• Nenhum resultado encontrado

As relações familiares sob a ótica do direito canônico

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 30-33)

1. A TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA NA ESTRUTURA DA ORGANIZAÇÃO

1.2 As relações familiares sob a ótica do direito canônico

Com o surgimento do Cristianismo, a Igreja Católica passou a tratar de alguns temas por meio do estabelecimento de normas denominadas cânones, que se diferenciavam das demais normas provenientes do Estado e tratavam de variados assuntos, dentre os quais a família e o matrimônio.

Dos cânones católicos, após longo e complexo período de luta entre o Estado e a Igreja, extrai-se a idéia do casamento como um sacramento solene, surgido a partir do consentimento mútuo dos nubentes. A esse respeito, Roberto de Ruggiero explica que na concepção canonista o casamento é um sacramento solene, do qual os próprios esposos são os ministros, enquanto que o sacerdote não é senão uma testemunha autorizada pela Igreja. Nas palavras do ilustre autor, “a união entre os esposos é a imagem da união de Cristo com a Igreja, e como esta, indissolúvel.”25

É também durante a Idade Média, sob os cânones da Igreja, que a idéia do matrimônio com a conotação contratual torna-se lógica e natural. Nessa perspectiva, o direito canônico privilegia o consentimento dado no momento inicial do casamento, capaz de gerar entre as partes um vínculo jurídico indissolúvel.

Registre-se, ainda, no que se refere à formação do matrimônio, que além da doutrina da Igreja determinar que o consenso e a declaração de vontade eram aptos para a criação do vínculo conjugal estabelecido entre o casal, preconizava também que tal consenso devia ser seguido da cópula carnal, para que o fato fosse, então, considerado como ato jurídico irretratável.26

25

Ruggiero, Roberto de. Instituições de direito civil. 2. ed. Trad. da 6. ed. italiana e atualização da obra em conformidade com o novo Código Civil, por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 2005, v. II, p. 102.

26 Salienta Arnoldo Wald que “durante a Idade Média, as relações de família se regem exclusivamente pelo

De fato, até os dias atuais, a Igreja Católica determina a indissolubilidade do casamento, fazendo, para tanto, uma analogia com a indissolubilidade da união de Cristo com a humanidade.

Acrescente-se, pois, que os canonistas reconheciam três aspectos do matrimônio: sob o primeiro aspecto, dever da natureza, officium naturae, que tem por fim a procriação; sob o segundo, os efeitos exteriores na sociedade civil; e, finalmente, sob o terceiro, o sacramento.27

Uma vez reconhecido o caráter sagrado do casamento, o concubinato foi então combatido pelo cristianismo, acentuando-se a sua reprovação nos Concílios de Trento, em 1563, que estabeleceu a obrigatória e formal celebração do casamento, com a exigência também do seu assento em registros paroquiais. Além disso, foi extinto o casamento presumido e condenado à morte o concubinato, com o estabelecimento de penas severas para os concubinos recalcitrantes, os quais poderiam ser excomungados e até declarados hereges.28

Nessa ordem de idéias, os preceitos canônicos restringiam garantias aos filhos havidos fora do matrimônio, considerando-os ilegítimos, privando-os de todo o direito sucessório e chegando até mesmo a torná-los incapazes de exercer qualquer cargo público. Era nítida a discriminação existente entre os filhos do casamento, então chamados

(Direito de família. 9. ed. rev., ampl. e atual. com a colaboração de Luiz Murillo Fábregas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 25).

27 Miranda, Pontes de. Tratado de direito de família. Atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas:

Bookseller, 2001, p. 90.

28 Cavalcanti, Lourival Silva. União estável: a inconstitucionalidade de sua regulamentação. São Paulo:

Saraiva, 2003, p. 86. No mesmo sentido, Rainer Czajkowski: “Por fim, a influência cada vez maior da Igreja Católica no âmbito das relações familiares e a sacramentalização do casamento, aliado à sua reconhecida posição contra quaisquer uniões extramatrimoniais, orientou toda a Idade Média, e mesmo períodos subseqüentes, num sentido de grave repressão a quaisquer uniões concubinárias, jogando-as na vala comum do incesto, do adultério e do homossexualismo para, a todos, condenar indistintamente.” (União livre: à luz das Leis 8.871/94 e 9.278/96. 2. ed. 3. tir. Curitiba: Juruá, 2003, p. 55). Nas palavras de Francisco José Cahali, “durante o longo período de prevalência do direito canônico, encontramos fases de maior tolerância com as relações concubinárias e outras com severas restrições e até sanções aos concubinos” (União estável e

de legítimos, e os filhos espúrios, bastardos, não nascidos de casamento válido e que não estavam sujeitos ao “pátrio poder”.29

O direito canônico foi ainda responsável por instituir os impedimentos matrimoniais baseados na incapacidade das partes, nos vícios de consentimento ou nas eventuais relações de parentesco existentes entre os cônjuges.

A doutrina da Igreja firmou-se, deveras, ao admitir a anulação do ato por causas relacionadas à idade dos nubentes, devido a diferenças entre a religião adotada por cada um dos consortes, impotência, existência de casamento anterior, dolo para obter o consentimento matrimonial, coação, erro quanto à pessoa do outro cônjuge, ou, ainda, por razões de parentesco próximo. 30

Por outro lado, é certo que o cristianismo instituiu, durante a Idade Média, que o pai não podia ordenar a morte do filho que estivesse sob o “pátrio poder”, havendo, desta forma, um inegável abrandamento dos despóticos poderes do pater familias romano. Ocorre, contudo, que mesmo tendo havido uma diminuição dos atributos inerentes ao exercício do “pátrio poder”, o pai podia punir o seu filho fisicamente, desde que o castigo não o levasse à morte. Nesta ótica, podemos dizer que a soberania doméstica passou a encontrar barreiras no seu exercício, visando a impedir os excessos e a punir os abusos, mesmo que ainda fossem mínimas as restrições previstas.

Destaca-se neste período o início da concepção dos deveres paternos em relação aos filhos. Em sendo assim, surge a idéia de se colocar ao lado dos direitos do pai sobre os filhos os correspondentes deveres, associando a paternidade aos atributos divinos do Criador.

29 Caio Mário da Silva Pereira nota que “o velho direito costumeiro francês adotava por princípio um

brocardo simplista e incisivo: Bâstards ne succedent”. (Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. 5. ed. Rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 13).

30 Wald, Arnoldo. Direito de família. 9. ed. rev., ampl. e atual. com a colaboração de Luiz Murillo Fábregas.

Se, de um lado, o exercício do “pátrio poder” gerava certas faculdades e prerrogativas, ficou estabelecido, em contrapartida, que a figura da autoridade parental passaria a assumir os encargos relacionados à manutenção, criação e proteção da prole.

Por fim, vale observar que por muito tempo na história, inclusive durante a Idade Média, o casamento, a relação paterno-filial e, de uma forma geral, a estrutura familiar estiveram alheios a qualquer conotação afetiva. O reconhecimento da família e a proteção dos direitos dos filhos encontravam-se vinculados ao sacramento religioso do matrimônio. A família, a esta altura, apresentava um modelo hierarquizado e patriarcal, resguardado pelas diretrizes da Igreja Católica.

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 30-33)