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2 OS DIREITOS HUMANOS E AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS: A

2.3 COMUNIDADE, SOCIEDADE E AS RELAÇÕES HUMANAS

2.3.1 A Comunidade: “vivido no íntimo, que é confiante e que vivemos juntos”

O princípio tradicional da comunidade baseia-se na partilha, desde a convivência até os bens materiais. Em geral, essas comunidades eram formadas por pessoas do mesmo sangue, possuía um líder em comum, dependiam da terra para sobreviver e trabalhavam para o sustento de toda comunidade, um dependia do outro. Os laços construídos nesse ambiente eram fortes, pois havia o sentimento de pertencimento ao grupo, ao mesmo tempo em que oferecia segurança aos seus membros, proporcionando acolhimento e lugar no mundo. A identidade pessoal do sujeito dependia da identidade do grupo, uma era fortalecida pela outra.

Os povos indígenas brasileiros são exemplos disso. Antes da colonização europeia, tal como alguns povos ainda hoje, os índios viviam em comunidade, onde todos seguiam costumes e rituais próprios; cada um possuía uma função dentro da tribo; havia um líder em comum, o qual era responsável por transmitir os ensinamentos, valores e tradições aos mais jovens; possuíam uma língua própria; dependiam da terra para sobreviver; trabalhavam em prol do grupo; tudo era partilhado; os vínculos eram profundos e duradouros. Esse sentimento de pertencimento ao grupo constituía a identidade do sujeito, dando ao mesmo segurança de saber quem ele era e qual era seu papel no mundo.

Essa visão clássica de comunidade é bem trabalhada por Ferdinand Tönnies (1973) ao diferenciar o conceito de comunidade do de sociedade. Ele afirma que a comunidade está inteiramente ligada a relação, a vida real e orgânica, sendo tudo aquilo que é vivido no íntimo, que é confiante e que vivemos juntos. Nesse sentido, para o autor, existem comunidades de língua, de fé, de costumes, englobando toda a humanidade. Em sua teoria da comunidade, Tönnies (1973, p. 98) afirma que ela obedece a um estado primitivo e natural, caracterizando- se pela relação de dependência dos indivíduos.

Para explicar sobre isso, ele elucida sobre três espécies de relações determinadas pela descendência: 1. Relação maternal entre mãe e filho, sendo esta a mais profunda, a qual possui o elemento do instinto e conhecimento natural, no qual a mãe se encarrega de suprir as necessidades de seu filho até ele adquirir certa independência, contudo, ao passar do tempo a relação que antes era de necessidade passa a ser sustentada pelo vínculo construído durante esse processo, alimentado pelo afeto, memória, reconhecimento dos cuidados maternais, permitindo assim que a relação permaneça. 2. Relação entre homem e mulher enquanto esposos, a qual nem instinto nem os laços sanguíneos são suficientes para garantir sua permanência, mas dependerá dos hábitos e sentidos partilhados, transformando-se numa relação durável e comum acordo. 3. Relação entre irmãos do mesmo sangue, a qual possui um instinto mais fraco que a relação maternal, e por isso favorece a reflexão em cooperar, conservar e consolidar laços humanos. A relação fraternal é para a relação mais humana entre os homens.

Na perspectiva assumida por este autor, existe na comunidade, direitos e deveres, os quais correspondem às faces de uma mesma moeda a serem cumpridos em consonância com a vontade geral. Isto é, de acordo com a vontade da comunidade é instituído os direitos e obrigações para cada pessoa, os quais geram desigualdades no interior da comunidade. Os mesmos são compreendidos a partir dos sentimentos recíprocos em comum. Guimarães (2006) explica que na teoria da vontade humana de Tönnies, “é a vontade que conduz e

estabelece o vínculo entre os indivíduos, de maneira que o vínculo na comunidade é o consenso, enquanto que na sociedade o vínculo é o contrato” (GUIMARÃES, 2006, p. 6). Isso nos permite entender que nessa perspectiva é a vontade humana que decidirá como os vínculos serão constituídos.

Tönnies (1973) explica que os direitos de uma comunidade são tudo aquilo que tem um sentido para a relação comunitária e é respeitado como a vontade da maioria. Nesse viés, a hierarquia, a divisão do trabalho e as satisfações são consideradas como direito natural, regra de vida comum, que são compreendidos pelos membros da comunidade de modo natural. Bauman (2003) abordando a questão explica que a comunidade antiga era diferenciada justamente por esse “entendimento compartilhado por todos os seus membros” (p. 15), tal entendimento não precisa ser construído, pois ele já estava pronto na comunidade, bastava vivenciá-lo. Tal entendimento formava o “circulo aconchegante” (p. 16), no qual as pessoas se entendiam de modo natural, sem necessitar de justificativas racionais, nesse caso a experiência vivida não resulta de um entendimento autoconsciente. O autor critica essa ideia afirmando que se comunidade significa entendimento natural ela não pode sobreviver aos questionamentos, aos argumentos, a reflexão. Dascal e Zimmermann (BUBER, 2012), explicando a visão de Tönnies, afirmam que nessa visão de comunidade, não era necessário nenhuma justificativa, a ação era aceita simplesmente porque era fruto de uma tradição e dos costumes, assim não havia porque questionar, pois a maior razão de sua existência era para manter a sobrevivência da comunidade.

Nessa perspectiva, a compreensão aparece associada ao conhecimento íntimo uns dos outros, a partilha de dores e sentimentos. Tönnies (1973, p. 103) relaciona a compreensão com a língua, afirmando: “o verdadeiro órgão da compreensão, onde ela desenvolve e forma sua existência, é a própria língua, em sua expressão comunicativa e receptiva de gestos e de sons que traduzem a dor e o prazer, o medo e o desejo e todos os outros sentimentos ou emoções”. A língua aqui não é um sistema de códigos composto por regras gramaticais, mas a própria vida partilhada, a qual fala não apenas pela voz de um interlocutor que alcança o sistema auditivo de outro. Fala a partir de todos os gestos, sons, sentimentos, situações, emoções, que muitas vezes são inexplicáveis. Assim, “a compreensão é muda por natureza, pois seu conteúdo é inexprimível, infinito, incompreensível” (p. 105). Ou seja, através do próprio ato de viver em comunidade se constrói uma compreensão do outro, tornando-se vulnerável a ele, sendo capaz de entender seus gestos, sentimentos, dores e alegrias.

Segundo Tönnies (1973), a comunidade pode ser compreendida a partir de três classificações: dos laços sanguíneos, aproximação espacial e aproximação espiritual. Para ele,

a família é a expressão geral da vida comunitária, uma vez que se torna a primeira comunidade, e, por meio dela se formam as demais comunidades, as quais estão ligadas ao lugar, como a aldeia, a região, a cidade, o país; e aquelas ligadas por um espírito comum, as quais se expressam através de costumes e fé comum, penetrando “nos membros de um povo, símbolos de sua unidade e da concórdia de sua vida” (p. 105).