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2.1 Comunicação e sociedade de classes

2.1.2 Um debate de classe

2.1.2.2 As difíceis classes sociais do Brasil

Pode-se dizer que no Brasil, assim como na América Latina de uma forma geral, as discussões sobre as classes sociais adquiriram algumas peculiaridades relativas à singularidade da situação de país fora do centro capitalista (FERNANDES, 1973). O debate ganhou expressão no

45 Para um apanhado geral desse debate, consultar: Cromptom (1998) que analisa os trabalhos de Goldthorpe, Wright

e Bourdieu; Giddens (1975), que destaca Dahrendorf, Aron e Ossowski; Antunes (1995) que discute as questões levantadas por Gorz, Offe, Habermas, Kurz e Lukács.

contexto da nascente academia brasileira dos anos 40, opondo as posições que viam no fenômeno, por um lado, estratos sociais com características específicas e, por outro, estruturas sociais que condicionavam ações coletivas sob o capitalismo (GUIMARÃES, 1999, p. 13-14). A sociologia do desenvolvimento logrou formar, em meados dos anos 50, um consenso teórico em torno da análise de classe como centro para a explicação sociológica, na medida em que esta “se fundamenta no princípio de que a estrutura social e sua reprodução dependem, fundamentalmente, da ação de classes” (GUIMARÃES, 1999, p. 14-15).

Pode-se dizer que a problemática das classes para a sociologia do desenvolvimento brasileira se expressou em três grandes movimentos teóricos: (1) uma Sociologia Econômica que teve como destaque sua abordagem do fenômeno da “dependência” como chave teórica para a compreensão da dinâmica capitalista das classes na periferia do capitalismo; (2) uma Sociologia Política que focalizou as instituições e o sistema político, o Estado e o seu contexto societário; (3) os estudos de formação de classe que englobaram o empresariado nacional, as elites dirigentes, as classes médias, o operariado industrial e o proletariado rural (GUIMARÃES, 1999, p.16). Nos últimos anos, no esteio do declínio do prestígio do marxismo nas ciências sociais brasileiras, houve uma redução de pesquisas sobre as classes sociais e uma mudança na perspectiva de abordagem que fez prevalecer o isolamento do setor estudado em relação aos demais da sociedade ou sua redução à noção de grupos competindo entre si (contra a de classes dominantes e dominadas) (BOITO JR, 2007, p. 58). Todavia, ainda é possível identificar linhas de continuidade.

Pode-se dizer que o “burguês” e a “burguesia” brasileiros são

entidades que aqui aparecem tardiamente, segundo um curso marcadamente distinto do que foi seguido na evolução da Europa, mas dentro de tendências que prefiguram funções e destinos sociais análogos tanto para o tipo de personalidade quanto para o tipo de formação social (FERNANDES, 2006, p.34).

Surgem assim já como entidades especializadas, na figura do agente artesanal ou do negociante, sufocadas na estrutura colonial-escravista46 de exploração das terras brasileiras e enxergando-se sob o prisma das distinções e avaliações estamentais. Essa condição, mesmo modificada historicamente, encontraria um fio de continuidade por um longo tempo: “Essa posição subalterna das classes caracteriza o período colonial, com o prolongamento até os dias

46 “... a palavra de Joaquim Nabuco expressa uma verdade: o escravo confundiu as classes, impedindo a

recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o quadro; industrialismo, na verdade, estatalmente evocado, incentivado e fomentado” (FAORO, 2008, p.237)47. E enfatiza-se: “A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada do estado maior de domínio público [ingresso no estamento]” (FAORO, 2008, p.237).

Com o rompimento do estatuto colonial-escravista surgem as condições para que se estabeleçam de forma incipiente os dois tipos “clássicos” de burguês:

o que combina poupança e avidez de lucro à propensão de converter a acumulação de riqueza em fonte de independência e poder; e o que encarna a “capacidade de inovação”, o “gênio empresarial” e o “talento organizador”,

requeridos pelos grandes empreendimentos econômicos modernos

(FERNANDES, 2006, p. 36).

