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A família inscrita no Código Civil de 1916

No documento MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO (páginas 36-40)

1. A TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA NA ESTRUTURA DA ORGANIZAÇÃO

1.4 A família inscrita no Código Civil de 1916

Sob a égide da Constituição da República de 1891, o primeiro Código Civil brasileiro, instituído pela Lei 3.071 de 1916, previu uma família hierarquizada, na qual o marido era o chefe da sociedade conjugal, devendo ele, deste modo, exercer poderes de gerência e direção sobre os interesses e patrimônio de toda a família.37

A esse respeito, dispunha o caput do art. 233 do nosso Código anterior, in

verbis: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração

37 Consoante aos ensinamentos de Orlando Gomes, “o Código refletia ao tempo de sua elaboração, a imagem

da família patriarcal entronizada num país essencialmente agrícola, com insignificantes deformações provenientes das disparidades da estratificação social. Sob permanente vigilância da Igreja, estendida às mais íntimas relações conjugais e ao comportamento religioso, funcionava como um grupo altamente hierarquizado, no qual o chefe exercia os seus poderes sem qualquer objeção ou resistência, a tal extremo que se chegou a descrevê-la como um agregado social constituído por um marido déspota, uma mulher submissa e filhos aterrados.” (O novo direito de família. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1984, p. 64).

da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.” Na lição de Denise Damo Comel, o Código Civil de 1916 atribuiu ao marido, formal e solenemente, a função de cabeça do casal, com poderes para comandar e representar a família, atribuição que era exaltada pelo fato de a mulher casada, a esse tempo, ser tida como relativamente incapaz e submissa ao poder marital.38

Note-se, nessa conjuntura, que o homem manteve no Código Civil de 1916, com algumas restrições, a sua posição anterior de patriarca e chefe de família, em oposição à mulher casada, que o direito incluiu no rol dos relativamente incapazes, dependendo do marido para poder exercer uma profissão.39

Não obstante a presença marcante do patriarcalismo, o Código Civil de 1916 se inspirou no modelo liberal encontrado nas codificações oitocentistas estrangeiras, como o Código de Napoleão (1804) e o Código Civil alemão de 1896 (BGB). Para tanto, no que se refere à autoridade parental, a rigidez e a autoridade despótica do pater familias romano mostrava-se incompatível com a noção sustentada à época de que o indivíduo, como sujeito de direitos, deveria ser livre e autônomo. Ademais, o surgimento da burguesia mercantil como classe detentora de poder econômico fez com que houvesse a necessidade, naquele período, de que os homens maiores tivessem capacidade para constituir patrimônio próprio e contribuir para a circulação das mercadorias produzidas. Neste sentido, o Código de 1916 veda a perpetuidade do “pátrio poder” ao estabelecer a maioridade como termo final para o seu exercício.

Por sua vez, o “pátrio poder”, tal como era designado pelo Código Civil anterior, era exercido subsidiariamente pela mulher e foi concebido como um conjunto de direitos outorgados ao pai, o cabeça do casal, em relação aos filhos. Via-se, na concepção

38 Comel, Denise Damo. Do poder familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 26.

39 Wald, Arnoldo. Direito de família. 9. ed. rev., ampl. e atual. com a colaboração de Luiz Murillo Fábregas.

formada naquele momento, que a noção de “pátrio poder” estava atrelada à esfera dos direitos subjetivos do pai a serem exercidos sobre a pessoa do filho. Ou seja, enfatizava-se a idéia do “pátrio poder” como faculdade concedida pela lei a determinadas pessoas, sem que houvesse, paralelamente, a devida ênfase aos deveres decorrentes do exercício, noção que se mostra absolutamente ultrapassada em se considerando as diretrizes atuais.40

De outra parte, estava presente a concepção de família centrada no casamento, partindo daí a estruturação do parentesco. Nessa ordem de idéias, na expressão “legítima” se designava a filiação havida dentro do casamento; “ilegítima” se nomeava a filiação havida fora do casamento, subdividida em natural (se entre os genitores não havia impedimento matrimonial na época da concepção) ou espúria (se existia impedimento dirimente absoluto, podendo os filhos espúrios ser considerados incestuosos ou adulterinos).41

Vale ressaltar, por fim, que o casamento, na legislação civil anterior, tinha caráter de perpetuidade com o dogma da indissolubilidade do vínculo, demonstrando, dessa forma, resquícios da visão sacramental do matrimônio.

Nessa cadência, merecem destaque as palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

“Diante das fontes históricas do Direito brasileiro e levando em conta a

marcante influência do Code Civil no movimento das codificações, inclusive na formulação do Código Civil brasileiro, podem-se apontar os seguintes e mais importantes princípios como sendo prevalentes no Direito de Família brasileiro durante quase todo o período de um século (1890 a 1988): a) o da qualificação como legítima apenas à família fundada no casamento, em obediência ao modelo civilista

40 Comel, Denise Damo. Do poder familiar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 28.

41 Fachin, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Fabris, 1992, p.

imposto; b) o da discriminação dos filhos, com desconsideração de qualquer filho espúrio da estrutura familiar; c) o da hierarquização e patriarcalismo na direção da família; d) o da preservação da paz familiar, ainda que em detrimento dos seus integrantes; e) o da indissolubilidade do vínculo matrimonial; f) o da imoralidade do “concubinato.” 42

Nessa linha, o Código Civil de 1916 se caracterizou por ter sido uma codificação tecnicamente bem elaborada, em que pese ter se mostrado distante, durante todo o século passado, das diversas transformações sociais e políticas ocorridas. Nesse contexto, não se pode olvidar o surgimento de novos paradigmas que tiveram como origem diversos acontecimentos, como a emancipação econômica da mulher e a sua entrada no mercado de trabalho, o controle da natalidade, a evolução da engenharia genética, a urbanização, a passagem da economia agrária para a economia industrial, a aceitação social das uniões sem casamento, dentre outros.

Significativas transformações culturais e o clamor social fizeram com que o Código Civil anterior fosse alterado por várias normas especiais, sem contar as modificações advindas da ordem constitucional de 1988. Desta feita, podemos citar o Decreto-Lei nº. 3.200, de 19.04.1941, que se intitulou como “Lei de Organização e Proteção da Família”; a Lei 883, de 21.10.1949, que permitiu a investigação de paternidade do filho adulterino depois de dissolvida a sociedade conjugal; a Lei 4.121, de 1962, chamada de “Estatuto da Mulher Casada”, que emancipou a mulher casada, reconhecendo- lhe, na família, direitos iguais aos do marido; a Lei 6.515, de 26.12.1977, que regulou os

42 Gama, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de família brasileiro: introdução – abordagem sob a

perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 20. Ressalta, ainda, Luiz Edson Fachin: “A proposta do legislador do Código Civil de 1916 era superficialmente assistencial assentada na família do século XIX, patriarcal, heterossexual, hierarquizada e matrimonializada. Uma família com a qual o Estado de antes se preocupava, mas pouco intervinha. Uma família com diversas missões, dentre elas a procriação, a formação de mão-de-obra, a transmissão de patrimônio e de uma primeira base de aprendizado.” (Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 66)

casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos pessoais e patrimoniais e a proteção da pessoa dos filhos, nas hipóteses de separação judicial, divórcio e anulação de casamento, assegurando aos pais, expressamente, o direito de visita, de companhia e de fiscalização da criação e educação; a Lei 7.250, de 14.11.1984, que autorizou o reconhecimento de filho havido fora do matrimônio pelo cônjuge separado de fato há mais de cinco anos contínuos.

1.5 A concepção da família na Constituição Federal de 1988 e a

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