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A concepção de Shepard da identidade americana

2. O teatro de Sam Shepard e o drama americano moderno

2.8 A concepção de Shepard da identidade americana

Muitas das peças de Shepard estão povoadas com heróis cowboys (que nem sempre são heróicos) os quais ilustram sua preocupação com a influência facciosa e destrutiva de uma identidade nacional ilusória e fictícia. Em maio de 2000, Shepard foi entrevistado e comentou sobre seu interesse em expor os efeitos perniciosos da identidade nacional nos cidadãos como indivíduos. Ele explica:

Ninguém nunca realmente sucintamente definiu "o mito do sonho americano". Qual é o sonho americano? É o que Thomas Jefferson propôs? Aquele era o sonho americano? Foi o que George Washington propôs? Foi o que Lincoln propôs? Foi o que Martin Luther King propôs? Eu não sei o que é o sonho americano. Eu sei que ele não funciona. Não só não funciona, o mito do sonho americano criou um caos extraordinário, e que vai ser a nossa morte. (ROUDANÉ, p. 60-70).

Enquanto Shepard claramente tem um ponto de vista negativo do conceito de uma visão definidora do que os EUA supostamente representam, ele continuamente cria personagens que sentem a pressão (ou desejo) de atingir um sentimento de identidade nacional. Suas peças sugerem que apesar do mito do American Dream que nunca é

primordiais. As peças de Shepard revelam dois importantes elementos que estão no coração da identidade americana segundo ele: uma forte conexão com a terra e a crença numa auto-suficiência individual e habilidade para fazer tudo ao seu próprio modo (frequentemente representado como o self-made man). Estes dois componentes constituem os animating myths, para usar o termo de C. W. E. Bigsby (1997), que estão no cerne de uma consciência nacional. Estes tipos de mitos retiram sua força e credibilidade de um mundo predominantemente rural no qual a responsabilidade do indivíduo por seu próprio destino e identidade é um artigo de fé nacional não menos do que individual. Dentro desse contexto, a identidade individual está diretamente conectada a identidade nacional, um argumento que Shepard sustenta em suas peças e escritos.

Em muitos dos trabalhos de Shepard, a conexão americana com a terra tem um papel importante em criar a identidade completa do indivíduo. A terra tem várias funções importantes: é um território para ser domado pelo espírito pioneiro e depois servir aos propósitos agrários do homem. A propriedade da terra mostra permanência (raízes), status e auto-suficiência. A terra também é importante, pois representa a habilidade de produzir algo (com as próprias mãos do homem) da terra. Fazer algo crescer ─ fazer a terra produzir para você ─ é mais do que somente um meio de sustento; o fazendeiro está no cerne da identidade americana.

Em 1994, Shepard escreveu um artigo intitulado The Self-Made Man onde ele forneceu uma descrição sobre o termo. Enfatiza a importância da conexão com a terra, juntamente com o papel do auto-determinismo ao formar sua visão do caráter americano:

Para ele, começou em um momento de silêncio esmagador. Algo se separou e caiu fora. Instintivamente seu coração entendeu que esse "algo" era a noção de que há muito teria acalentado de si mesmo como um indivíduo distinto, uma entidade americana chamada The Self-Made Man. Ele tinha aprendido através de gerações de antepassados irascíveis com o mesmo conjunto de queixo duro e nariz deformado. Ele tinha fotos deles na lareira. Ferrotipias da época da Guerra Civil do seu tatara avô, um homem chamado Lemuel P. Dodge. Que perdeu uma orelha lutando pelo Norte, um braço no combate pelo Sul, e finalmente foi enforcado por ser "mulherengo" em Ojinaga e arrastado pelas ruas empoeiradas até sua cabeça ser separada de seu torso. Havia outros: os homens com barbas longas e chapéus de palha de abas largas, de pé em cima de vagões de feno gigantes, forcados de madeira na mão, quase uma imagem bíblica contra o céu da pradaria. (Cruising

Paradise, p. 3)

A descrição de Shepard do self-made man, em seu livro de 1996, o qual é uma coletânea de histórias e lembranças autobiográficas revela muito sobre sua percepção da identidade americana. Em tais descrições ele argumenta que uma narrativa de identidade existe, uma que opera num nível familiar e nacional. Os homens que Shepard descreve possuem uma firme crença na sua habilidade, seu direito absoluto, de construir o seu caminho nos EUA. Shepard está representando uma linhagem que aparentemente incorpora o que é ser nascido nesse país. O relato sobre essas gerações anteriores serve para entrelaçar a família e a nação de tal maneira que elas deixam de ser entidades separadas. Os avós individuais passam a ser identificados por seus papéis na história americana como soldados e pioneiros, homens que mantinham uma convicção absoluta

na adequação das suas ações. Para o self-made man de Shepard essa identidade torna-se uma experiência religiosa, quase bíblica.