Todavia, o fato de o crescimento industrial brasileiro se dar de forma instável, por meio de surtos que acompanhavam a disponibilidade de capital e a diminuição nos fluxos de importação, fez com que só durante a década de 1950 o crescimento industrial passasse a se realizar de forma relativamente contínua. A conseqüência disso que nos interessa aqui diz respeito ao fato de que “a burguesia industrial brasileira constituiu-se como camada social muito rapidamente. Resultou da superposição e diferenciação de grupos e segmentos sociais cuja “tradição industrial”, no melhor dos casos não data de época remota”48 (CARDOSO, 1972, p.170). Decorreu dessa condição, articulada às questões já apontadas sobre a formação da burguesia nacional sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido, a dificuldade de uma orientação empresarial e classista bem definida.

Soma-se a essa dimensão temporal, a dificuldade de constituição de uma “consciência de classe” decorrente da heterogeneidade dos grupos que compõem a burguesia industrial. Entre as partes desse compósito se pode identificar, principalmente, imigrantes, membros ascendentes de camadas médias (funcionários públicos, comerciantes, técnicos etc.) e elementos de antigas camadas senhoriais que se dedicavam à exportação ou à agricultura.

No que diz respeito ao empresariado de uma forma geral, uma das principais preocupações que ocupou os pesquisadores diz respeito à capacidade dirigente e de influência política desse

47 Embora haja diferenças claras entre as concepções de burguesia de Fernandes e Faoro, os dois apontam o mesmo

fenômeno de limitação da “realização” da classe sob a estrutura de dominação herdada do regime colonial.

48 Na época da pesquisa de FHC, década de 1960, duas gerações eram consideradas a média entre os “industriais de

grupo. Não há consenso entre os pesquisadores sobre a intensidade desse poder de classe, sucedendo-se “ondas” alternativas de análise que, ora defendiam a força, ora a fraqueza do empresariado enquanto ator político (MANCUSO, 2007). De fato, as características do desenvolvimento tardio brasileiro (MELLO, 1994), assim como o protagonismo do Estado enquanto seu principal agente promotor, principalmente no período entre as décadas de 30 e 80, dificultou a apreensão do papel desempenhado por essa classe, na medida em que as “interferências da dependência e do subdesenvolvimento nas estruturas e nos dinamismos da ordem social competitiva [...] se traduz por uma exacerbação das relações de poder orientadas politicamente ou especificamente políticas” (FERNANDES, 1973, 102-103). Não a toa, parte da produção acadêmica se deslocou para compreender o funcionamento de grupos tecnocratas, militares e burocráticos que se instalaram na máquina estatal.

Nas palavras de Cardoso

The historical, social and economic conditions which determines the possibilities of action of private industry in the present-day underdeveloped countries are very different [compared to the developed countries]. Economically, the basic features of production and marketing appear to be laid down a priori by the already developed economies (technology, trading methods, type of enterprise, etc.). Socially, the entrepreneurs find themselves confronted by other component groups of the industrial community who bring pressure to bear to restrict industry’s freedom of action, whether directly or through the state. Politically, the expansion of the market and the adoption of a policy of industrial development have ceased being the nation’s main goal. Instead the central government is concerned with ending the domination of the large landowners and in securing international agreements to advance the industrialization of the country – something which usually encounters the opposition of the big international combines and of the nations which dominate the world stage (1967, p. 95)49

Assim, o típico empresário dos países ditos subdesenvolvidos não seria somente um agente em busca de métodos inovadores para ampliar seu lucro (limitado pelos determinantes desse

49 “As condições históricas, sociais e econômicas que determinam as possibilidades de ação da indústria privada na

atualidade dos países subdesenvolvidos são muito diferentes [comparadas com os países desenvolvidos]. Economicamente, as características básicas de produção e mercado apresentam-se repousando a priori sobre as economias já desenvolvidas (tecnologia, métodos de troca, tipo de empresa etc.). Socialmente, os empresários se encontram confrontados por outros grupos componentes da comunidade industrial que fazem pressão para restringir a liberdade de ação da indústria, seja diretamente ou por meio do Estado. Politicamente, a expansão do mercado e a adoção de uma política de desenvolvimento terminou sendo a principal meta nacional, em vez de o governo central se preocupar com o fim da dominação dos grandes proprietários de terra e assegurar os acordos internacionais para avançar a industrialização do país – algo que geralmente encontra a oposição dos grandes conchavos internacionais e das nações que dominam o palco mundial.

subdesenvolvimento), mas alguém com habilidade para se beneficiar com as mudanças econômicas e sociais, entrelaçando assim sua atividade individual com a dinâmica política.

