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A concepção da família na Constituição Federal de 1988 e a arquitetura

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 40-46)

1. A TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA NA ESTRUTURA DA ORGANIZAÇÃO

1.5 A concepção da família na Constituição Federal de 1988 e a arquitetura

Ao dedicar um capítulo próprio à família, a Constituição Federal de 1988 fixou diretrizes consubstanciadas, principalmente, na igualdade entre os cônjuges e paridade entre os filhos, na dissolubilidade do vínculo conjugal e do matrimônio, no reconhecimento expresso de outras formas de constituição familiar ao lado do casamento, como as uniões estáveis e as famílias monoparentais, na paternidade responsável e, sobretudo, estabeleceu a restauração da primazia da pessoa nas relações familiares, delineando o direito de família como um espaço de realização da dignidade da pessoa humana, o que se dá mediante a convivência e a solidariedade familiar. 43

Dessa forma, o texto constitucional traçou novos rumos para o direito de família, criando algumas regras fundamentais (art. 226 da Constituição Federal): a) a conceituação da família como base da sociedade e sob proteção do Estado (caput); b) a

43 Discorrendo sobre o novo conceito de família trazido pela Constituição, Francisco José Cahali observa:

“Constata-se da análise objetiva do texto constitucional ter sido mantida a histórica qualificação da família como base da sociedade; e, ao mesmo tempo, apartando-se do tradicional amparo à família constituída exclusivamente pelo casamento, estendeu-se a proteção do Estado também à entidade familiar constituída pela união estável entre o homem e a mulher, ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus

instituição da família pelo casamento (parágrafo 1º); c) a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal (parágrafo 5º); d) a dissolubilidade do vínculo matrimonial pelo divórcio (parágrafo 6º). Além disso, a Constituição reconheceu como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, parágrafo 4º), bem como a união estável entre homem e mulher para fins de proteção do Estado (parágrafo 3º), a par de outras regras sobre deveres da família, sobre planejamento familiar, sobre adoção e sobre mecanismos de defesa do menor e do idoso (artigos 226 e 227 e seus parágrafos).44

Ressalte-se, todavia, que a Constituição Federal de 1988 apenas reconheceu uma evolução que já estava latente na sociedade brasileira. A mudança na família brasileira não ocorreu a partir da nova ordem constitucional, uma vez que foram constitucionalizados valores que já estavam impregnados e disseminados no seio da sociedade. De fato, o texto constitucional de 1988 contemplou e abrigou uma evolução da concepção social e jurídica da família, que já vinha sendo admitida na doutrina e na jurisprudência anterior.45

Um dos aspectos a se considerar é a proteção do Estado à família. Neste sentido, a família atual passou a ter especial proteção do Estado, constituindo-se tal protecionismo em um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. Acerca do tema, doutrina Paulo Luiz Netto Lôbo: “A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas Constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico.”46

44 Bittar, Carlos Alberto; Bittar Fillho, Carlos Alberto. Direito civil constitucional. 3. ed. rev. e atual. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 59.

45 Oliveira, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002, p. 91.

46 Lôbo, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de

Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 6, n. 24, p. 136 – 156, jun./jul., 2004. Note-se, outrossim, que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 16.3, prevê: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.”

Na perspectiva histórica, observamos que ao longo de todo o século XX o Estado liberal, base das grandes codificações oitocentistas, era marcado pela limitação do poder político e pela não intervenção nas relações privadas e no poder econômico. Este Estado liberal deu lugar ao Estado social, diferenciado pela intervenção nas relações privadas e no controle do poder econômico com o objetivo de garantir a solidariedade e a justiça social.

Após a Primeira Guerra Mundial, principalmente com a Constituição de Weimar (Constituição Alemã de 1919), surgem os chamados direitos sociais como elementos de identificação do Estado social. Cria-se, dessa forma, um novo modelo político-jurídico, baseado no dever do Estado em garantir a todos os seus cidadãos um mínimo de bens materiais e culturais, ou propiciando os meios para que eles possam obtê- los pelo seu trabalho (direito ao trabalho, direitos dos trabalhadores, liberdade sindical, direito de greve, direito à saúde, direito à assistência social, limitações à propriedade etc.).47

A partir de então, é notória a preocupação dos Estados em formular sistemas jurídicos constitucionais norteados não apenas pela igualdade formal (concepção de que todos os homens são iguais perante a lei), mas também na igualdade material ou substancial (consubstanciada na efetiva igualdade entre os cidadãos e na imposição de deveres ao Estado, no sentido de proporcionar mecanismos e instrumentos para o alcance desta igualdade concreta).

