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Emergência de uma comunicação burguesa no Brasil

Ao longo de um prolongado processo, efetivou-se, no Brasil, o rompimento com o imobilismo da ordem tradicionalista e organizou-se a modernização como processo social. A esta transformação, entendida como fenômeno estrutural, e não como episódio histórico, Florestan Fernandes chamou de “revolução burguesa”. Compreendê-la trata-se de “determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura” (2006, p. 37). Apesar das diferenças nos ritmos, das nuances e dos obstáculos enfrentados por essas mudanças nos diversos domínios da vida nacional, o país vai se

deparar com uma nova auto-imagem, marcada pela vida urbana, pela mercantilização do trabalho, pela formação da sociedade de classes e pela ordenação das relações sociais em termos de competitividade.

Longe de repetir as estruturas do modelo “clássico” do capitalismo, a especificidade da condição do Brasil como país dependente e subdesenvolvido faz com que se problematize a revolução burguesa, mostrando-nos que o caminho trilhado e apontado por esta não repete aqueles seguidos pelas burguesias dos centros hegemônicos. Decorre disto que a organização do poder na economia, na sociedade e no Estado, assim como as opções e comportamentos coletivos vão responder a outras demandas, determinadas por particularidades históricas e estruturais que não correspondem necessariamente à realidade de países que consolidaram suas democracias- liberais.

Nó górdio da revolução burguesa no Brasil, a articulação do setor urbano-comercial (“setor novo”) com (1) o sistema de produção escravista interno, assim como com (2) os mercados e o sistema de produção das nações hegemônicas, atuou como fomentador da consolidação do mercado capitalista moderno e sua difusão. Por outro lado, concentrou as transformações em determinados setores (grupos de rendas altas e médias, ou baixas quando vinculadas ao incipiente setor urbano-comercial) e atrofiou fatores fundamentais para a constituição da autonomia nacional frente aos interesses externos. Mantida a dupla articulação, o agente econômico da economia dependente encontra-se em condições de realizar as revoluções econômicas intrínsecas à transformação capitalista, mas não de levá-las ao ponto de ruptura com o próprio padrão de desenvolvimento capitalista dependente (FERNANDES, 2006, p.293).

Com o destino emaranhado nessas condições, assim se deu o processo de emergência e expansão do capitalismo competitivo no Brasil, definindo seus agentes, suas estruturas e suas funções. Seguindo as orientações de Florestan Fernandes, consideramos a fase de formação e expansão do capitalismo competitivo como abrangendo o período compreendido entre o último quartel do século XIX e a década de 1950 (precedida pela fase de eclosão de um mercado capitalista moderno e seguida da fase de capitalismo monopolista).

Inserida nesse processo, a imprensa brasileira não passou incólume. Pôde ser observada a emergência de novas configurações no setor, vinculadas ao momento pelo qual passava o país na virada do século XIX para o século XX. É nesta fase que Florestan Fernandes definiu como de

formação e expansão do capitalismo competitivo que Nelson Werneck Sodré identificou a consolidação da “grande imprensa”.

Embora seja exagerado se tratar o caso como se houvesse nesse momento uma imprensa aos moldes das empresas jornalísticas norte-americanas e européias, em que a idéia de um vultoso capital e de um público massivo estivessem em cena, alguns aspectos de uma maior ênfase nos aspectos mercantis já podiam ser sentidos. O processo de mudança na comunicação se vincula às transformações mais amplas do capitalismo no Brasil, sem deixar de obedecer à sua dinâmica interna, que define as novas configurações em termos de conteúdo, de técnica, de divisão do trabalho, de fatores de pressão econômicos e políticos, de controle, de gestão e de propriedade. Figuras como a de Irineu Marinho, nos primeiros anos de 1900, vão arriscar, assim, inovar na capital do país (Rio de Janeiro), buscando fazer um jornalismo mais “popular”, explorando o fait

divers e o policialesco, buscando atingir o “Zé- Povo” que não tem lugar nos “grandes debates”

da imprensa da época (CARVALHO, 2012) e afinando-se com o espírito capitalista emergente e sua tendência para o universalismo (ainda que articulando-se com o imobilismo vigorante no país).

