• Nenhum resultado encontrado

3 A FILOSOFIA DO INTERHUMANO DE MARTIN BUBER: O HOMEM,

3.3 COMUNIDADE ENQUANTO RELAÇÃO

3.3.3 A comunidade enquanto realidade concreta: “o quanto posso realizar

A problemática da concretização do ideal de vida em comunidade passa pela realidade marcada por princípios anticomunitários, que não se ocupa com as relações autênticas, capazes de possibilitar encontros genuínos entre os homens. Os moldes sociais, marcados pela urbanização, industrialização, próprias do capitalismo, não tem privilegiado a construção de comunidades, mas de uma sociedade em que predomina os interesses e a busca por vantagens individuais.

No debate acerca da relação entre Estado e Comunidade, antes mesmo de definir as características da nova comunidade, Buber, em 1924, discorre sobre essas duas esferas no contexto da Alemanha pós-guerra, e que nos serve como plano de fundo para entender a realidade atual e as possibilidades de vida comunitária hoje. O autor explica como o conceito e a realidade do Estado e da Comunidade foram vividos de modo imediato naquela época. A discussão se dá entre Estado que não permite a comunidade, e o desespero de fugir dessa realidade, com a ilusão do retorno às comunidades primitivas. Nesse sentido, tanto o Estado quanto a Comunidade assumem um caráter coercitivo. O primeiro se coloca como coerção consentida, as pessoas aceitam o Estado. O segundo, se coloca como coerção necessária, na qual o homem não pode existir sem.

O Estado se firmou como absoluto, independente das pessoas que o constituíam, sobrepondo-se sobre estas que o formava; adquiriu uma função normalizadora, irracional, que por lei se colocava como dominante da vida e morte dos sujeitos. Conforme Carrara (2017, p. 59) o Estado “deixou de agir de maneira racional e coerente de tal maneira que não se conciliavam seus atos com seus propósitos. Por oferecer segurança tanto interna como externa, o estado se tornou uma realidade coercitiva à qual não se pode resistir”.

A comunidade, nesse contexto, aparece como o desejo desesperado de fugir dessa realidade, criando espécie de “ilhas”, de “oásis”, numa realidade assombrosa que não permite

a vida autêntica entre os homens. Tal desespero provocava o desejo por retornar as antigas comunidades, nos moldes primitivos. Buber (2012) discorda desse tipo de retorno, visto que exclui a realidade concreta. Para ele, a comunidade deve ser renovada dentro do contexto vivido, não como uma redoma que se protege da sociedade. Conforme Santiago (2012), o projeto de sociedade manifestado por Buber expressa “a preocupação com a unidade entre o que se apresenta como projeto futuro e as formas de vida necessárias à consolidação dele. É na realidade concreta que se pode compreender e encontrar respostas alternativas” (p. 169).

Com efeito, há Estados que possibilitam a constituição da comunidade, como a Pólis, na qual suas estruturas permitiam a relação imediata entre os homens; e outros que não favorecem tal realidade, como o Estado ocidental moderno, que é centralizador e torna dispersa e líquida toda autêntica forma de comunidade. O Estado centralizador é aquele que alimenta o desejo por aquilo que ainda não possui, e quando possui deseja mais e mais; é opressor quando se revoltam contra ele, e age com coerção com aqueles que tentam se esquivar de seus comandos. Para Buber (2012) esse Estado real indica, com uma linha, até que ponto se pode viver em comunidade. Em suas palavras:

O Estado é o status, a situação, a condição peculiar da não-realização da verdadeira comunidade. É a linha que se desloca incessantemente, para usar uma expressão brusca, indicando o grau de coerção que deve existir e de que maneira ela existe. Esta situação, esta linha que mostra até que ponto os homens são livres e capazes, não deve ser concebida como linha de progresso. Esta linha mutável para cima ou para baixo é também, talvez, uma linha ascendente da possibilidade de realização da comunidade, da capacidade de o homem se encontrar com seu semelhante, a linha da espontaneidade, do encontro, da aptidão para viver com o outro e para o outro (BUBER, 2012, p. 72).