No âmbito do direito de família, o intervencionismo do Estado social teve por escopo eliminar a noção do liberalismo burguês, que entendia a família como unidade política e econômica, comandada por um chefe patriarcal, e que por se tratar de instituto eminentemente privado, não admitia a intervenção do poder político. Passa-se, pois, a ser

admitida a influência do Estado na família, de forma que no Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, até a Constituição de 1988, a família foi sendo, crescentemente, abrangida por normas de efeito protecionista.

Denota-se, assim, o caráter protecionista do Estado social refletido na atual Constituição brasileira. Vê-se, ao lado da idéia de que a família é a base da sociedade e que, portanto, não pode indiscriminadamente sofrer uma violação estatal, a noção de que há certos interesses inseridos no ambiente familiar que deixam de ter um aspecto exclusivamente privado, para se situarem na perspectiva dos interesses públicos e sociais.48

Para corroborar, os ensinamentos de Paulo Luiz Netto Lôbo no que tange à expansão protecionista do Estado ante a família:

“A Constituição de 1988 expande a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação que se tem notícia, entre as constituições mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados:

a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições, explícita ou implicitamente tutelada pela Constituição; b) a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações;

c) os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes;

d) a natureza socioafetiva da filiação prevalece sobre a origem exclusivamente biológica;

e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos;

48 Sobre o assunto, vale citar as palavras de Eduardo A. Zannoni (em idioma original): “En otras palabras, el

derecho de família se integra en el derecho civil ratione materie – en razón de la materia - aunque el

contenido de las relaciones juridicas familiares transcienda el mero interes particular de los indivíduos para satisfacer, en muchos casos, contenidos de orden público. No dejan de ser relaciones de coordinación entre personas, auque estén en función – o para lograr – la satisfacción de interesses familiares.” (Derecho civil.

Derecho de família. Tomo 1. 2. edición actualizada y ampliada. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1993, p. 32).

f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal; g) a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.”49

Percebe-se, de tudo isso, que o antigo direito de família codificado assume uma conotação de direito constitucional de família, norteado por uma série de princípios e direitos fundamentais destinados às relações familiares. Destarte, a paridade dos cônjuges nos direitos e obrigações, a igualdade entre os filhos e o reconhecimento da família plural, formada pelo casamento, pelas uniões estáveis e pelas comunidades de um dos pais e seus descendentes apontam para um modelo constitucional de família aliado aos valores da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial.

Vale lembrar, ainda, que a proteção constitucional às entidades familiares não fundadas no casamento (art. 226, parágrafo 3º) e às famílias monoparentais (art. 226, parágrafo 4º); a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal (art. 226, parágrafo 5º); a garantia da possibilidade de dissolução da sociedade conjugal independentemente de culpa (art. 226, parágrafo 6º); o planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, parágrafo 7º) e a previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica (art. 226, parágrafo 8º) trazem à tona a idéia de que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as diversas relações familiares de uma forma geral. Desta feita, a proteção da família como

49 Lôbo, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de

instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela dirigida essencialmente à dignidade de seus membros.50

Conclui-se, portanto, que a família ultrapassa o seu papel meramente institucional, no qual, de fato, é merecedora de proteção em virtude de representar um organismo social relevante para a formação do Estado, assumindo também um caráter instrumental, e passando a ser considerada um núcleo necessário para o desenvolvimento da personalidade e de promoção da dignidade de seus membros. Em outros termos, o elevado caráter “patrimonialista” do antigo modelo familiar é substituído por uma formação de família em que as relações entre os indivíduos são vistas como instrumentos de proteção e desenvolvimento da personalidade.

50 Tepedino, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 397. Sobre a

violência doméstica e familiar contra a mulher, vale citar, ainda, a Lei 11.340/06, que recebeu o nome de “Lei Maria da Penha”.

2. O DIREITO DE FAMÍLIA E A HERMENÊUTICA CIVIL

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 40-46)