Como espaço privilegiado de debate, difusão de idéias e de expressão de ideologias e utopias, os jornais aparecem como fundamentais no processo de organização dos agentes dinâmicos que se embatem na arena em que se expande a ordem social competitiva e cada vez mais se tornam eles mesmos meios de reproduzir riqueza. Os pólos, assim, se retroalimentam fazendo com que de certa forma “coincidam” o desenvolvimento da comunicação de massa e do capitalismo competitivo.

Como os outros jornais do tempo, uns mais, outros menos, a Província de São Paulo, que esse foi o título adotado , vivia de anúncios (de casas comerciais de amigos, de falecimentos, de missas, de partida de navios em Santos, de espetáculos de teatro, de chegada de médicos da Corte, de negros fugidos), e de assinaturas, estimuladas por prêmios sorteados com a loteria [...]. Não havia venda avulsa. Esta foi iniciada pelo novo jornal, a 23 de janeiro de 1876: o ajudante de impressor, Bernard Gregoire, tocando buzinas nas ruas. A população achou aquilo um despautério, houve repulsa à iniciativa que levaria à “mercantilização da imprensa”. (SODRÉ, 1999, p. 226)

A citação acima demonstra como a resistência da população brasileira aos padrões exigidos por uma ordem social competitiva incidia sobre os impulsos de transformação da imprensa, ainda no último quartel do século XIX. A mentalidade dos agentes sociais, mesmo aqueles que

representavam o capitalismo comercial, encontrava-se profundamente vinculada ao padrão de dominação estamental. O mercado não era a referência para o “espírito burguês”, que já nascia deformado pela tutela senhorial (negação da condição burguesa). “Como o setor agrário, o “setor mercantil” iria definir sua compreensão da “iniciativa privada” e da natureza da “competição” em termos estamentais: como um privilégio” (FERNANDES, 2006, p.223). Como o que predominava era o trabalho escravo, e não o trabalho como mercadoria, não se estimava o valor das coisas a partir desta referência.

A necessidade do setor dinâmico, urbano-comercial, de se apoiar política e socialmente nas camadas estamentais fazia com que compartilhasse com estas o horizonte cultural, “polarizado em torno de preocupações particularistas e de um estranho conservantismo sócio-cultural” (FERNANDES, 2006, p. 241). Isto não impedia que as transformações ocorressem (seguiu-se a arregimentação de jornaleiros, criação de bancas e pontos de venda), mas as envolvia em uma bruma de incompreensão, como a que bloqueava a visão de que a mercantilização da imprensa já havia sido “inaugurada” e a que encobria seu significado na transformação geral da sociedade brasileira.

Os protestos seguiam:

No Rio não existe hoje [1883] um só jornal que possa, com fundamento, exercer influência política. Toda imprensa daqui é somente de especulação; nenhum jornal tem um programa definido, nenhum pertence a qualquer partido, nenhum representa qualquer idéia: o pessoal quer somente ganhar público e vender muitos exemplares, e como o público não pode absolutamente ser sério, mas sempre precisa estar rindo e caçoando, assim é servido. [...] Todos os esforços das folhas se orientam exclusivamente para o ganho, e uma imprensa assim constituída não está, realmente, em situação de reforçar ou apoiar as situações políticas (KOSERITZ apud SODRÉ, 1999, p. 232).

O exagero é patente. A imprensa daquela época é conhecida hoje justamente pela suas discussões, pela combatividade de boa parte de seus expoentes em questões relativas à sacralidade de instituições como a escravidão, a monarquia e o latifúndio. Por outro lado, o conservadorismo do jornalista aponta (sem clareza) a acomodação de novas estruturas, estranhas à mentalidade de uma ordem senhorial que se encontra longe de estar superada.

