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2.1 Comunicação e sociedade de classes

2.1.2 Um debate de classe

2.1.2.1. A conceituação polêmica

De acordo com Giddens, são identificáveis os “elementos de uma coerente teoria de classes sociais, situada dentro de um quadro de referência de interpretação do desenvolvimento da Europa desde a época clássica até o industrialismo moderno”, já nos primeiros passos dados pela Sociologia (1975, p. 25), como atestariam os escritos de Saint-Simon. Segundo este autor, o conflito observável entre as classes sociais advinha do processo de consolidação (até então inacabado) de uma nova sociedade que tinha por base material o desenvolvimento de comunas urbanas.

“Estas estabeleceram uma coletividade de cidadãos independentes da aristocracia feudal41. Essa burguesia urbana formou o núcleo da nova classe de industriels que derivavam suas pretensões de poder da posse de propriedade móvel criada na manufatura” (SAINT-SIMON apud GIDDENS, 1975, p. 25).

O conceito científico de classe social representa, desde então, o interesse da ciência por um “tipo social” específico (indivíduo ou grupo) que se constitui de forma derivada de um “tipo de relação social” particular: a propriedade privada de bens móveis. Diferencia-se, assim, em primeiro lugar, daqueles que baseiam seu poder na dominação fundamentada na propriedade fundiária42, porém estendendo sua generalidade também a todas as formas sociais que possam ser referenciadas pelas suas características de apropriação do produto social.

Todavia, o conceito de classe “industrialista” saint-simoniano sofre de indevida formalização (problema recorrente ao longo da história desse debate), englobando por vezes a classe distinta dos proletaires, na medida em que, buscando diferenciar-se dos elementos “parasitas” (não-produtivos), compreendia todos aqueles que colocavam seu trabalho à disposição de produzir para a sociedade os meios de satisfação das necessidades e das predileções físicas (GIDDENS, 1975, p. 26). Observa-se nesse procedimento a ideologia burguesa operando, transformando desde então a vontade particular em vontade geral ao identificar o “trabalho” como significante comum que unifica todos os “produtivos”43.

Pode-se dizer que subseqüentemente a essas primeiras noções, consolidaram-se duas principais matrizes na forma de se abordar sociologicamente a problemática das classes sociais (GIDDENS, 1975, p. 45; CROMPTON, 1998, p. 24). Uma tem por fundamento os textos de Marx e a outra se baseia nos escritos de Weber. Apesar de possuírem elementos irreconciliáveis, não são indiferentes uma à outra e têm sido produzidas em um constante diálogo (o próprio Weber desenvolve a sua abordagem em debate com o marxismo de seu tempo).

41 “Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres das primeiras cidades; a partir destes, desenvolveram-se

os primeiros elementos da burguesia” (MARX, 2008, p. 9).

42

Com o avanço das relações de dominação capitalista a própria propriedade fundiária adquire características do tipo de propriedade burguesa, constituindo-se o “capital agrário”.

43 Este significante vai ser utilizado também, paradoxalmente, pelos socialistas com o intuito de se diferenciar da

burguesia, evidenciando que os verdadeiros produtores da riqueza social são aqueles que vendem sua força de trabalho. Todavia, se a ética do trabalho para o capitalista tem por conteúdo o culto à reprodução do capital (por meio da mistificada noção de “dignidade”), para os socialistas o trabalho é a chave para a emancipação da humanidade alijada de sua liberdade pela dominação imposta pela lógica do capital. Temos, por outro lado, o caso particular brasileiro, em que se pode dizer que a ideologia do sucesso pelo trabalho foi veiculada e implementada pelo proletariado, e não pela burguesia industrial nascente (que, como se verá adiante, foi marcada pelos valores estamentais do período colonial-escravista e, assim, via no trabalho o espectro da degradação do trabalho escravo), sendo a ideologia da industrialização o mote que integraria as duas classes (MARTINS, 1976, p.100).

O modelo marxista centra sua discussão sobre as classes na relação que os grupos, no decorrer da história, estabelecem entre si mediada pelos meios de produção (produtos do trabalho humano que entram no processo de produção de outros bens). A apropriação privada e o controle sobre a riqueza social de um lado e a ausência desses de outro leva, em última instância, a um quadro teórico que divide a sociedade em dois amplos blocos relacionados de forma assimétrica em que uma classe explora a outra e se constituem ambas reciprocamente nessa relação. Embora apresente esse referencial dicotômico e abstrato, Marx, em sua análise das situações concretas, incorporava a complexidade e as nuances de processos que escapam às características “puras” da representação teórica, e.g., o surgimento, o desaparecimento e o fracionamento dessas classes, assim como os grupos que se encontram fora do modelo (MARX, 2011).

Para Marx, o burguês moderno, seu contemporâneo, é o “industrial milionário”, o “chefe de exército industrial” (composto por “soldados rasos”, “suboficiais” e “oficiais”), que substituiu o pequeno produtor, na medida em que a grande indústria moderna substituiu a manufatura (2008, p. 10). Ele representa uma classe altamente revolucionária, que fez com que tudo aquilo que se reivindicava eterno, venerável e superior sucumbisse à dinâmica renovadora, insensível e impessoal do dinheiro capitalista. Fomentou a centralização e a concentração nas mais diversas esferas (econômica, política etc.), ao mesmo tempo em que, aparentemente de forma paradoxal, imprimiu o cosmopolitismo à produção e ao consumo em todos os confins que atingiu (processo condicionado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação promovido pelo desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo).