A linha que existe entre comunidade e Estado é abordada por Buber não no sentido apenas das estruturas sociais e comunitárias, mas, especialmente, no sentido das relações, das atitudes dos sujeitos. Tal compreensão permite-nos entender o grau de coerção que o Estado assume sobre a vida humana, envolvendo o homem de modo tão intenso que o ilude com a ideia de progresso que marca o discurso da modernidade, enquanto tira dele sua liberdade e capacidade de relação. A ideia de estar sendo favorecido pelo progresso moderno é tão inebriante que o homem passa a ser dominado pela mão invisível do Estado, achando que é livre e autônomo. A força coercitiva do Estado passa a determinar aquilo que pode ou não ser feito na sociedade, e o maior critério para essa decisão é o benefício que isso trará para o Estado.

No entanto, apesar da dura realidade, Buber é esperançoso e nos aponta para a possibilidade de superação do Estado, enquanto status, isto é, aquele que está dentro de nós e

enquanto órgão político, pelo contrário, na perspectiva buberiana, somente pela política, na realidade da vida pública é possível se constituir a autêntica comunidade. Aquela que “se baseia sobre a verdadeira vida em comum dos homens, sobre a relação imediata entre eles, é a célula do sistema comunitário” (BUBER, 2012, p. 74).

Para constituir uma comunidade nessa realidade, Buber (2012) indica três passos possíveis para iniciar tal concretização. O primeiro é “iniciar pela relação do homem

individual com as realidades comunitárias” (p. 77); de modo que, cada pessoa se envolva

com uma comunidade, seja organizacional, seja institucional, como a família, o trabalho; que embora em crise, podem colocar o homem em relação imediata com o Outro. Isso nos leva a entender a preocupação do autor em não isolar o homem, tendência forte da modernidade, mas possibilitar encontros com outros homens para criar situações para a relação autêntica que não se enquadra em nenhuma estrutura, simplesmente acontece. O segundo passo, então, é não fugir da crise que assola as relações, mas “penetrar na crise da comunidade com sua

vida pessoal” (p. 77-78), ou seja, deixar-se atingir por todo conflito e tensão provocado pelas

relações, não desejando ocultá-los ou ter medo deles, mas enfrentar as questões profundas do ser humano. O terceiro passo é “uma mudança na relação existente entre vida pública e vida

privada” (p. 78), ao passo que enquanto os relacionamentos utilitários fizerem parte da vida

pública e dominarem a política, o mal do Estado permanecerá; mas, quando as relações inter- humanas, baseadas na totalidade da vida saírem do privado e ascenderem para o público a comunidade, enquanto princípio relacional, atingirá o Estado.

Pode até parecer uma utopia, e de fato, nunca será real se cada um não se responsabilizar em realizar isso no agora, no contexto em que vive. Buber critica o radicalismo de muitos que possuem um ideal de Estado e de Comunidade, mas não sabem lidar com a realidade concreta. Preservar o ideal é fundamental para não perdemos de vista o que almejamos, mas é preciso compreender que ele não será atingido na inércia, é preciso ação, a qual deve estar em conexão com o contexto, com aquilo que vivemos hoje. Buber (2012) fala sobre outra linha demarcatória, aquela que cabe a cada pessoa estabelecer diante daquilo que pode ou não realizar. A linha que se põe a cada manhã e leva o homem a se questionar: “o quanto posso realizar hoje?” (p. 73). Nessa compreensão, percebe-se a responsabilidade pessoal, colocando em questão a pessoa em sua realidade, pedindo-lhe uma resposta autêntica a cada nova situação. Essa atitude não depende de estruturas, não depende das condições, mas depende da visão humana sobre a vida, sobre o Outro, sobre o mundo. Assim, a comunidade se realiza nas estruturas e formas que vivemos, mas não se limita a elas. Nesse sentido, queremos destacar a alteridade como base para as relações entre as pessoas.

Aqui assinalamos a ética do interhumano apontada por Buber, a qual nos coloca diante da responsabilidade com o Outro.

3.4 A QUESTÃO ÉTICA DO INTERHUMANO: O RECONHECIMENTO DO OUTRO