Mesmo a mudança de regime, em 1889, não alterou o desenvolvimento da imprensa. O crescimento dos jornais organizados a partir de lógicas empresariais, em detrimento dos pequenos jornais feitos por um homem só ou por poucos, prosseguiu, embora lentamente. Em 1891, por

exemplo, o Rio de Janeiro possuía como grandes jornais apenas Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, O País, Diário de Notícias e Jornal do Brasil, e, concomitantemente, uma série de pequenos jornais.

A marca destes grandes jornais, de acordo com a citação de Max Leclerc feita em Sodré (1999, p.252), seria sua organização material em termos de empresa comercial, visando penetrar em todos os meios e estender o círculo de leitores para aumentar o valor de sua publicidade, ao mesmo tempo em que ostenta certa independência ou ceticismo zombeteiro. Os pequenos seriam definidos pela sua ineficiência para os negócios, sua manutenção em termos de subvenção por parte de partidos, grupos ou políticos e pela vinculação entre seu sucesso e a eminência dos seus mantenedores.

A consolidação da ordem social competitiva se deu em países de capitalismo dependente com a absorção de instituições e critérios que a tornam diversa do modelo clássico. Uma de suas marcas é o autoritarismo.

Além disso, o mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de interesses feridos, não deixava de pô-lo em prática em suas relações sociais, já que aquilo fazia parte de sua segunda natureza (FERNANDES, 2006, p. 241).

A história da imprensa na virada do século XIX e ao longo de uma boa parte do século XX é povoada dos típicos “empastelamentos”: linchamento de veículos impressos, com a destruição da estrutura das oficinas, dos equipamentos e dos materiais tipográficos, dirigido a adversários políticos. As camadas dominantes utilizavam-se preferencialmente das estruturas estatais de poder, do seu privilégio de acesso, para sufocar as possíveis oposições.

A violência pura se fazia como instrumento de intimidação e submissão dos adversários, revelando a inadequação de noções como a de democracia, liberdade de expressão, pluralidade de idéias, importadas dos modelos clássicos liberais de revolução burguesa, quando aplicadas à realidade brasileira. O impulso em direção à modernização não incorporava necessariamente a aplicação política dessas palavras de ordem. Todavia, não deixaram esses ideais de aparecer no espaço público nacional, emergindo nas reivindicações mais enfáticas, nos debates mais calorosos, quando, na verdade, distorciam o descompasso entre os valores e as práticas das camadas dominantes e ascendentes. A democracia aparecia como uma busca sincera por modificações, mas com limites bem definidos englobando apenas um pequeno grupo de

privilegiados e com vistas ao equilíbrio, eficácia e continuidade da dominação estamental. “Povo”, “nação” e “opinião pública” indicavam apenas que os diversos estratos das camadas superiores deveriam ser levados em conta de alguma maneira (FERNANDES, 2006, p. 63).

As “idéias fora do lugar” tinham seu papel prático no impulso modernizador que alimentava as transformações pelas quais passava o Brasil, forçando a ampliação do horizonte senhorial. Porém, enleadas no emaranhado de interesses e privilégios estamentais, perdiam sua força transformadora no momento seguinte, realimentando o conservadorismo ou a reação.

A continuidade de critérios da ordem senhorial não impediu que a imprensa desenvolvesse o seu potencial mercantil. No entanto, permeou seu caminho de desmandos e subverteu a compreensão das modernizações em andamento que solapavam as antigas instituições, o que nas folhas impressas encontrava um lugar privilegiado de debate e interpretação. A nova dinâmica da sociedade brasileira se reencontrava com antigas práticas e com representantes da dominação senhorial, reabsorvendo-os de acordo com seus interesses e arcando com as conseqüências que daí derivavam. Mas a informação já havia tomado o caminho que aos poucos lhe transformava em mercadoria, as empresas jornalísticas atraído capitais, a divisão do trabalho se ampliado e a longevidade dos jornais com perfis mais comerciais se ampliado.

