perguntei o que faz um paciente retornar, sessão após ses- são, por anos, por décadas. Mesmo diante de minha incompreensão, limites, ignorância, e de meu próprio sofrimento. A despeito de seu desespero e de nossa miséria humana compartilhada, o paciente continua lá. E nós, tera- peutas, também.

Permanecemos, segundo minha compreensão, graças à Esperança. O filósofo Pondé (2018) recorda o Mito de Prometeu para assinalar a Esperança. Segundo o Mito, o homem recebe como punição dos deuses, a abertura da caixa de Pandora. Os males se derramam sobre o mundo e dentre eles está a Esperança.

O autor diz que os deuses sempre se surpreendem com a capacidade humana de sentir Esperança, mesmo em meio à fragilidade e à carência

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VOZES EM LETRAS:

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da existência. Diz ele: “A esperança no coração de quem sabe que não há nenhuma esperança, pode ser a maior das virtudes espirituais” (p. 188).

Assim, recordamos que não é o sofrimento que dá sentido à vida. Como assinala o filósofo Vergely (2001), é a vida que dá sentido à vida e eventual- mente ao sofrimento.

Diz o Riobaldo em Grande Sertão: veredas (Rosa, 2001), que viver é muito perigoso e que a vida quer da gente coragem. Para encontrar o absurdo no coração da graça, e a graça no coração do absurdo.

Meu anseio é que como Camus, encontremos no inverno desta Pandemia, o nosso verão invencível. Que a força de viver, a despeito do absurdo, tenha a última palavra, mesmo quando precisarmos da força de morrer.

Somos humanos: absurdo e graça, sofrimento e sabedoria, anseio do encontro, mistério encarnado; surpreendentes até mesmo para os deuses, que no fundo, devem sorrir ao contemplarem nossa humilde Esperança.

Talvez, ao término da quarentena, ao fim da Pandemia, estejamos feridos, enlutados e necessitados de cuidado. Mas que estejamos lúcidos, sábios e amoro- sos, mais cônscios da Humanidade abrigada em nosso coração, ainda que partido.

Referências

Alves, R. (2008). Ostra feliz não faz pérola. Planeta do Brasil. Barros, M. (2013). Poesia completa. LeYa.

Bíblia Sagrada (1971). Paulinas.

Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Civilização Brasileira. Cardella, B. (2017). De volta para casa. Foca,

Francesetti, G. (2018). “Voce chora eu sinto dor”. In Robine, J. (org.). Self:

uma polifonia de gestalt-terapeutas contemporâneos. Escuta.

Leloup, J. (2003). O absurdo e a graça. Verus. Perls, F. (1979). Escarafunchando Fritz. Summus.

Perls, F., Hefferline, R. & Godmann, P. (1997). Gestalt-terapia. Summus. Prado, A. (1991). Poesia Reunida. Record.

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Pondé, L. (2018). Espiritualidade para corajosos. Planeta do Brasil.

Refheld, A. (2009). “O que diferencia uma abordagem fenomenológica-exis- tencial das demais?” In Pinto, E. (Org.). Encontros. IGSP.

Rosa, G. (2001). Grande sertão: veredas. Nova Fronteira. Safra, G. (2006). Hermenêutica na situação clínica. Sobornost. Vergely, B. (2001). O sofrimento. Edusc.

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13. O AQUI-ESTENDIDO-E-AGORA