Mas essas mesmas linhas revelam o poderoso sentido de perda que Shepard argumenta que os americanos experimentam na sociedade moderna. O conceito estável do self-

made man caiu de moda. O americano de Shepard continuamente buscará recuperar

essa antiga e tão acalentada noção dele mesmo como um indivíduo distinto do qual ele acredita ser exclusivamente uma entidade americana. Na maioria das vezes eles não serão bem sucedidos. As tentativas dos personagens de Shepard de chegar a um acordo com essa realização ─ que a visão familiar deles da identidade americana está em última análise inacessível ─ é um tema que Shepard examina ao longo de sua carreira.

No trabalho de Shepard, o caráter americano é frequentemente representado pela figura do cowboy, uma imagem que Shepard tanto admira quanto critica severamente. Apesar de retornar continuamente a essa imagem em suas peças, ele a trata ambiguamente. A imagem do cowboy é apresentada como a idealização da identidade americana, sendo que os personagens de Shepard constantemente buscam reconectar-se com o espírito pioneiro incorporado dentro dessa imagem. Mas Shepard reconhece que essa identidade americana existe mais na ilusão e memória do que na realidade. Seu trabalho continuamente ilustra a artificialidade da narrativa da nação que agora funciona como uma força destrutiva, pois os americanos tentam alcançar uma identidade que foi construída com mitos e meias verdades. Shepard retrata o cowboy como uma representação incompleta do caráter nacional, ele caracteriza uma identidade americana extremamente masculina que é inclinada à violência, e ao mesmo tempo ele expõe sua natureza artificial e construída.

Vários dos personagens de Shepard incorporam essa identidade americana completa. Enquanto eles tentam alcançar um modelo idealizado do cowboy/pioneiro que como Shepard afirma é perpetuado pela cultura, história e literatura americana; e que frequente e involuntariamente revelam a completa e mais negativa imagem do caráter americano. Uma das mais explícitas e reveladoras representações do caráter americano aparece em Montana. É um conto publicado no livro Hawk Moon (1973),

o qual retrata o derradeiro cowboy, vestindo-se num quarto de hotel em Nova Yorque:

Puxou seu traje de cowboy favorito: botas brancas de pele de canguru com desenhos de flores vermelhas e um salto alto de montaria. Grandes chaparreiras de couro com franjas e tachas de prata Navajo. Uma camisa preta de cetim Gene Autry com pistolas brancas bordadas na gola e nos punhos. Sua bandana favorita laranja brilhante Roy Rogers. Sua máscara do Lone Ranger. E um chapéu Stetson preto com uma corda no queixo. Finalmente ele tirou as esporas de ouro com correntes de prata e tiras de couro. Ele colocou todas elas no chão em uma ordem certa para que se parecessem com a forma de um homem. O Super Cowboy Man. (p. 21-22)

O traje do Super Cowboy Man busca por autenticidade, porém é flagrantemente inventado, forjado. Cada artigo desse traje é selecionado de ícones da cultura popular e de filmes de faroeste. Shepard cria uma imagem ao dispor as roupas no chão para que elas se pareçam com a forma de um homem enfatizando ainda mais a natureza construída dessa identidade particular; a figura desse cowboy no chão dá a impressão de que um indivíduo somente precisa entrar nessa configuração para tornar-se essa imagem, sendo assim a linguagem de Shepard mostra a artificialidade da identidade do

A incongruência do Super Cowboy Man é enfatizada pelos detalhes específicos do seu traje. Camisas de seda e botas de pele de canguru estão diretamente em conflito com a pessoa do cowboy. O modo de transporte que ele utiliza parece estranhamente inadequado também; ao invés de montar no seu cavalo e galopar ao pôr do sol, “he walked out to hail a cab... He swung in with his spurs jangling and said: ‘Montana please’.” (SHEPARD, 1973, p. 23). Cada aspecto do Super Cowboy Man desmente a autenticidade de seu status como emblema nacional.

O Super Cowboy Man também ostenta uma tendência à violência. Montana inicia com o cowboy colocando notas de cem dólares sobre o cadáver de uma mulher que ele acabou de matar. Sua atitude indiferente em relação às suas próprias ações violentas exemplifica a inseparável associação de violência com sua (e por extensão, dos EUA) identidade. Depois de cobrir o cadáver ele vai até o bar para tomar uma bebida, ele retorna para o quarto e leva o cadáver para banheira, joga gasolina, e ascende uma pira, “leaving nothing but bones and teeth on the white porcelain” (p. 23) antes de partir para Montana. Suas horrendas ações não provocam nenhum tipo de remorso; ele permanece

cold and empty ao cometer atrocidades tão violentas. Essa dessensibilização (e

inclinação) para violência será uma caracteristica recorrente nos personagens de Shepard.