O nível de produtividade da grande lavoura de café, a eficácia do esquema comercial de importação e exportação, a expansão do setor-urbano comercial e a pressão sobre os centros hegemônicos do capitalismo no sentido da integração com as economias da periferia (FERNANDES, 2006, p. 272) propiciavam as condições e exigiam a transição para os padrões do capitalismo comercial. As grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, passando por processos de explosão demográfica, na virada para o século XX começavam a perceber que nas condições de então era “mais fácil comprar um jornal do que fundar um jornal; e é ainda mais prático comprar a opinião do jornal do que comprar o jornal” (SODRÉ, 1999, p.276).

Sodré afirma que nesse momento a preocupação fundamental dos jornais é o fato político, e não a política. As questões giram em torno de atos, pensamentos e decisões de indivíduos que protagonizam eventos nesse plano. “Não se trata de condenar a orientação, ou a decisão, ou os princípios [...], trata-se de destruir a pessoa, o indivíduo” (1999, p. 276), de eliminar o concorrente na disputa pelo acesso ao poder. Essa postura corresponde à constatação de Fernandes que viu no empresariado do começo do século XX as limitações e inibições do desenvolvimento econômico sob o capitalismo dependente, assim como a falta de combatividade

frente às tendências mais ou menos estáticas de contemporização diante da dupla articulação (com os poderes arcaicos internos e com o mercado e sistema de produção dos centros hegemônicos) (2006, p. 284). Não se enfrentou as restrições que a estrutura sócio-política impunha ao desenvolvimento das potencialidades dos setores nacionais avançados, mas em seu lugar, apenas questões contingentes relacionadas a qual fração do grupo dominante controlaria a máquina burocrática e quais setores seriam privilegiados.

As empresas jornalísticas do começo do século viviam, no geral, à base do capital comercial e do Estado. Estando este nas mãos das elites latifundiárias; aquele, pelo menos no Rio de Janeiro, encontrava-se principalmente na mão de portugueses. A dupla articulação se reproduzia carnalmente no interior da imprensa, no seu vínculo com o poder estamental das oligarquias ou na sua “flexibilidade” diante das paixões nacionalistas. Apesar de que o fato de ser português não seria suficiente para “desnacionalizar” o capital, também não o é para se ater a valores e posições nativistas. Dificilmente se desafiaria a intromissão estrangeira nas questões nacionais se isso não significasse algum bom negócio a curto e médio prazo (como comprova a trajetória de Assis Chateaubriand, um “entreguista” de carteirinha e “nacionalista” ferrenho, de acordo com a ocasião).

Na década de 1920, a tiragem do jornal (venda avulsa) pesava ainda mais do que a publicidade na vida dos jornais, o que permitia que a pequena burguesia urbana influísse na linha dos jornais, livres da pressão econômica que pesariam mais adiante na sua orientação (SODRÉ, 1999, p.356). Porém, mesmo que essas frações de classe desempenhassem o papel de vanguarda apontado pelo historiador, faziam-no, como nos diz Fernandes, a partir dos marcos de uma “revolução dentro da ordem”, enquanto “associados menores, que cumpriam suas funções inovadoras e por vezes até revolucionárias resguardando obstinadamente o núcleo do status quo” (2006, p. 192). E isto aconteceu justamente pela capacidade que as estruturas da ordem senhorial e escravocrata dispuseram de deformar o processo de elaboração estrutural e dinâmica da nova ordem social competitiva, vinculando os grupos em ascensão ao desnivelamento de privilégios econômicos, políticos e sociais.

Esta imprensa ajudou a criar o clima de histeria que possibilitou as violências e arbitrariedades que culminaram no Estado Novo, o monstro que se voltou contra a própria esfera pública nascente, sufocando-a e imprimindo nova dinâmica a ela. O quadro que se apresentou logo após o fim da ditadura Vargas era o da consolidação da imprensa moderna, com poucos

grandes veículos impressos, concentração de capital e controle na mão de poucos grupos empresarias (o que em certa medida corresponde ao papel que a ditadura militar desempenhou na consolidação da indústria cultural, no geral, e da televisão, em particular). Com a difusão do rádio e a chegada da televisão, estavam lançadas as sementes dos oligopólios que iriam posteriormente caracterizar a moderna indústria cultural que iria emergir de braços dados com o capitalismo monopolista que avançava sobre a sociedade brasileira.