Todavia, não se pode dizer que as relações entre os empresários e o Estado tenham sido isentas de conflitos. Por mais que se tenham dado de forma setorializada, particularista, pontual e que possam variar em seus aspectos progressivos e reacionários, os choques entre os grupos industriais e a burocracia aconteceram, como demonstram, por exemplo, as campanhas anti- estatizante e pela abertura do regime no seio da crise da Ditadura Militar (CRUZ, 1995). Não se tratava de alinhamento incondicional de classe, de setores ou de indivíduos específicos às políticas de Estado, mas de estratégias para se beneficiar pela dinâmica de um capitalismo periférico que tem na aparelhagem administrativa estatal o vetor do desenvolvimento. Por se tratarem de políticas que definem a orientação do crescimento econômico e dos lucros, os concorrentes se debatem e pressionam para constarem entre os beneficiários das ações tomadas pelos governos.

Aponta-se, inclusive, que com o colapso da aliança que havia levado à Ditadura Militar, houve relativo aumento do poder da burguesia ante a tecnoburocracia estatal, sem que ambas deixassem de permanecer como dominantes e com a ampliação da participação política e da esfera pública para outros setores da sociedade (PEREIRA, 1987, p. 10). Alguns chegam a ser mais enfáticos afirmando que “a Nova República tornou-se palco em que a sociedade civil [...] se aburguesa e ganha uma liderança empresarial que passa a defendê-la contra o Estado” (SALLUM JR., 1996, p. 192), o que se pode considerar significativo para o momento posterior (década de 90) de vitória ideológica do neoliberalismo.

O realinhamento conservador, que reforçou a coesão entre a expressão política empresarial e a burocracia autoritária, porém com nova correlação de forças, levou-as “à busca de agregação política e interlig[ou]-as na procura de terreno comum para definir e condicionar a fase pós- abertura” (DREIFUSS, 1989, p. 42). Mesmo nesses termos, houve uma ampliação da participação da sociedade civil, ou pelo menos pode-se dizer que houve mudança na relação estabelecida entre esta e o Estado. Nas palavras do mesmo autor,

A transição recoloca a questão do poder e da formulação de diretrizes como “briga em campo aberto”, obrigando o empresariado a buscar novas formas de participação na formulação de diretrizes, e agora bastante diversas dos costumeiros “contatos de primeiro grau” com ministros e burocratas do alto escalão (DREIFUSS, 1989, p. 43).

Isto dito, pode-se afirmar que se expressou certa mudança na dinâmica das classes sociais no Brasil no contexto da crise do desenvolvimentismo. Todavia, essa expectativa de ampliação do poder dirigente da burguesia industrial continuou encontrando seus obstáculos, mesmo no cenário de hegemonia do ideário neoliberal que vigorou durante toda a década de 90.

Em conseqüência do fechamento dos canais de articulação entre o aparato governamental e os grupos de interesse, os empresários, que haviam participado ativamente da campanha pela retirada do Estado da economia e pela abertura política do regime militar, na expectativa de garantir maior espaço no processo decisório, viram-se, enquanto categoria, diante de uma nova situação de exclusão. Os sindicatos, por sua vez, sofreram um profundo esvaziamento em decorrência dos efeitos combinados do desenvolvimento do novo paradigma tecnológico, das políticas recessivas e do desemprego crescente. Dessa forma, durante a segunda metade dos anos 1990, no que diz respeito à esfera federal, observaríamos o reforço do distanciamento Estado-sociedade (DINIZ; BOSCHI, 2007, p. 48)

Houve, nesse contexto, a marginalização de lideranças importantes do período desenvolvimentista:

Dentre os empresários que se destacaram ainda na década de 80, podemos identificar dois grupos: o primeiro, com certa longevidade entre os mais influentes até meados da década de 90, composto por Olacyr Francisco de Moraes, Mário Amato, José Eduardo Vieira e Roberto Marinho; o outro reunindo empresários que deixam de constar da lista de líderes já no início da década...” (DINIZ; BOSCHI, 2004, p. 166)

Os empresários citados são os resquícios da não-renovação das lideranças, num processo de renovação. Outra característica do período é uma reconfiguração do perfil do setor:

De um lado, os grandes conglomerados, capitaneados pelo capital estrangeiro; de outro, a proliferação de pequenos e microempresários, caracterizados por alta taxa de mortalidade e substituição internas, dariam ao empresariado um perfil heterogêneo e segmentado, altamente diferenciado setorial e regionalmente (DINIZ; BOSCHI, 2007, p. 50).