Essa propensão para violência, Shepard sugere, é uma parte integral da construção masculina da identidade americana. Os homens nas peças de Shepard são agressivos e hostis, e frequentemente empunham armas. Em A Lie of Mind, Jake praticamente espanca Beth até a morte, em True West, Lee tenta estrangular seu irmão Austin com o cordão de um telefone, em Geography of a Horse Dreamer, Jasper e Jason abrem caminho para entrar num hotel com uma rajada de balas, matando três . Armas estão presentes em Cowboy Mouth, Suicide in B-flat, Seduced, Geography of a Horse

Dreamer, Curse of the Starving Class, A Lie of the Mind, States of Shock, Tooth of Crime, Operation Sidewinder, Mad Dog Blues, The Unseen Hand, Fool for Love, La Turista e Cowboys #2, entre outros trabalhos da carreira de Shepard. A propensão de

Shepard em criar personagens (masculinos) que exibem conduta violenta e ao mesmo tempo adotam os ideais da identidade americana demonstram sua associação do caráter nacional com violência e agressão.

O Super Cowboy Man de Shepard expõe um caráter americano com inúmeras falhas fundamentais: a imagem predominante do pioneiro americano é violenta e não autêntica. Shepard comprova que a violência sempre foi não enfatizada ou glorificada pela cultura e história americanas, o que resultou na aceitação daquelas tendências violentas. A artificialidade do Super Cowboy Man revela sua desconexão de qualquer herança americana verdadeira, pois o cowboy de Shepard consiste em um pastiche de imagens fílmicas que tem pouca semelhança com a realidade da vida no oeste americano do passado e do presente.

De acordo com Shepard, a cultura americana é responsável por apresentar e promover um caráter nacional que é em última análise inacessível para os seus cidadãos. Numa entrevista em 2000, ele escreve uma observação perspicaz sobre a diferença que ele percebe existir entre a identidade americana na narrativa cultural e a realidade histórica:

Quero dizer, se você quiser— e eu não sou um historiador— mas é muito interessante rastrear esse imperialismo europeu, esta noção de que não apenas

nos foi dada esta terra por Deus, de alguma forma, mas que também estamos autorizados a fazer tudo o que queria com ela, independentemente das consequências, e colher todas as fortunas da terra, muito em detrimento de todos "abaixo" desta classe, desenfreadamente puritana do colonialismo europeu ... com certeza, Lewis e Clark e os outros caras eram um tanto heróicos, eram vigorosos, eles tinham toda essa vitalidade e eles tinham toda essa aventura de entrar em território estranho e todo esse material, mas por trás dessa coisa toda estão os europeus famintos por terra querendo dominar. Que está por trás de todo o negócio [...] Eu acho que nós sempre somos vítima da publicidade de ir buscar. De campanhas publicitárias. O movimento para o oeste foi promovido pela publicidade. Você sabe, "Venha para o oeste!" "Terra Livre!" "Destino Manifesto". Então nós sempre fomos seduzidos pela publicidade [...] Nós caímos nessa coisa, você sabe. Assim, o sonho americano é sempre essa fantasia que é promovida através da publicidade. Nós sempre preferimos a fantasia sobre a realidade. (ROUDANÉ, Interview, p. 70)

Os comentários de Shepard revelam sua crença na culpabilidade da América em promover e perpetuar um falso mito, um que ainda não foi alcançado e é apresentado como um ideal americano. Os cidadãos americanos são “seduzidos por anúncios” que emergem em parte da literatura nacional, sua visão da história americana, e talvez o mais importante para Shepard da cultura popular americana. Apesar de Shepard admitir que existam tantas definições do mito do sonho americano, sua visão da identidade americana continuamente se refere à reivindicação da terra pelos americanos e a fé inabalável deles na própria habilidade de prosperar nessa terra. As peças de Shepard e seus escritos continuamente desafiam a validade desses princípios americanos.

Para Shepard, esse paradoxo da identidade nacional cria discórdia e descontentamento; as falhas de suas personagens em grande parte derivam de sua imagem falaciosa e incompleta do caráter americano. Enquanto os personagens de Shepard progressivamente tornam-se mais conscientes da sua paradóxica e potencialmente situação auto-destrutiva em busca de uma identidade, somente alguns dos seus mais recentes personagens mostarm evidência de chegar a um estágio onde eles possam na verdade recuperá-la. A luta desses personagens para atingir esse estado de compreensão torna-se um ponto focal no drama de Shepard; suas peças ilustram essas tentativas, e fracassos para atingir a visão do destemido pioneiro americano,uma visão que é predominantemente construída de ilusão e mito ao invés de baseada na realidade. Essa imagem enganosa glorifica o espírito pioneiro e potencial irrestrito para o sucesso enquanto não realça suas tendências violentas e inacessibilidade total. Shepard afirma que essa imagem da identidade nacional impõem-se sobre a individual fazendo com que qualquer descoberta verdadeira de identidade seja quase impossível.