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Clínica gestáltica, relações raciais e transgressões ético-políticas

Gestalt aberta que mantém ausências

9.2. Clínica gestáltica, relações raciais e transgressões ético-políticas

O processo psicoterapêutico se estrutura como um campo vivencial espe- cífico, sendo atravessado por questões sócio-históricas, políticas, ideológicas, jurídicas e econômicas mais amplas. As violências ideológicas e instituciona- lizadas da sociedade racializada são experienciadas de forma mais intensa por

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pessoas negras e indígenas – como função ID – que as leva para o setting sob diferentes formas de manifestação, ainda que não seja possível nomeá-las, a princípio. Sendo o contato nossa realidade primordial, estas experiências que emergem no campo que se configura no setting terapêutico terão qualidade na acolhida e intervenção segundo a postura assumida por psicoterapeutas e a sua disponibilidade para o encontro.

Perls, Hefferline e Goodman afirmam que o modelo terapêutico da Ges- talt-terapia “é baseado em uma teoria de campo – o self considerado como um processo temporal, o processo de contato como nossa ‘unidade de refe- rência’ básica” (1997, p. 14). Essa afirmação desloca nosso ponto de vista de um paradigma individualista, que tece considerações teóricas a partir do indivíduo, para um paradigma de campo, formado pelo organismo e seu meio” (Bandin, 2018, p. 14). Sendo assim, o “entre” é o lugar existencial em que nossas ações interventivas são possíveis. E nossa condição existencial é pos- sibilitada por um corpo que temos e somos. Para Alvim,

é a condição de ser (como) corpo que me dá a possibilidade de encontrar o outro – que também é (como) corpo – e considerá-lo um igual. Que, entretanto, não é idêntico e pode me surpreender com sua diferença. O racionalismo da modernidade europeia que encobriu o outro também ten- tou apagar o corpo, transformando os sujeitos em homens-máquina, outra forma de dominação e tentativa de impedir o movimento de travessia de fronteiras (Alvim, 2019, p. 889).

Teixeira (2019, p. 52) diz que a presença do outro é o que me faz experi- mentar a diferença e que “o comum pressupõe […] a manifestação aguda das diferenças. Nesse sentido, só pode haver o horizonte do comum se as catego- rias de outridade estiverem delineadas. O ambiente comum é marcado pelas diferenças que se esforçam para coabitar”. A clínica gestáltica possível a partir deste tipo de compreensão é aquela que se permite realizar na fronteira que reconhece e valida a alteridade enquanto possibilidade “do reconhecimento de si pelo reconhecimento mútuo”. O trabalho clínico, então, torna possível visibilizar o que se esconde – e é propositalmente escondido – pelas estruturas concretas que criam e mantém as violências provocadoras de desigualdades (Alvim, 2019, p. 893) provocadoras de modelos de percepção construídos para distorcer as formas como apreendemos existências que nos causam estranhezas quando colocadas fora de seu lugar social naturalizado (Teixeira, 2019). Essa desordem – ou transgressão – provocada por estas existências dissidentes provocam ruídos e desconfortos que tem comparecido com mais frequência e força nos espaços tradicionais das clínicas psicológicas, exigindo recriações que tensionam e, por vezes, implodem a alienação intelectual criada pela

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VOZES EM LETRAS:

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lógica colonial. Para Laura Perls, “o contato supõe reconhecer o ‘outro’, supõe estar consciente de que existem diferenças” (Laura Perls, 1994, p. 87). E esta é uma premissa fundamental do encontro dialógico.

Fanon diz que a alienação foi criada pela sociedade burguesa com fins de manter um poder criado a partir da dominação. Ele diz que as sociedades burguesas são

todas as que se esclerosam em formas determinadas, proibindo qualquer evolução, qualquer marcha adiante, qualquer progresso, qualquer desco- berta. Chamo de sociedade burguesa uma sociedade fechada, onde não é bom viver, onde o ar é pútrido, as ideias e as pessoas em putrefação. E creio que um homem (sic) que toma posição contra esta morte é, em certo sentido, um revolucionário (Fanon, 2008, p. 186).

Rebelar-se contra o sistema colonial escravista é sinônimo de construção de vida a partir de valores que permitam a dignidade humana a estas existên- cias cuja negação e alienação de si tem dado o tom desde o encontro forçado e violento com a podridão colonial. Isto significa, entre outras coisas, construir formas de autonarrativas que permitam demarcar existências com potências de ação segundo referências próprias de povos silenciados e negligenciados. Esta negação epistemicida tem proibido às pessoas negras e indígenas saberem de si fora do espelhamento branco, o que favorece as continuidades das violências coloniais. Segundo Fanon, “para um ser que adquiriu a consciência de si e e de seu corpo, que chega à dialética do sujeito e do objeto, o corpo não é mais a causa da estrutura da consciência, tornou-se objeto da consciência” (2008, p. 186). E esta recuperação de si a partir de uma consciência de corpo que se torna objeto-próprio passa a negar narrativas enclausuradoras que não mais lhe servem.