No entanto, a burguesia é também, segundo Marx, uma classe que vive constantemente em conflito, seja com outras frações da burguesia, seja com os resquícios de um antigo regime (restos da monarquia, proprietários de terra, burgueses não-industriais, pequenos burgueses), seja com o proletariado (classe produzida como antípoda da burguesia no modo de produção capitalista). Este último é constantemente arregimentado pela grande burguesia para combater seus demais inimigos, fazendo de cada vitória conquistada uma vitória burguesa (MARX, 2008, p. 23), o que demanda meios de dominação político-ideológica.

O conceito de classe aparece, assim, em Marx, baseado na divisão do trabalho social, nas diferenças na apropriação do produto desse trabalho, que sob o capitalismo se dividem em última instância entre a mais-valia, absorvida pelo capital, e o salário, entregue ao trabalhador em troca de sua força de trabalho. As principais polêmicas que esse modelo tem enfrentado dizem respeito

à indefinição de como essas relações baseadas na esfera da produção se desenvolvem em outras dimensões do espaço social e à primazia da esfera produtiva sobre as demais dimensões da vida em sociedade. Embora a generalização das relações mercantis (para os espaços políticos, culturais, religiosos etc.) seja uma importante chave de compreensão, o marxismo ainda se debate tentando se desenredar das antinomias que a racionalidade burguesa dominante impõe (interna e externamente à essa tradição) a qualquer debate sobre o tema (economicismo versus culturalismo, determinismo versus voluntarismo, estrutura versus agência etc.).

Weber, por outro lado, concebe sua abordagem das classes a partir da definição de dois eixos: (1) a propriedade de bens que determinam a “situação de classe” (classes proprietárias); (2) as oportunidades de valorização de bens ou serviços que determinam a “situação de classe” (classes aquisitivas). A classe social44 aparece assim como um conjunto de recorrências “típicas” no interior de um conjunto de indivíduos que sintetiza uma totalidade de “situações de classe” e que permite certa mobilidade na ocupação de posições. A “situação de classe” consiste na oportunidade de abastecimento de bens (dimensão material), de posicionamento na vida externa (dimensão relacional), de destino pessoal (dimensão dinâmica) (WEBER, 2000, p. 199).

Uma das principais críticas que poderíamos dirigir a essa abordagem consiste em que a variabilidade de bens e habilidades possuídos faz com que o número de classes possíveis seja indefinidamente amplo (GIDDENS, 1975, p.93). A aproximação com um individualismo liberal típico é bastante evidente, podendo-se afirmar que, no limite, essa concepção permitiria que cada indivíduo se apresente, por sua forma muito singular de posse de atributos, como uma classe diferente (o que implodiria o conceito). Além disso, a dimensão claramente econômica das categorias de “classe” não encontra sua ponte adequada com a “classe social”, reeditando assim, porém com outras cores, o dilema marxista. Tenta-se realizar essa passagem por meio da diferenciação entre a posição e ação/consciência de classe na medida em que a “classe social”, contraposta aos “grupos de status”, aparece como uma “consciência objetiva” (enquanto aquela seria uma “consciência subjetiva”) (GIDDENS, 1975, p.95). No entanto, não se explica como esse fenômeno se produz.

Um outro aspecto da abordagem weberiana que se destacou nas pesquisas sociológicas em geral foi o tratamento concedido ao que chamou de “ação econômica “capitalista””, baseada na

44 Para Weber esta é uma terceira categoria, embora diferentemente das duas anteriores não tenha o foco na

determinação que exerce sobre a situação de classe, mas sim no conjunto de situações de classe que engloba definindo um determinado “espaço social” limitante do fenômeno.

expectativa de lucro através da utilização das oportunidades de troca e racionalmente calculada em termos de capital (WEBER, 1992, p.4-5). Seu interesse em conhecer as origens do “capitalismo ocidental” (“o sóbrio capitalismo burguês”) com sua “organização capitalística do trabalho” e sua “moderna organização racional da empresa capitalística” forneceram os elementos para se pensar a formação de uma “mentalidade econômica” ou, em outras palavras do “ethos” de um sistema econômico (WEBER, 1992, p. 12), que no caso específico abordado o autor remontou às suas relações com a ética econômico-religiosa (racional) do protestantismo. Sua perspectiva deu margem a uma série de controvérsias sobre o papel da subjetividade, da cultura, da espiritualidade etc. na determinação dos rumos históricos das diversas sociedades, ao mesmo tempo em que desafiou as abordagens que concebiam a ação humana como simples epifenômeno do desenvolvimento de forças materiais incontroláveis. Deixa em aberto, porém, as origens dos elementos que constituem a dita mentalidade econômica (ethos) (o que confere à dinâmica histórica uma dimensão “casual” oposta à “necessidade” condicionada por processos concretos em curso), embora tenha ainda, sim, o mérito de destacar a dinâmica própria dessa dimensão como fator fundamental da práxis sob o capitalismo.

Houve vários debates subseqüentes sobre o conceito de “classe”, embora pouco se tenha avançado em termos de construção de consensos45. Muitas das contribuições se deram em pontos bastante particulares e estão ligadas às transformações por que passou o capitalismo no século XX e a embates teórico-ideológicos ligados à existência ou importância das classes para a dinâmica do capitalismo avançado. O papel das corporações, das classes médias, do trabalho qualificado, do setor de serviços, das novas tecnologias da informação e da cultura têm sido o centro de boa parte dessas polêmicas. Para esta pesquisa, vamos nos deter sobre o tratamento dado ao tema pela sociologia brasileira.