Tem-se, assim, com a implementação das reformas neoliberais “que relegaram ao país a ausência de uma síntese institucional que resolva o dilema entre adoção de uma coordenação efetivada plenamente a partir do mercado e uma modalidade de regulação mais centralizada e coordenada” (DINIZ, BOSCHI, 2004, p. 27), uma re-edição do antigo problema já apontado aqui da heterogeneidade do empresariado, associado ao excessivo peso do capital externo oligopolista

e à brevidade da experiência empresarial. Perpetua-se, então, a dificuldade da burguesia brasileira de constituir sua consciência de classe, na medida em que

passa-se progressivamente a novas configurações marcadas pela diversificação, diferenciação e fragmentação da estrutura de representação, inviabilizando-se qualquer ação coordenada com o encurtamento do horizonte temporal, a crescente instabilidade macroeconômiica e a ausência de políticas industriais (DINIZ, BOSCHI, 2004, p. 33).

Associada, então, ao adensamento da sociedade civil que acompanhou a liberalização da década de 1980 houve sua fragmentação, que relativamente ao empresariado se expressou com “maior densidade organizacional acompanhada do aumento da fragmentação interna” (DINIZ, BOSCHI, 2004, p. 43). Ou seja, mesmo que se possa dizer que haja um alto poder de mobilização e organização do empresariado na década de 90 (MANCUSO, 2007, p. 136-137), houve pouca incidência sobre a orientação política dos governos de forma clara e efetiva e surgem divisões importantes nos setores.

O aumento da densidade organizacional se dá também por meio da absorção de práticas racionalizadas na própria ação classista, como o incremento da capacidade de produzir informações, acompanhar a implementação e monitorar políticas, da profissionalização das organizações, sobretudo em função das atividades de lobbying, e do aumento do grau de complexidade das estruturas das entidades. Esse processo está vinculado, no âmbito político, com o “redirecionamento das atividades de intermediação de interesses do âmbito do poder Executivo para o Legislativo, em parte estimulada pelo simultâneo processo de re-democratização que teve lugar ao longo da década de 1990 no Brasil” (BOSCHI, 2012, p.1). Há, então, certo deslocamento dos canais de relacionamento entre a burguesia e o Estado, assim como do modelo, associado à reestruturação das formas organizativas do empresariado. Isto fica patente com a transferência da responsabilidade de deliberar sobre as concessões do nível Executivo para o Legislativo, definida pela Constituição de 1988.

A especialização50 das estruturas de representação dos industriais foi forçada, no plano econômico, pela competição nos circuitos globalizados e pela participação estrangeira no cenário doméstico. Esse processo se dá, simultaneamente, à permanência da estrutura dual de representação, porém com mudança de eixo do marco compulsório (sindicatos e confederações) para o marco voluntário (associações) (DINIZ; BOSCHI, 2004, p. 76-77).

Há também um aparente descompasso entre as elites políticas e as elites econômicas, fenômeno que deita raízes em práticas antigas, haja vista que os partidos sempre foram secundários na estratégia empresarial de se relacionar com o Estado (DINIZ, BOSCHI, 2004, p. 47; BOITO JR, 2007, p. 69) e que “o Executivo deixa de ser a arena privilegiada dos interesses do capital doméstico para se tornar a ponte por excelência entre mercado interno e os fluxos globalizados, por meio de novas modalidades de intervenção” (DINIZ, BOSCHI, 2004, p. 148).

Dentre as modificações no cenário que poderíamos destacar como importantes, apresenta-se a hipótese de que durante os governos do PT houve ascensão política da grande burguesia nacional (exportadora, principalmente) sem ruptura, entretanto, com a hegemonia do capital financeiro internacional (BOITO JR, 2007, p. 60). Dessa forma, no bloco de poder esse grupo teria ganhado força, embora continuasse em posição desfavorável frente aos poderosos global

players.

Dentro desse quadro apresentado, nos interessa saber como o empresário de comunicação se localiza no interior de sua classe social, na medida em que controla um setor de característica muito peculiar: a produção de mercadorias essencialmente ideológico-simbólicas. Não se trata, pois, de um ramo econômico qualquer, mas de estruturas fundamentais na produção cultural das sociedades contemporâneas e, logo, das cosmovisões que circulam no meio social.