Por outro lado, há reinvenções constantes dos sistemas de dominação, que continuam negando a possibilidade de uma fala-narrativa preta que se opo- nha à verdade pretensamente universal e inquestionável branca. Quando esta fala-narrativa negra ousa se fazer concreta e potente, é logo invalidada com o uso de expressões e argumentos psicopatologizantes ou desumanizantes, que impedem que ecoem ou avancem as denúncias de violências. A recorrência deste processo enfraquece algumas pessoas negras, enquanto outras – a maioria ainda sob dominação sobretudo ideológica – se mantém inertes. A subjugação – ou aprisionamento em um corpo mistificado pelo olhar e percepções brancas – se mantém e se fortalece.

Os desafios para uma clínica gestáltica que se pretende ética e política estão postos. Uma chave conceitual da Gestalt-terapia – o sistema self – pode indicar possibilidades interventivas que não neguem ou mascarem as características próprias deste campo racial que se configura. Bandin (2018, p. 17) descreve o

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self “como um processo temporal, flexível que sintetiza a experiência, confere significados a nossas vidas”. Este processo se configura no presente transiente a partir “do ‘id da situação’, (a partir de onde) se desdobra, até dar forma a uma figura em um ‘nós’ para resultar, posteriormente, na individualização e indivi- dualidade com a assimilação da experiência compartilhada” (Bandin, 2018, p. 17). Em uma clínica que nega a violência do racismo, a dificuldade ou a nega- ção deliberada de contato de profissionais com as discussões e produções sobre relações raciais, com frequência, “empobrece, silencia, minimiza e prolonga a violência específica que a população negra vivencia neste país” (Fonseca, 2020, p. 92), dificultando a formação de uma figura consistente por parte de clientes.

É importante não esquecer que ‘a energia implicada na formação da figura provém dos dois polos do campo: organismo e ambiente’. Isto requer um esclarecimento: no contexto clínico, terapeuta e paciente são cocriadores da experiência e sua implicação na formação da figura é, por assim dizer, de 50% cada; o que me leva a afirmar que a Gestalt-terapia é uma terapia baseada em uma relação igualitária (horizontal) em um encontro simétrico – não igual – obviamente com funções distintas [...] Paciente e terapeuta são funções diferentes do mesmo campo, o que implica atividades distintas, mas ambos são elementos do mesmo campo que cocriam (Bandin, 2018, p. 18).

A simetria das possibilidades de contato referida por Bandin se torna difícil ou mesmo impossível quando consideramos a estrutura racista que apaga as experiências típicas das existências de pessoas negras e indígenas. Se “todo ato contatante é um todo de awareness, resposta motora e senti- mento”, como afirmaram Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 68), a postura de negação clínica do racismo como fenômeno violento referido por quem o sofre impede o processo de awareness. A construção de autosuporte por parte de pessoas negras e indígenas fica prejudicada, por mais boa vontade que terapeutas despreparados tenham para lidar com situações de violência racial. As experiências de fundo, enfraquecidas, impossibilitam contatar no presente a partir do suporte, o qual “procede de tudo o que se assimilou e integrou” (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 87).

Na Gestalt-terapia, compreende-se que o terapeuta só pode levar seu cliente onde ele mesmo esteve antes. Ter conhecimento, consciência e permitir-se reflexões a respeito da especificidade das relações raciais no Brasil são essenciais aos profissionais para que eles tenham informações norteadoras (sic) sobre como compreender a dinâmica de seus clientes, bem como auxiliá-los na identificação e (re)inauguração de recursos para lidar com a ferida ainda não cicatrizada (Fonseca, 2020, p. 93).

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VOZES EM LETRAS:

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Que experiências clínicas permitem desenvolver o autossuporte em pessoas negras, a partir das possibilidades potenciais de contato, ainda que compareçam como estratégias não saudáveis? De que forma é significado o corpo vivenciado como possibilidade de ampliar a consciência corporal neste campo, que produz sobretudo violências de morte contra corpos negros e indígenas? Como este corpo racializado se articula nos diferentes campos que se formam em seus episódios cotidianos de contato?

Algumas pistas para pensar estas questões podem vir de uma considera- ção da ética como um desvio, entendida a partir das reflexões de Teixeira de que “a ética deve ser o lugar do deslocamento, do deslize e da afetação. Só posso falar de eticidade, por exemplo, se o outro deixa de ser, para mim, um objeto e me provoca enquanto sujeito” (Teixeira, 2019, p. 91). Para Teixeira, uma ética que se pretenda desviante provoca “um chamado duplo: escutar a voz e, mais, assumir um compromisso político de ressignificação da realidade, a partir dessa voz manifesta” (Teixeira, 2019, p. 92).

As atuais considerações epistemicidas sobre o campo vivencial como fundo que sustenta as possibilidades de contato precisam ser denunciadas, destruídas e transgredidas. Do contrário, este passado nefasto que inaugura violentamente o Brasil como nação continuará se presentificando de forma dolorosa e fixada nas corporeidades negras e indígenas. E esta denúncia-destrui- ção-transgressão acontece nos episódios de contato estabelecidos no momento presente, “que é o único momento em que são possíveis a experiência e a mudança”, segundo Laura Perls (1994). Para ela, no passado “têm lugar nos- sas recordações, arrependimentos, dor ou nostalgia e são significativos agora mesmo no momento atual. Sempre que falamos do futuro, criamos fantasias, planos, esperanças ou conspirações, ilusões ou medos a partir do que ocorre no momento atual” (Perls, 1994, 126). Portanto, o momento atual expressa a potência das possibilidades de mudanças reais, desde que ações concretas e consistentes sejam efetivadas considerando posicionamentos políticos e éticos.

