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A constitucionalização do direito de família

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 50-55)

2. O DIREITO DE FAMÍLIA E A HERMENÊUTICA CIVIL

2.1 A constitucionalização do direito de família

A Constituição Federal de 1988 instaurou o estatuto jurídico da família contemporânea, concretizando, enfim, o que se passou a denominar de “constitucionalização do direito de família”, fator marcante da travessia do direito clássico ao direito contemporâneo.

Constata-se, pois, que a Constituição Federal de 1988 expandiu a proteção do Estado à família, promovendo a mais profunda transformação de que se tem notícia, inclusive entre as constituições recentes de outros países.

De toda a sorte, a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância, pelos cidadãos, e a aplicação, pelos tribunais, da legislação infraconstitucional.55

Como já ressaltado, o Estado social, por meio de princípios e valores constitucionais, prevê um processo intervencionista estatal em relações privadas, inclusive no que concerne às relações decorrentes do direito de família, o que demonstra, nitidamente, uma feição constitucionalizada dos modelos familiares contemporâneos. É

55 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. In: Farias, Cristiano Chaves de (coord.),

Leituras complementares de direito civil – o direito civil-constitucional em concreto. Salvador: Podivm, 2007, p. 22.

certo que o fundamento de validade primário das relações familiares está na Constituição Federal e é dessa forma que Estado intervém em uma espécie de relação jurídica que permanece com a sua natureza privada.56

Com efeito, o Direito de Família constitucionalizado, além de retirar o seu fundamento de validade do texto constitucional, encontra nele as diretrizes para a aplicação da legislação infraconstitucional correspondente.

É, portanto, o intervencionismo do Estado social aplicado ao direito de família, a partir da constitucionalização dos seus princípios e regras fundamentais, norteando e impondo limites para a correta aplicação da legislação infraconstitucional.

Nessa ordem de idéias, é importante destacar que a constitucionalização tem por objetivo submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos, o que de fato ocorreu com o direito de família. Com isso, a Constituição deixa de ser uma regra que unicamente contém elementos de direito público e passa a conter, de forma direta, normas de conteúdo privado. Em outras palavras, os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.

56 No que concerne ao intervencionismo estatal no direito de família, é válida a transcrição das palavras de

Paulo Luiz Netto Lôbo: “O Estado social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução dos poderes domésticos – notadamente do poder marital e do poder paterno -, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana. No Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, até a Constituição de 1988, a família é destinatária de normas crescentemente tutelares, que assegurem a liberdade e a igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade.” (Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 04). No mesmo sentido é a tese de Ricardo Luis Lorenzetti: “O conteúdo civil das normas constitucionais deve ser delimitado em função do conteúdo material, estando constituído por aquelas regulamentações relativas à pessoa, a sua dimensão familiar e patrimonial, às relações jurídicas privadas gerais. A este critério material, deve ser adicionado outro de índole formal, derivado do caráter de norma fundamental que tem a Carta Magna, e, por isto, trata-se de normas destinadas a fixar as bases mais comuns e abstratas das relações civis.” (Fundamentos

Pode-se dizer, a rigor, que o direito privado e, em especial, o direito de família, não possui, nesta visão, espaços absolutos e intangíveis, característicos do individualismo reinante no início do século passado.

Para corroborar, as palavras de Gustavo Tepedino:

“A rigor, não há espaços de liberdade absoluta, ou territórios, por menor que sejam, que possam ser considerados invulneráveis ao projeto constitucional, cabendo ao intérprete, em definitivo, não propriamente compatibilizar institutos do direito privado com as restrições impostas pela ordem pública senão relê-los, revisitá-los, redesenhando o seu conteúdo à luz da legalidade constitucional.”57

Destarte, o direito privado se viu modificado por normas constitucionais que incorporaram em seu texto inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais. A forte constitucionalização do direito civil, trazida com a promulgação da Constituição de 1988, fez com que o direito de família, em todos os seus aspectos, fosse interpretado em relação à Lei Maior. 58

Diversa, contudo, é a idéia de “publicização”, a qual deve ser entendida como o processo de intervenção legislativa infraconstitucional, visando ao controle do espaço privado, baseado em regras e diretrizes constitucionais. Tem-se, pois, a redução do espaço de autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica de interesses considerados de ordem pública.59

57 Tepedino, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 21.

58 Encontramos o fenômeno da constitucionalização do direito civil também na Constituição portuguesa de

1976 e na Constituição espanhola de 1978.

59 Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, “a influência absorvente do Estado e a necessidade de se

instituírem, com mais segurança e amplitude, fórmulas cada vez mais dirigidas no sentido de realizar a finalidade precípua do direito que se positiva e se afirma no propósito de garantir proteger o bem-estar do indivíduo in concreto, cogitando da normação social em atenção ao bem do homem, geram a tendência à publicização da norma jurídica. Em conseqüência deste movimento acentua-se a restrição da liberdade individual, tomando corpo a estatização de numerosos serviços e intervindo o Estado em matérias que antes

Em síntese estreita, Paulo Luiz Netto Lôbo define o fenômeno da “publicização”:

“Durante muito tempo, cogitou-se de publicização do direito civil, que para muitos teria o mesmo significado de constitucionalização. Todavia, são situações distintas. A denominada publicização compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, característica do Estado Social do Século XX. Tem-se a redução do espaço de autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica dos mais fracos. A ação intervencionista ou dirigista do legislador terminou por subtrair do Código Civil matérias inteiras, em alguns casos transformadas em ramos autônomos, como o direito do trabalho, o direito agrário, o direito das águas, o direito da habitação, o direito de locação de imóveis urbanos, o estatuto da criança e do adolescente, os direitos autorais, o direito do consumidor.”60

Podemos dizer, assim, que o fenômeno da publicização do direito civil é caracterizado pelo processo de intervenção legislativa infraconstitucional, ao passo que a constitucionalização do direito civil tem por escopo submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos.

Vale frisar que a intervenção estatal nas relações familiares deve ter por propósito garantir aos membros da família condições propícias à manutenção do núcleo afetivo, o que jamais pode ser realizado por meio de ingerências ou violações injustificadas à intimidade e privacidade dos seus membros. Assim, saúde, higiene, alimentação, segurança, educação e uma velhice digna são funções a serem cumpridas pelo Estado atual.

eram relegadas exclusivamente ao arbítrio de cada um.” (Instituições de direito civil. 20. ed. ver. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. I, p. 18).

60 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. In: Farias, Cristiano Chaves de (coord.),

Leituras complementares de direito civil – o direito civil-constitucional em concreto. Salvador: Podivm, 2007, p. 22.

O Estado tem consciência da importância da família e, por isto, preocupa-se em regulamentá-la sem interferir na vida privada de seus membros. Ademais, a manutenção do liame familiar é deixada ao livre arbítrio dos seus membros, de forma que o Estado não tem mais o poder e o direito, como fazia anteriormente, de impor a união familiar.61

Nesse diapasão, o poder público deve intervir para garantir a preservação da natureza dos institutos do direito de família, sem, contudo, retirar dos indivíduos uma certa margem de liberdade, fundamental para o exercício da autonomia privada e relevante em determinadas questões familiares.

Não obstante a aludida constitucionalização, não devemos entender que a incidência no direito de família, de preceitos e princípios constitucionais e de ordem pública, lhe retira o caráter essencialmente privado.62 A intervenção pública deve ser adequada e justificada, no sentido de garantir a dignidade e felicidade de cada um dos membros do grupo familiar, destacando, inclusive, a disciplina constitucional da “Ordem Social” que prevê a atuação estatal nos campos da seguridade social, saúde, previdência social, assistência social, educação, dentre outros.63

Trata-se, pois, de uma constitucionalização que visa à tutela instrumental da família, uma vez que o texto constitucional é transformado em mecanismo de preservação da pessoa humana e dos atributos a ela inerentes. A proteção constitucional da família tem

61 Oliveira, José Sebastião de. Fundamentos constitucionais do direito de família. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2002, p. 281.

62 Neste aspecto, Luiz Edson Fachin ressalta: “Se o Direito de Família pertence ao âmbito do Direito Privado,

razões fundamentais embasam essa afirmação. As relações entre os seus membros são informadas pela coordenação. A constituição da família é um ato de liberdade, tal como formalmente prevista a liberdade, seja a família matrimonializada ou não. No privado, o desejo de fundar uma unidade que se repute família. O divórcio vincular também espelha que a ninguém é imposto o dever de continuar mantendo uma unidade familiar; a possibilidade de desconstituir uma unidade que se repute família, assumindo as seqüelas respectivas.” (Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 76). Por sua vez, o juiz português Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues observa: “Por isso há quem defenda, hoje, a inclusão do Direito de Família no hemisfério do Direito Público, mas, mesmo sem ser necessário retirar à esfera do Direito Privado este seu ramo nobre, a verdade é que é inegável o seu carácter eminentemente publicista.” (Alguns aspectos da filiação nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro. In: Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord.), Direitos de família e do menor: inovações e

tendências – doutrina e jurisprudência. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 57).

por objetivo a tutela da própria pessoa, sendo inadmissível atingir a dignidade do indivíduo sob o pretexto de garantir proteção à família enquanto instituição. Em outras palavras, preserva-se a família não apenas por constituir uma célula social importante para a formação do Estado, mas também por representar um núcleo de formação e desenvolvimento da personalidade e dignidade individual.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 50-55)