É importante frisar que o desejo de uma ética inflexiva é desconstruir qual- quer viés que coloque como via de regra apenas um modelo de existência. Ao enfraquecer esse modelo tornado absoluto, nos colocamos todos na horizontalidade. Essa horizontalidade é difusa e polifônica. Sua tensão é inerentemente dialógica, pois nos colocamos sempre diante daquilo que não conhecemos e, por isso, precisamos nos movimentar ruma a esse sentido que habita fora de nós. Uma ética inflexiva ataca os modelos de enfraquecimento dos sujeitos que são lidos como abjetos, bem como critica as forças que destroem a capacidade criativa desses corpos constituídos à margem […] Uma ética inflexiva dinamita a anticonsciência da alteridade (Teixeira, 2019, p. 93-94).

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A estrutura genocida racista se reatualiza constantemente, configurando o suporte como pano de fundo que bloqueia e impede o desenvolvimento de experiências de contato e de crescimento saudáveis para pessoas negras e indígenas. A gestalt significativa que se forma, para as pessoas negras e indí- genas, é despotencializadora e sequestradora de vidas. E é contra esta figura que se insurgem pessoas negras e indígenas em diferentes frentes, a fim de garantir experiências saudáveis de estabelecimento e manutenção de contatos com qualidade criadora. Para tanto, construir possibilidades de suporte que sustentem as necessidades específicas de vida é fundamental. Segundo Laura Perls, “só podemos estabelecer contato quando existe o suporte necessário para sustentá-lo. O suporte é o pano de fundo sobre o qual a experiência atual se destaca (existe) e forma uma gestalt significativa” (1994, p. 128).

Por outro lado,

Quando o indivíduo é confrontado por grave humilhação ou outras intru- sões opressivas, que excedem os limites de sua experiência permissível, ele pode agir contra a invasão ameaçadora, perdendo o contato. Isso pode ir desde perder a consciência […] até bloquear o impacto da experiência não permissível por meios mais sutis e mais imperceptíveis (Polster & Polster, 2001, p. 121).

O posicionamento contra esta perda de contato, atualmente, pode ser identificado a partir de performances diversas assumidas por existências racial- mente subalternas como formas próprias de auto narrativas. A palavra ecoa no e a partir do corpo, sendo uma elaboração ao mesmo tempo sonora e motora, que se presentifica em ondas. Para Leda Maria Martins,

Nos rituais da oralidade, o som do signo, o som da palavra […] inscreve o sujeito emissor – que porta a palavra – e o sujeito receptor – a quem a palavra também circunscreve em um determinado espaço de expressão, de potência e de poder […]. A palavra vazada é uma palavra migrante; é uma palavra que se desloca de boca a boca; que treme de corpo a corpo. Ela é kinesis. É movimento dinâmico (Martins, 2013, s/p).

O corpo se apresenta como lugar por excelência das performances pos- síveis, necessárias e transgressoras, inscrevendo no mundo lugares concretos outros que as práticas racistas não alcançam e, portanto, não conseguem in-significar. A linguagem sonora e motora é tão própria dos corpos transgres- sores que quem não domina os signos performáticos precisa entrar em um movimento de se apropriar, palatalizar e des-significar, na tentativa de torná- -la impotente. No entanto, a permanência e reinvenção destas performances mostra que o movimento geno e etnocida colonial não alcança a dimensão

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VOZES EM LETRAS:

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corporal, cujos significados existenciais se recriam e transcriam ritualistica- mente a partir de memórias coletivas ancestrais e espirituais.

Em particular, elas recuperam essa dimensão da sacralidade que se institui em toda a relação do sujeito com o outro sujeito, do sujeito com a cole- tividade, do sujeito com tudo aquilo que o cerca, com tudo aquilo que o constitui e, na verdade, institui (Martins, 2013, s/p).

As dinâmicas de contato a partir dos diferentes lugares raciais se re-esta- belecem, cocriando tensionamentos clínicos ainda por descrever na literatura da área da Gestalt-terapia, pois ainda muito recentemente trazidos à tona com força. Se “o contato é um fenômeno que tem lugar no limite entre o orga- nismo e seu entorno” como afirmou Laura Perls (1994, p. 127), então ainda há muito que se considerar e compreender do campo vivencial que estrutura as formas específicas de ser – ou tornar-se – uma pessoa negra com todas as suas potencialidades na pluriversidade do seu grupo racial. E, como o contato “supõe reconhecer e fazer frente ao outro” (Perls, 1994, p. 127), a dimensão do encontro dialógico se coloca como um importante desafio considerando tudo o que foi descrito até aqui, especialmente em termos de campo e de contato.